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Papo com Paroni | Pílulas de Ano Novo (parte 2)

Publicado em: 16/12/2013 |

* por Maurício Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Em 1927, os grandes encenadores franceses Gaston Baty, Charles Dullin, Georges Pitoeff e Louis Jouvet fundam uma associação de ajuda mútua, o Cartel des Quatre, que durou até 1940. O objetivo era “fazer com que o teatro crie uma poesia que lhe seja própria ao encenar autores contemporâneos”. Eles foram fundamentais no entendimento da direção enquanto autoria de um espetáculo.

 

Em geral, sabe-se deles através de resumos de história do teatro. Dada a estatura desses nomes, peço perdão pela ousadia de intercalá-los a comentários históricos e lembranças do que ouvi em meus anos milaneses. Com o propósito de disponibilizar hipóteses que, de outro modo, seriam quase inacessíveis, relato, reescrevo, edito, corto trechos e comento algumas visões de Baty sobre a Commedia dell’Arte.

 

***

 

(…) A farsa entrou na moda na Itália (…)

 

Em 1520, apareceu Angelo Beolco, poeta e comediante paduano, meio amador e meio profissional, conhecido pelo nome da personagem que concebeu para si mesmo: Ruzante, pícaro, alegre e brincalhão. Com a sua companhia de amigos, representava, para um público de nobres de Pádua e, mais tarde, de Veneza, algumas comédias rústicas muito sumárias e torpes, mas cheias de movimento e de vida.

 

 

Apesar de quase sempre terem sido improvisadas e poucas vezes escritas, as obras de Ruzante anunciavam a Commedia dell’Arte com as suas máscaras, canções e tiradas cômicas. Mas não foi mais que uma ação indireta entre as tantas que originaram a Commedia dell’ Arte, cujo momento do nascimento é sumamente incerto.

 

É um feixe de elementos completamente diversos. Os atores deram a ela o seu impulso, sua experiência, os seus procedimentos e os seus trajes. As províncias italianas proporcionaram os tipos e seus modos de falar. O próprio teatro de letrados não deixou de influir na sua criação. Enquanto os diletantes se interessavam pelas improvisações populares e se divertiam ocasionalmente com elas, histriões eram admitidos nos espetáculos de corte e até nas representações acadêmicas. Limitados originalmente nos interlúdios, acabaram por tomar parte das próprias comédias. Tomaram então, segundo o que se diz, grandes liberdades com os textos. Em lugar de interpretar os papéis das peças, comentavam-nos. Porém, a precisão e a vivacidade de suas atuações acabaram por prevalecer sobre o autor.

 

O público, farto das frias elucubrações dos poetas, era sumamente benévolo com esses intérpretes que eram, no mínimo, divertidos. Valendo-se do favor e sem pensar nada além de aumentar a venda de ingressos às companhias profissionais, cuja aparição data de cerca da metade do século XVI, aproveitaram qualquer ocasião que lhes era oferecida para divertir o público. Não abandonaram nem os chistes, as danças, canções e acrobacias, nem o uso dos saltimbancos improvisadores que exploravam a maravilhosa flexibilidade criativa italiana; ao mesmo tempo, conservaram noções de uma arte mais habilidosa, através de suas relações com os letrados. Enriqueceram seus programas com recursos da comédia latina quais velhotes imbecis, criados espertalhões, parasitas, loucos, prostitutas e, acima de tudo, aprenderam o valor de uma intriga bem conduzida, que, a partir de então, foi precisada por um argumento prévio.

 

A Comedia dell’ Arte, sem que se percebesse, formalizou-se assim. Houve aquisições menos felizes: Seu repertório poderia muito bem ter se abstido das pastorais, das tragédias, das tragicomédias e dos dramas religiosos – estes últimos, sumariamente desconcertantes – dos quais se alimentava de tempos em tempos, assim como das obras heróoicas de grande espetáculo; apesar de que algumas fizeram carreira brilhante. 

 

No gênero que lhe era próprio e que correspondia melhor ao seu espírito, a Commedia dell’ Arte frutificou de maneira estupenda. Graças às suas profundas raízes populares, foi capaz de revitalizar, mais uma vez, a tradição cômica. 

 

Graças à Commedia dell’Arte, desenvolveu-se, magnificou-se – e quase se hipertrofiou – um indispensável elemento da arte teatral: a atuação. A técnica da Commedia dell’Arte se apoia totalmente no trabalho do ator. Commedia dell’Arte significa comédia de oficio, de habilidade pessoal, e não comédia perfeita, como tem sido insinuado.

 

Fundada por atores profissionais, baseia toda a iniciativa e toda a importância no comediante. Na ausência de um pensamente inspirador, o comediante deve dar prova de extrema sutileza e demonstrar renovação constante. Cada representação supõe a concertação coletiva por parte dos intérpretes. Trata-se da primitiva arte dos bobos de corte levada à extrema perfeição.

 

A temática pouco interessa. Na maioria dos casos, reduz-se a um debate amoroso, assombrado por obstáculos que se multiplicam durante o segundo ato; desaparecem, quase que por encanto, ao final do terceiro ato. Igualmente, a estrutura geral da obra carece de conclusão. Um prólogo, espécie de desfile inicial cujo tema é completamente estranho à intriga, consiste na sinopse da ação. Possuía interlúdios e um adeus aos espectadores, mas tudo isso é relativo. O que interessa no enredo da Commedia dell’Arte figurava num cartaz fixado atrás do cenário, que os atores consultavam durante a representação antes de entrar em cena [Lazzo]. Era uma sucessão habilmente planejada dos efeitos cênicos. A base da intriga servia de fio condutor. Não fazia mais do que assegurar a unidade e a variedade da atuação. Mesmo assim, ao ser encenado, cuidava-se exclusivamente da atuação. 

 

A Commedia dell’Arte nunca contou com um edifício especial. Instalava-se nas praças e às vezes nos anfiteatros e nos antigos circos. Geralmente, utilizava salas adaptadas dos palácios, ou as que haviam sido construídas nas academias para o “teatro culto”; deste instrumento banal que lhe era oferecido, a Commedia dell’Arte tomou grande e melhor vantagem, adaptando-o às suas necessidades.

 

[Se pudermos fazer uma comparação aproximativa à nossa realidade citadina: mais ou menos como os salões de festas dos prédios de apartamentos ou playgrounds de condomínios ditos “de alto padrão”]

 

O tablado rudimentar das primeiras aparições foi melhorado em seguida. A cenografia se elevou à altura de um homem, para que os espectadores não perdessem de vista as evoluções dos intérpretes.

 

[Essa primazia física e criativa do trabalho do ator sobre a presença “cênica” dos espectadores evidenciava a extrema sagacidade dos commici dell’arte.  Estes perceberam serem eles – e também sua grande inteligência cênica – os atrativos de uma arte que não tendia a servir a um Estado Nacional ou a uma política absolutista. A delineação seguinte, a do teatro burguês ou romântico, que elevou o artista a uma aura sacral, acabou servindo também a um Estado Nacional. O interlúdio histórico da Commedia dell ‘arte significou o período áureo da comicidade artesanal a serviço da diversão e fruição de uma arte que até hoje marca uma justificadíssima mitificação do gênero entre os profissionais do teatro. A função política desse fato é evidente por si só: pré-revolucionária.]

 

Sobre o pano de fundo suspenso entre duas varas e aberto por duas ou três entradas, apareceram, sumariamente indicadas – como se mostra em gravuras da época –, as artes essenciais do cenário; inspirando-se no teatro literário, a Commedia dell’Arte as havia simplificado à sua maneira.

 

Tal cenário, cuja disposição conservou-se durante o apogeu da Commedia dell’Arte, evocava uma encruzilhada com duas casas laterais e uma rua ao meio perpendicular às esquinas. Foi concebido de modo a permitir os encontros, a aparição inesperada dos personagens, as conversas particulares, os apartes ou qualquer das combinações cênicas.

 

[A titulo de provocação: na Itália, quando se vai, em criança, aos primeiros espetáculos, a ideia primeira de teatro é essa. No Brasil, com as exceções de quem faz bom teatro em qualquer circunstância, a ideia é ligada aos sub-rogados de “teatro infantil”, que se nutrem do desespero profissional e técnico de atores em busca de sobrevivência.]

 

Igualmente, os acessórios se reduziam ao mínimo. As listas de guarda-roupa o demonstram: somente o estritamente necessário para precisar a atuação. A Commedia dell’Arte acabou por render-se à maquinaria surpreendente e aos alardes faustosos da cenografia; mas tais luxos poderiam justificar-se pelo desejo de ressaltar mais ainda o trabalho dos intérpretes. No entanto, eles foram a causa da sua decadência.

 

[O espectador novo-rico sempre incentivou esse teatro, pois quer se ver sintetizado no palco, o seu espelho: ostentação de sua riqueza. Isso foi mortal para um momento – raro, porque de transição – em que os atores cobriram criativamente a falta do autor literário, com grande vantagem para o espetáculo.]

 

Era o reinado do ator. O ator era tudo. Instintivamente, na plena compreensão de todas as suas possibilidades, o ator empregava todos os elementos básicos da arte teatral. Enquanto acrobata, combinava-se o diálogo com passos, saltos e cambalhotas; a dança nos interlúdios e nos pequenos balés que punham fim nos atos. Como músico, canta em cena acompanhado da guitarra – sem mencionar as cantorias especiais que apareciam nos divertimentos. Como pintor, engendrava cores em seus trajes remendados. E, finalmente, era capaz de improvisar seu texto na qualidade de autor. 

 

A improvisação não era sempre presente. Os “bifes” eram totalmente decorados, empregados em determinadas circunstâncias. Os lazzi que eram intercalados na ação, nada tinham a ver com a improvisação, e as breves cenas burlescas – tão parecidas às entradas dos nossos palhaços – eram condimentadas por sonoras bofetadas, piruetas e chutes. Encontravam seus mais seguros efeitos nas coleções ad hoc de tiradas e chistes. Provavelmente, a comédia muitas vezes representada tendia a se cristalizar numa forma imóvel. Era preciso evitar todos os perigos do estancamento, sob pena de perder sua fisionomia. Disso se encarregavam os intérpretes.

 

Até os recursos fixos dos tipos fundamentais ofereciam aos atores um pretexto para a renovação. Constituíam o mecanismo que distinguia a Commedia dell’Arte. As companhias contavam, geralmente, com sete ou oito personagens, os velhos (Pantaleão e o Doutor); dois Zanni (Briguela e Arlequim), o capitão; o primeiro e o segundo galãs; e os papéis femininos, originalmente representados por homens, que os atores italianos foram os primeiros a confiar às mulheres: a primeira e segunda damas e a donzela. Os cinco primeiros personagens e a donzela formavam a “parte ridícula”; os outros quatro, a “parte grave”. 

 

[Os clichês dramatúrgicos das telenovelas atuais, ainda que legítimos no gênero televisivo, são criminosamente enxertados no (mau) teatro; começam pela compreensão equivocada desta diferença.]

 

O doutor sentencioso e pedante de Bolonha fazia-os personagens mais inteligentes que de outros lugares; o capitão, sobrinho-neto de gloriosos latinos, era uma caricatura do espanhol das bravatas, cuja maneira de conquistador enaltecia o italiano; Pantaleão, um farsesco arrivista, avarento e cheio de vícios, era o modelo do burguês veneziano. De todos esses, foi surgindo, pouco a pouco, uma variedade numerosa, a começar pelo Polichinelo, a glória napolitana. Todos eles com seus defeitos e com seu jargão particular, tinham originalmente a vida cotidiana como modelo.

 

Outros tipos surgiram da própria personalidade dos interpretes. O cômico de prestígio impunha seus trejeitos, maneiras e suscitava imitações. E não acontece exatamente isso nos nossos dias, entre os cômicos de Music Hall [ou novelas] e do teatro? Quando  um ator da Commedia dell’Arte representava uma personagem tradicional, ele sabia imprimir a auréola do seu talento, ao mesmo tempo em que conservava os caracteres oficiais do tipo e lhes davam uma fisionomia original. Não nos faltam os exemplos: Domenico Biancolelli fez de Arlequim uma personagem elegante e refinada, enquanto que Vizentini deu-lhe uma aspecto patético. Assim, o tipo característico, longe de ser um molde constrangedor, era um meio técnico excelente para desenvolver uma atuação justamente mais livre. Com seu aspecto mais familiar, indicava ao público, de uma vez , as linhas gerais do papel; e por cima delas era que o intérprete bordava a sua criatividade sem comprometer a clareza da obra.

 

O mesmo pode-se dizer das máscaras que cobriam o rosto dos cinco ridículos. Essas máscaras de couro, de traços grotescamente acentuados que refletiam com deformações enormes as taras das personagens, haviam sido desenhadas. Ao tornarem possíveis as expressões do rosto, elas obrigavam que o ator fundamentasse a atuação nos movimentos do corpo. A mímica era simplificada e generalizada. Baseava-se nas reverências e na mobilidade das atitudes. O corpo inteiro participava delas. A mímica se adapta perfeitamente às necessidades do teatro, que reclama conjuntos plásticos, claramente perceptíveis de longe, como as esculturas monumentais.

 

A Commedia dell’Arte estava inteiramente baseada na interpretação e não tinha valor senão pela qualidade desta. Dívida importante, já que talento não se acha em qualquer esquina. Não custa imaginar as esculachadas exibições que deveriam oferecer as companhias de segunda ou terceira ordem, com seus péssimos palhaços que repetiam piadas gastas. Assim como as boas companhias, não eram raros os galãs canastrões que interpretavam lições laboriosamente memorizadas. Mas o italiano é um comediante nato. E os tipos puramente cômicos encontraram intérpretes excelentes que entusiasmavam as multidões e as cortes, artistas cujos nomes ilustram, hoje, a história do teatro. Provinham de segmentos diferentes. Alguns eram de extração nobre, filhos de famílias bem postas, atraídos pelo sonho do palco. Muitos deles, apesar da origem humilde, possuíam cultura refinada. A dinastia dos Andreini conta com vários escritores e uma poetisa, Isabella, cujo marido, Francesco, falava seis ou sete línguas e tocava todos os instrumentos. Fabrizio de Fornaris publicou várias peças. Domenico Biancolelli era uma espécie de erudito, assíduo de bibliotecas, Romagnesi foi um sábio astrônomo e Vallerini, um distinto helenista.

 

O melhor de tudo era que, por mais sábios que fossem, não desdenhavam a única qualificação de atores quando subiam ao palco. Sutileza, agilidade e achados bufonescos se festejavam tanto quanto as qualidades de seus engenhos. Diz-se que esqueciam, por amor à arte, as rivalidades e invejas pessoais, cerzindo suas réplicas improvisadas àquelas de seu acompanhante, facilitando respostas e sacrificando a personalidade ao altar da unidade do espetáculo. Dessa verve improvisadora e dessa coesão resultavam um espetáculo pleno de naturalidade e de variação, de invenção deslumbrante, de ritmo ágil, com a surpresa das piruetas, com a ridícula entonação dos atores e a luz dos trajes multicoloridos. Inverossímil, mas, sem duvida, crível; sem leis e sem regras, a Commedia dell’Arte possuía, apesar de tudo, um harmonioso equilíbrio.

 

Entende-se muito bem que a Commedia dell’Arte, assim realizada, acabou rapidamente com o enfadonho teatro erudito. Vencido, o teatro dos eruditos não se recuperaria nunca mais. Pelo contrário, a comédia seria representada na Itália durante dois séculos, sempre semelhante a si mesma, mas rejuvenescida incessantemente pela imaginação vivaz de seus intérpretes.

 

Durante a época de seu desenvolvimento na Itália, a Commedia dell’Arte cruzou as fronteiras da Europa. Fez sua entrada em Paris, no ano de 1570, com a companhia e Giovanni Ganazza. Voltou um pouco mais tarde com os commici gelosi – zelosos de agradar o público – e depois com os commici confidenti – confiantes na indulgência dos espectadores; as duas companhias se reuniram depois para formar a dos commici uniti. No começo, a estada dos comediantes italianos na França não durava muito. Apesar do seu êxito, tinha um público pequeno por causa de língua. Renovavam, com grande frequência, seus programas; o repertório se acabava muito rapidamente. Por outro lado, necessitavam enfrentar as queixas dos comediantes franceses, incomodados pela competência e as proibições do Parlamento, que se escandalizava com seus costumes fáceis. Mudavam o elenco com facilidade e mais tarde voltavam a chamá-los. Os reis, encantados com a diversão, exigiam o retorno deles. A cada três ou quatro anos, os comediantes italianos tomavam a estrada da França e, em 1660, instalaram-se definitivamente em Paris. A influência dos italianos se fez sentir imediatamente no teatro francês. A Commedia dell’Arte atenuou o estilo ridiculamente declamatório dos trágicos, mas influenciou principalmente os gêneros similares.

 

 

Leia aqui a primeira parte do artigo

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