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Papo com Paroni | Três mestres da calúnia

Publicado em: 14/10/2013 |

* Por Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro

 

A calúnia, esse instrumento do dia a dia da política real, é também fundamental no teatro. Não há trama cômica sem ela, ostentada para ser desconstruída e fazer valer o valor moral ou a acidez propinada por seu autor. Além dos totêmicos Aristófanes, Plauto, Molière e Shakespeare, há uma infinidade de grandes mestres da calúnia. Certo de errar pela exclusão de tantos, mas não pela especificidade, elegi três momentos mágicos dessa arte maldita.

 



“A escola da fofoca”

 

I.                   Pietro Aretino.

Ele próprio se apresenta, ao ironizar a relação do nome de sua cidade e o seu apelido genérico, pois era filho de uma prostituta:

 

“Disseram que eu sou filho de uma cortesã e isso não é nada mal, pois mesmo assim tenho a alma de rei. Vivo livre e me divirto, dou-me por alguém feliz. Minhas medalhas são compostas por todos os tipos de metais. Minha efígie está colocada na frente de palácios. Como Alexandre, César e Cipião, esculpem minha cabeça em nichos, em arcos, em molduras de espelhos. Há até um vaso de cristal chamado vidro Aretino. Há uma raça de cavalo com o meu nome, porque o Papa Clemente I deu-me um daquela espécie. O riacho que banha um dos lados de minha casa é chamado de Aretino. Minhas mulheres querem ser chamadas Aretinas. Finalmente, há o estilo Aretino. Os pedantes morrem de raiva antes de chegarem a tanta honra”.

 

Muito além das comédias aceitas na época, ele foi um autor cômico que retratou a realidade das cortes do século XV. Desfilam em sua obra pedantes, servos, parasitas, maridos cornudos, esposas infiéis, todos apaixonados. Aqui, um retrato do marido pedante e metido a filósofo, o corcunda que não fugiu à atenção de Shakespeare ao compor “A megera domada”.

 

De “O filósofo” (1546), ato V, cena V:

 

Messer Plataristoteles (só) – Outro será o discurso sobre como se deve proceder para que mulher de apetite insaciável e de natureza imperiosa não seja privada de fazer aquilo que não deve fazer; seja, pois, declarado que o infinito pode ser contido pelo finito, e que infinita beleza pode estar impressa em mente finita. Será boa atitude se o engenho especulativo considerar que todo um hemisfério é visto pelo olho, impresso por mínima pupila – não segundo a grandeza e a natureza celeste – mas enquanto capacidade de sua virtude e propriedade. Mas o mesmo engenho saberia, porém, investigar como no coração tão pequeno de uma mulher viva uma alma tão intensa a ponto de enfrentar o terrível risco de atingir os desejos ali encerrados? O olho da águia vê transfigurar-se em si o grande Sol não como este o seja, mas como a visão do pássaro é capaz de recebê-lo. Urge de se considerar a descoberta do modo possível de reconhecer-se o caminho que você se trilhar para satisfazer a mulher. Tal matéria depende, afinal, do marido ser sapiente, do marido ser prudente, do marido ser esperto. As mulheres são feitas, pela natureza, do mesmo modo que as plantas; isso, digo, posto que a frutos elas reproduzem e às crianças procriam; e, como por falta de ar, de sol e de chuva as árvores se secam, assim se dará ao privá-las de requisitados direitos de carnalidade e de cópula: desse modo, as fêmeas se zangarão. Declaro, pois, que o desejo por que ardem na conjunção com o homem nasce de alma natural e não de mente libidinosa; será necessário, portanto, que se observe determinado privilégio decorrente da santidade do matrimonio que impera até onde a justiça se converte em tirania – se lhes privarmos dos seus direitos; Privilégio que deverá imperar mesmo se, na mulher, formar-se qualquer malícia ou lascívia: a integridade do marido então as instruirá de modo que todas as suas insolências se conformarão à prudência do marido. É certo que o asseio do consorte detém o vício da esposa, sob temor de serem réus da severidade da lei; não se duvide da prudência destas para que não se incentive a perversidade; prudência é simples cinta gradeada do barco que navega com as feras nela confinadas. Enfim, os deveres devidos do marido às mulheres se assemelham à sebe cujos espinhos circundam a horta, disposta de modo que a ninguém seja dado de roubar-lhe as frutas, como normalmente ocorre quando há brechas naquela primeira. Concluo, por fim, com o exemplo dos lobos, ursos e leões que, ao temer a vara daqueles que os amestram, mudam a natural ferocidade do costume para uma artificiosa mansidão.

 

II.                 Richard Brinsley Sheridan.

 

Esse dublinense foi político, dramaturgo, diretor, empresário e administrador do Teatro Royale Drury Lane, reconstruído com mais de três mil lugares junto ao revolucionário ator David Garrick. Vítima de calúnias, escreveu um dos textos favoritos do público britânico: “The school for scandal” (1777). Só para dar vontade de conhecer o texto completo, assim começa “A escola da fofoca”:

 

LADY SNEERWELL –  Então, todos os  anúncios foram publicados? Já fez circular os boatos sobre o caso de Lady Wagabound com o Capitão Boastal?

 

SNAKE.  Sim. A senhora nem imagina… Em 24 horas deverá chegar aos ouvidos da Senhora Falamall; aí não precisa de mais nada. (…) ela já  foi a causa da dissolução de seis casamentos, três filhos deserdados, quatro raptos forçados, vários partos secretos, nove separações de corpos e dois divórcios. Já percebi o seu dedo em vários postes ligando o nome de pessoas que nunca se viram na vida.

 

LADY SNEERWELL.   É, mas tem um estilo pouco refinado.

 

SNAKE.  É, ela geralmente tem bons planos, fala bem e é muito atrevida em suas invenções; mas carrega muito nas cores, e seus traços são, por vezes, extravagantes. Falta-lhes aquela delicadeza no tom, aquela doçura no sarcasmo, que caracterizam as maledicências da senhora (…) que pode fazer com uma só palavra ou um simples olhar muito mais do que a maioria das pessoas faz com detalhes elaborados, mesmo quando têm a verdade do seu lado para apoiá-las.

 

LADY SNEERWELL. Sim; como não sou hipócrita, não nego a satisfação que colho no êxito dos meus esforços. Ferida eu própria, em minha juventude, pela língua envenenada da calúnia, confesso não ter outro prazer, desde então, que o de reduzir os outros ao nível da minha injuriada reputação.

 

III.             Gioacchino Rossini

Para manter o clima, quem o apresenta aqui é um seu fã também genial e mentiroso: nada menos que Stendhal. Escreveu uma biografia quando Rossini ainda tinha 32 anos; a seguir, um trecho do prefácio:

 

“É difícil escrever a história de um homem ainda vivo… Invejo-o mais do que alguém que tenha ganhado o primeiro prêmio da loteria em dinheiro… Ao contrario, ele ganhou nome imperecível, gênio e, acima de tudo, felicidade.”

  

Encerremos com o enunciado definitivo da ação perniciosa da calúnia de “O barbeiro de Sevilha” (1816) – O Libretto é de Cesare Sterbini, inspirado na obra homônima de Beaumarchais, jà musicado por Francesco Morlacchi, um ano antes, e por Paisiello, em 1782.

 

Don Basilio:

A calúnia é um ventinho, um arzinho muito gentil que, insensível e sutil, ligeira e docemente, começa a sussurrar. Pouco a pouco, no assoalho rastejando sibilante, vai escorrendo, vai zumbindo nos ouvidos das pessoas, entra com destreza; E as cabeças e os cérebros atordoa e faz inchar. Boca afora vai saindo, cacareja e vai crescendo: ganha força pouco a pouco, corre canto a canto, qual trovão, e temporal que, no seio da floresta, assobia resmungando e faz de horror gelar. Afinal, derrama-se, volátil, esparramada e duplicada, em perfeita explosão, como a de um canhão, em terremoto, em vendaval, num tumulto geral que faz o ar chicotear. E o pobre caluniado, ofendido, repisado, em público flagelado, por bom motivo, sucumbe.

   

Traduções e adaptações do autor.

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