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Papo com Paroni | Tramas e cornos

Publicado em: 25/11/2013 |

* por Maurício Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

A instituição do casamento foi privilégio de poderosos até o Iluminismo. Talvez por essa razão não tenhamos bons estudos técnicos sobre cenas de adultério no teatro. Até essa época, o hoje brega casamento com cerimonial, sacerdote e juras de fidelidade era coisa só para nobres. Mas o relativo protocolo moral servia para disciplinar a reprodução de todos. Quer dizer: qualificar a força de trabalho.

 

Na Idade Média, as uniões entre camponeses eram celebradas pelo decano da aldeia, de maneira pagã. O ciúme e a afetividade eram luxos condicionados pela produção de riqueza: o jus primis notis não era uma lenda. A camponesa era deflorada pelo senhor feudal antes ainda do futuro companheiro. Ao alimentar-se melhor, o senhor proporcionaria uma prole mais forte. De resto, reinava a promiscuidade. Os servos dormiam em um lugar comum, talvez separados por tabiques. O matrimônio dual era somente um modelo ideológico para a população de servos, e não uma prática. Não, não se fala aqui de supostas orgias dionisíacas, mas de organizações conjugais entre três ou mais pessoas.

 

 

Por criar ideologia, o motor das tramas era movido a tensões de relacionamento dual e suas inevitáveis órbitas de  amantes, aos quais era reservada a função de escape afetivo. Notáveis exceções foram as peças de Angelo Beolco, o Ruzante (Pádua,1496?-1542), não por acaso o maior inspirador do convencionalmente revolucionário teatro de Dario Fo.

 

***

 

Entre as centenas de  tramas concatenadas pela infidelidade conjugal, a que melhor retrata tensões entre proprietários rurais recém-radicados na cidade  e suas esposas ingênuas é “O eunuco”, do inglês William Wycherley (1640-1715). Aqui, um trecho divertidíssimo desse grande autor da Restauração Inglesa:

 

 

PINCHWIFE: Vamos, conte tudo! (aparte) Quero somente ver se a estória não muda nem um pouco, porque se mudasse, pelo menos esta estória seria falsa – (à mulher) Vamos, embrulhona, como foi a coisa?

 

 

MARGERY: Ele levou-me para a parte de cima de uma casa perto do Banco.

 

 

PINCHWIFE: E assim vocês ficaram sozinhos num quarto.

 

 

MARGERY: Ele beijou-me mais de cem vezes, dizendo que achava que eu fosse a minha bela irmã, mas entenda, ele pensava que a minha irmã fosse eu; disse, sempre pensando na minha irmã, que me amava com toda a alma; e ordenou que não deixasse de pedir que o esperasse na janela às onze horas desta manhã. E disse que, se tu não estivestes em casa, que  teria subido no quarto – da minha irmã – entenda, ele estava me confundindo, querido brotinho.

 

 

PINCHWIFE(aparte): Ele com certeza a reconheceu, devo essa confissão à sua inocência. (forte) Mas, então tu te mantivestes parada enquanto ele a beijava, confundindo-se, obviamente?

 

  

MARGERY: Claro! querias que ele me reconhecesse? Eu não sou tão bobinha assim, querido brotinho.

 

 

PINCHWIFE (torturado):Mas venhamos a nós: tu disseste que ele fez coisas sujas, como vocês chamam no campo. O que eram essa sujeiras?

 

  

MARGERY: Ufa, ele meteu…

 

 

PINCHWIFE (desesperado): O que?

 

 

MARGERY: …ele meteu a ponta da sua língua entre os meu lábios e me lambuzei toda…então eu disse a ele que se ele fizesse aquilo de novo eu morderia a sua língua. Mas não fique assim tão bravo, isso não me machucou; pelo contrário, ele tem o hálito mais fresco que eu já vi.

 

 

PINCHWIFE: Ao diabo! Tu gostaste daquilo e o faria de novo então, sua ignorante?

 

 

MARGERY: Só se eu me esforçasse. Só se ele me forçasse de novo, querido, não sou tão bobinha assim, já disse.

 

 

PINCHWIFE: Se ele te forçasse, sua ignorante! Eu afirmo que nenhuma mulher pode ser forçada.

 

 

MARGERY: Mas claro que sim, brotinho, porque ele é um homem de verdade, forte e galhardo. Foi difícil resistir assim, creia-me.

 

 

PINCHWIFE (aparte): Se essa idiota continuar a vê-lo, aumentará a sua aversão a mim, e o amor a ensinará a enganar a mim e a contentar a ele. O amor!, que ensina estúpidas, maldito amor! (diante da inocência de Margery) Porque as mulheres ganham sempre dos homens no amor? Só pode ser porque elas têm mais desejo, mais estímulos passionais, mais sem-vergonhice (em progressiva raiva), e mais o Diabo! (…) Vamos, vai para o quarto e não chegue perto da janela até que eu volte; coloquei um guarda lá fora! (aparte) Se não embrulhamos as mulheres, elas nos embrulham; e tal fraude pode ser usada pelo inimigo, das quais a mulher é o mais perigoso. Quem defende uma mulher ou uma fronteira tem que tomar mais cuidado com as traições do que com a força bruta. Bom, agora que estou certo da segurança interna, vou levar ao inimigo externo falsas informações. Conheço esta cidade, ah, ah, ah!

 

 

(Tradução e adaptação de Mauricio Paroni de Castro)

 

 

***

 

 

A partir daí, o elenco de tramas cujo motor são os cornos é quase totalizante. No caso do teatro de boulevard francês, chegou a ser totalizante. Enquanto embates privados nas relações sociais, a dramaturgia sobre problemas ligados aos triângulos amorosos também era política. Menção especial  a  Mozart/Da Ponte (século XVIII) de “O casamento de Fígaro” e a Arthur Schnitzler (Viena, 1862-1931). Vejam como este se desincumbe de sua convicção no trecho que segue, de “A ciranda do amor”:

 

(…)EXECUTIVA  E por quê, posso saber?

 

MARIDO  Porque se não, o casamento seria incompleto. Acho que ele perderia um pouco de sua natureza sagrada.

 

EXECUTIVA  Sei…

 

(…)

  

MARIDO (deitando-se também na cama)  Acho que para uma mulher, ainda mais de boa família como você, ainda que já não seja mais o seu primeiro casamento, que já tenha tido suas experiências e decepções no amor – vem, põe a cabecinha no meu ombro – o casamento não representa um mistério tão grande quanto para nós homens, acho que para vocês as coisas são mais pão, pão, queijo, queijo.  Vocês não passam pelas mesmas tentações que os homens passam, vocês foram criadas para casar e ter filhos, e a partir daí mudar de vida, mudar de foco com relação ao amor. Se por um lado isso pode até ser considerado como uma traição ao marido, por outro lado é bom, dá a ele a chance de tentar novas conquistas…

 

EXECUTIVA  Você está querendo me dizer que…

 

MARIDO  Que eu estou me apaixonando por você de novo, que eu quero conquistar você…

 

(…)

 

EXECUTIVA  Sei lá. Essa conversinha mole, esquisita. Fico pensando se você não anda com outras pessoas, e…  e… bom, eu tenho até uma certa inveja dessa outra pessoa, se você quer saber.

 

MARIDO  Você está delirando.

 

EXECUTIVA  Você nunca me falou nada dos seus casos, nadinha mesmo dos seus amores de antes de a gente ficar junto. Eu tenho curiosidade. Adoraria saber das suas coisas, das suas fantasias, do que você fez, com quem fez. E se você tiver alguém agora, muito menor ainda a possibilidade de você falar qualquer coisa… e muito maior a minha curiosidade! Eu tenho inveja dessa pessoa, inveja de ela ter você se entregando furtivamente, ardente, escondido, todinho para ela. E a outra, será que também faz o mesmo, uma pessoa casada, se entregando para você às escondidas, ardendo de amor e paixão proibida?

 

MARIDO  Primeiro, uma bobagem enorme o que você está falando – como é que eu teria alguém agora? Para quê? Eu tenho você, meu amor… e das minhas relações anteriores, para que saber?

 

EXECUTIVA  Eu sou sua mulher, não sou? Não é uma injustiça eu não saber do seu passado? Da sua intimidade? E por que não posso imaginar que você tenha outra? Alguém casado, como você?  

 

MARIDO  Flor! Você é a minha esposa! Você mesma está dizendo isso, e isso significa que eu sou seu, que você é minha!

 

EXECUTIVA  Esposa, tá, tá. Mas eu estou perguntando de mulher, homem, um caso, sei lá? Se for um homem… Não, desculpa, não me leva a sério, é que você é tão delicado comigo que às vezes eu penso que só uma mulher poderia me conhecer tão bem como você me conhece… desculpa, não se ofende. E nem sempre tanta delicadeza é o que uma mulher quer. Às vezes eu quero mais é ser sua amante, sua mulher proibida, sua puta!

 

MARIDO  Vê como fala, Flor – nós temos uma filha pequena aí no quarto ao lado.

 

EXECUTIVA  (aninhando-se a ele) E eu ainda quero um menino.

 

(…)

 

(tradução e adaptação de Marcos Renaux)

 

O mesmo Schintzler resume o falso abismo entre a vida privada e a vida política em “Relações e solidão”:

 

“Se as discussões políticas se tornam facilmente inúteis, é porque quando se fala de um país se pensa tanto no seu governo como na sua população, tanto no Estado como na noção de Estado enquanto tal. Pois o Estado como noção é uma coisa diferente da população que o compõe, igualmente diferente do governo que o dirige. É qualquer coisa a meio caminho entre o físico e o metafísico, entre a realidade e a ideia.” (…)

 

***

 

Ao fugir da iconografia dos poderosos, a pintura do flamengo Pieter  Brueghel (1525/30-1569) nos precisa o clima vivido pelas pessoas comuns da sua época. A tensão entre metafísica e socialização afetiva de “O magnífico cornudo”, do belga Fernand Crommelynck (1886-1970), desempenha idêntica função reveladora da complexidade da vida contemporânea.

 

Bruno é loucamente apaixonado por sua esposa Estela. Seu corpo magro e musculoso é, para ele, objeto de adoração. Numa lógica moral puramente estética, ele exibe a esposa para toda a sua aldeia – que aceita o fato com tranquilidade. Petrus, primo de Estela, retorna depois de muitos anos de ausência e diz que sua beleza foi exageradamente enaltecida por todos. Bruno então a mostra nua, imerso em seu amor. Os olhos de Petrus brilham com a chama da sensualidade.

 

Bruno choca-se com a revelação de que sua esposa possa estar sujeita a uma admiração não só desinteressadamente estética. Alumbra a esposa enquanto mulher desejável e, portanto, corruptível. O inocente expositor da esposa mergulha no ciúme mais obscuro e doentio. O corpo da mulher não mais é um mero objeto estético, mas objeto de desejo, o que coloca em risco a sua posse exclusiva. Desespero. Sem “pureza”, ele acaba de virar um… cornudo!

 

Passo seguinte: Se é cornudo, quem é o amante?

 

A transição da confiança absoluta do amor despreocupado para a certeza absoluta da traição é questão de um segundo; o mundo virou de cabeça para baixo. Para recuperar a paz de antes, ele a oferece a Petrus. Estela obedece e o trai por amor. Sacrifício inútil. Bruno acha que os primos trancados no quarto não o traíram de verdade: foi manobra de Estela ocultar o nome do verdadeiro amante.

 

A tortura começa novamente. Para descobrir quem é o amante, Bruno obriga sua mulher a entregar-se a toda a aldeia. Alguém – ele pensa – não irá aceitar o estranho convite, e este será o verdadeiro amante de Estela. Toda a aldeia vai para o quarto da esposa e dali sai saciada. O marido é corneado por toda a aldeia, mas acha que o tenha sido somente por aquele amante desconhecido, criado na sua imaginação. Aos que estiveram no quarto com Estela, ilude-se que passaram a seco graças à dissimulação da mulher. Esta se obriga, sistematicamente, a fazer sexo com todos os homens do lugar, até que o marido tenha a certeza de que nunca o traiu e que o tal amante não existe. Enfim, por amor do marido, nem mais escolhe os homens, mas aceita quem vier. Em sã consciência, estima-se ainda “pura”.

 

Determinado a provar o que diz, o marido se traveste e corteja a esposa. Estela não o reconhece, mas vê nele um eco do Bruno do passado e – o magro e louco de hoje começa a perder o seu amor; ela cai-lhe nos braços. Bruno com isso aceita evidência dos cornos? Não: suspeita que Estela o tenha reconhecido e feito papel da adultera para esconder o nome de seu real amante.

 

Desesperada, ao perceber que nada vai convencer o marido, Estela foge de casa com o primeiro que aparece. Abandona o marido em seu castelo metafísico encantado, no qual ninguém pode entrar e do qual ninguém pode tirá-lo. Um mundo isolado, regido por uma pseudo-dialética na qual “tudo é explicado, tudo está no lugar, tudo é coerente e racional, e os acontecimentos alienígenas perdem significado”. Esta é síntese da peça, a partir do filosofo antifascista italiano Adriano Tilgher (1887-1941).

 

Esse tipo de idealismo foi sepultado pelo teatro do século XX, mas é muito mais frequente do que parece na vida de hoje. Nelson Rodrigues não surgiu à toa no Brasil. Estamos diante da farsa mística de um absurdo urbano onde não há verdade, mentira, materialismo histórico, espiritualismo capitalista, fé ou “verdade” cênica. Há tensão entre “Sol e História”, como tão bem sintetizou Albert Camus. Não é pouco, é uma saída ao impasse. Individuar tensões transformadoras é obrigação do bom teatro, independentemente deste ser narrativo, performático, pós-moderno, pós-dramático, comercial, épico, político.

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