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Papo com Paroni | Química imortal

Publicado em: 09/12/2013 |

* por Maurício Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Quando se pensa no teatro de Goethe, remete-se a Faust e a Urfaust. Tenho, porém, a firme opinião de que a sua obra mais influentemente teatral seja o romance “As afinidades eletivas” (Die wahlverwandtschaften), de 1809. A obra pertence ao Romantismo. Situada, porém, na transição para o classicismo de Weimar, constrói-se sobre uma metáfora com os elementos químicos que compõem o mundo.

 

A ideia de Goethe não era científica. Era moral, como ele mesmo havia comentado, apesar de provavelmente ter utilizado um princípio, enunciado em 1775, do químico e naturalista sueco Torbern Olof Bergman. O “Disquisitio de attractionibus electivis” (“Dissertação sobre atrações eletivas”) trazia tabelas ordenadas pela capacidade de os elementos, se defrontados, reagirem e se recomporem. Goethe foi muito intuitivo. Essas tabelas foram validadas cientificamente somente em 1808. Na sua época, o projeto iluminista e seus consequentes conhecimentos científicos incrementavam-se a cada dia. Com o aumento do número de elementos descobertos, os cientistas iniciaram a investigação de modelos para reconhecer as propriedades e desenvolver esquemas de classificação.

 

Somente em 1857 o médico alemão Lothar Meyer descobriu que o oxigênio se liga ao ferro da hemoglobina no sangue. Ao prosseguir com a pesquisa, acabou por  publicar uma tabela de 28 elementos químicos da natureza, classificados de acordo com a valência química: o numero de elétrons “soltos” que se unem a outros de elementos diferentes. Concomitantemente, o russo Mendeleev publicou, em 1869, outra tabela com elementos agrupados em “famílias” de propriedades diferentes entre os mesmos (periodicidade). Trazia, ainda, a previsão das propriedades de elementos. Isso ocorre graças a modificações radicais na quantidade de prótons e nas camadas e elétrons no interior dos átomos.

 

Quer dizer: a natureza é a grande promotora dos enormes bailes de noivados e casamentos simultâneos que criam as moléculas de tudo o que conhecemos no mundo da matéria. Goethe, na sua narrativa dos sentimentos, antecipou  a disposição sistemática dos elementos da mesma natureza.

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Quando se pensa na “química” de uma determinada relação pessoal, a origem está nesse romance. A melhor expressão é essa mesmo: a química de uma afinidade eletiva.

 

Laços afetivos estariam necessariamente ligados à conveniência social ou a algo natural? Para Goethe, as ligações ditadas pela sociedade estão longe da vontade da natureza. Podem coincidir, para a sorte de quem vive tal situação.  O empobrecimento estético dessa ideia precursora gerou, e gera, muitas obras contemporâneas que se nivelam pela baixa qualidade e pretensão. Entre exemplos de pretensão: a obra cinematográfica do charlatão Claude Lelouch. Entre exemplos de nivelamento por baixo: grande parte das comédias românticas, más novelas de televisão, documentários pseudocientíficos: especificamente, tudo o que se pretende arte-sobre-relações-entre-tipos-psicológicos.

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Eis o enredo desta primeira obra de romance de psicossocial: Superados os respectivos casamentos convencionais, Eduard e Charlotte refugiam-se na propriedade rural. Edouard ali recebe o Capitão Otto, um velho amigo em dificuldades. Charlotte compensa a intromissão e traz à companhia uma belíssima sobrinha, Ottilie. A ordem estabelecida é perturbada radicalmente: os anfitriões se apaixonam pelos novos convivas, atraídos pelas afinidades que jamais tiveram entre si. Eduard e Ottilie cedem; o Capitão e Charlotte, não. Cúmplices, contra a razão da hereditariedade, invocam o primado da natureza e do irromper da paixão no amor. Após a  “traição espiritual” entre os cônjuges, vem à luz uma criança. O conflito entre paixão e razão os leva ao caos. A morte vem pontuar a estória. Ao tomar um atalho de barco num lago, Ottilie nele cai com a criança, que morre. Deprimida, deixa de se alimentar e segue o mesmo destino. Os apaixonados que dão livre curso aos próprios sentimentos não sobrevivem: Teutônico, Eduard logo os alcança, qual expiação pela ofensa, por quem protagoniza um projeto da natureza, a uma ordem racional.

 

A voz do autor contra a sede de rapidez e riqueza no mundo projetado pelo iluminismo é patente. A mensagem de que um jardim jamais poderá ser desfrutado por quem o projeta chega por meio da morte. Esta não pode ser vencida. Tudo se resolve através dela, como que congelado num tristíssimo retrato. O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) viu o destino de Ottilie e Eduard como libertação da vida na qual estavam condenados a permanecerem separados. Mortos, acabaram unidos, enterrados lado a lado.

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Ao adaptar Sérgio Sant’Anna ao cinema de Beto Brant, em 2004, passei a relacionar a teatralidade de muita prosa contemporânea com textos da Antiguidade Clássica e do Romantismo. Naquele ano, encenei um auto  baseado em “Vestir os nus”, de Pirandello, com esta oração transgressiva  que se segue, de grande proximidade com o ultimo Goethe. Disponho,  lado a lado,  a mística destas prosas que narram o amor além da morte.

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De “As afinidades eletivas”

“Poder descansar um dia ao lado de quem se ama é a esperança mais agradável que uma pessoa pode nutrir, se alguma vez pensar no além da vida, “reunir-se aos seus” é uma expressão tão comovedora! Há vários monumentos e homenagens que nos fazem sentir próximos dos ausentes e dos mortos, mas nenhum tem a significação de um retrato. Conversar com o retrato de uma pessoa querida, ainda que não seja muito parecido, tem o mesmo encanto que às vezes experimentamos ao discutir com um amigo. Sentimos de um modo agradável que somos dois seres, porém inseparáveis. Por vezes conversamos com uma pessoa presente como se ela fosse um retrato. Ela não precisa falar, olhar-nos, nem ocupar-se conosco; nós a vemos, relacionamo-nos com ela, e esse relacionamento pode até aumentar, sem que ela nada faça para isso, sem que perceba que não passa de um retrato para nós. Nunca estamos satisfeitos com o retrato de uma pessoa conhecida. Por essa razão sempre lastimei os retratistas. Raramente exige-se o impossível de uma pessoa, e é justamente isso que fazemos com eles. Queremos que registrem na imagem também a nossa relação com a pessoa, a nossa afeição ou antipatia, devem representá-la não como somente eles a veem, mas como nós a vemos. Não me admira que esses artistas tenham se tornado, aos poucos, obstinados, indiferentes e teimosos. Isso não teria nenhuma importância se, em função disso, não tivéssemos de nos privar dos retratos de tantas pessoas caras e queridas. Sem dúvida alguma, a coleção do arquiteto, de armas e objetos antigos, que, juntamente com os corpos, estavam cobertos por montes de terra e blocos de pedra, demonstra-nos como são inúteis as precauções das pessoas para conservar a sua personalidade após a morte. Como somos contraditórios. O arquiteto confessa ter aberto, ele mesmo, esses túmulos dos antepassados, e, entretanto, continua a se ocupar de monumentos para a posteridade. Mas por que levar isso tão a sério? Será que tudo o que fazemos é para a eternidade? Não nos vestimos de manhã para tornarmo-nos a despir-nos à noite? Não saímos de viagem justamente para regressarmos? E por que não desejarmos descansar ao lado dos nossos, mesmo que seja só por um século? Ao vermos tantas lápides afundadas na terra e gastas pelos pés dos fiéis, e tantas igrejas desmoronadas sobre suas próprias tumbas, a vida após a morte pode parecer-nos, então, uma segunda vida, na qual se ingressa através de uma imagem, de uma inscrição, e na qual se permanece mais tempo que nesta própria vida. Mas essa imagem, essa segunda existência também se extingue, mais cedo ou mais tarde. O tempo não cede em seus direitos sobre os homens, nem sobre os monumentos. (…)”

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Oração a uma jovem defunta nua

                                                                             Sérgio Sant’Anna

 

Une nymphe amie d’enfance

Marcel Duchamp

Também pode ser lida como

“Une infamie d’enfance” 

 

Ah, minha querida, como te amo ainda mais depois de morta, para sempre perfeita dentro de mim. Mas como gostaria de também despir-me e deitar-me contigo, abraçar-te no caixão, sermos enterrados juntos.


Alfred Jarry escreveu que “o cérebro humano, em sua decomposição, funciona além da morte. E são os seus sonhos que criam o paraíso”. Como seria bom e lindo, então, que os vermes nos devorassem num só esquife, e nosso sonhos seriam de uma devassidão sem fim ou limites, pois esse é o verdadeiro grande amor.


Mas se eu fosse enterrado vivo, sofreria o desespero da sufocação, como os catalépticos.


Pensei então em simplesmente entrar no caixão e, aproveitando a perplexidade geral, beijar-te, abraçar-te, acariciar um pouquinho os teus seios, antes de ser arrancado à força do teu corpo. Mas pensei também que seria um escândalo sem precedentes, que arruinaria a tua reputação – pois quem duvidaria de que fôramos amantes loucos – e  te levaria às primeiras páginas dos piores jornais e aos mais grotescos programas de tevê. E só eu continuaria a considerar-te a santa que sei que és; uma santidade cheia de êxtase e de gozo como a de Teresinha de Ávila.


Restam-me, assim, o sexo, o amor e a necrofilia conceituais, como os praticou Monsieur Marcel Duchamp, em sua “A noiva despida por seus celibatários”, mesmo, e seu “Etant donnés”o testamento e jogo mortalmente eróticos que nos legou. E sabia ele que todas as perversões são infantis. Une nymphe amie d’enfance. Une infamie d’enfance.


Sei que irás trair-me em teus sonhos putrefatos, pois as mulheres têm essa natureza física e moral. E peço-te, apenas, que seja eu um dos teus eleitos e gozes comigo com teu corpo e mente ilimitados pela morte, capazes de abrigarem mil amantes.


Enquanto isso, inspirado por mestre Tadeusz Kantor, serei fiel a ti no teatro da morte, minha noiva e cadáver ninfomaníacos. Em tua homenagem, meu pênis permanecerá para sempre ereto, jamais dispersarei meu sêmen, e assim terei um gozo perene até a minha própria morte, quando, quem sabe, nos uniremos na grande divindade macho-fêmea.

 

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