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Papo com Paroni | Pílulas de Ano Novo (parte 1)

Publicado em: 16/12/2013 |

* Por Maurício Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Em 1927, os grandes encenadores franceses Gaston Baty, Charles Dullin, Georges Pitoeff e Louis Jouvet fundam uma associação de ajuda mútua, o Cartel des Quatre, que durou até 1940. O objetivo era “fazer com que o teatro crie uma poesia que lhe seja própria ao encenar autores contemporâneos”. Eles foram fundamentais no entendimento da direção enquanto autoria de um espetáculo.

 

Em geral, sabe-se deles através de resumos  de história do teatro. Dada a estatura desses nomes, peço perdão pela ousadia de intercalá-los a comentários históricos e lembranças do que ouvi em meus anos milaneses. Sugiro aqui a leitura direta de  alguns  trechos de Baty.

 

Com o propósito de movimentar muita visão sedimentada em consensos improváveis, relato, reescrevo, edito, corto trechos e comento algumas visões de intelectuais como Silvio D’ Amico e Renato Simoni, além de antigos textos antigos indianos (Mahabaratha) e japoneses (Warambe  Gusa,  Okura Torake, Zeami Motokyo). Todos já de domínio publico, escritos antes de 1932. Isso para disponibilizar textos e hipóteses que, de outro modo, seriam quase inacessíveis. Por exemplo, uma colagem intuitiva, mas facilmente corroborável, de que o teatro nasce no ocidente mediterrâneo – no Egito antigo – para depois se desenvolver em Atenas.

 

 

***

 

Sobre a compaixão no teatro: uma viagem longe dos bíblicos ocidentais que nos ligam a quase tudo o que vemos nos heróis das artes performáticas. Algumas citações podem ser curiosas. Parece um manual para escrever boas novelas de televisão. Coisa quase impossível, mas desejável.

 

[Um antigo texto sobre o teatro indiano]

 

(…)

 

Além dos quatro Vedas, os livros sagrados do Bramanismo, existiria um quinto, o Natya-Veda, contendo essas revelações, que Bharata teria resumido em um livro, The Natya-Shastra, a fonte de todas as incontáveis “poéticas” em que as gerações de retóricos, gramáticos e críticos baseiam-se.

 

(…)

 

Enumeram-se 28 qualidades da heroína. Citemos os “sinais do amor de uma mulher apaixonada”. Um pequeno e antiquíssimo manual de psicologia da mulher, que nos lembra facilmente muitas atrizes dos nossos dias.

 

“A mulher apaixonada quer manter o amante ligado a si por muito tempo. Jamais se apresenta diante dele sem ter feito a toalete; com o pretexto de ajeitar o cabelo ou o vestido, coloca em evidencia os seios e o umbigo; amigavelmente, presenteia os servos do amado com roupas e outros objetos; entra em estreita confidência com os amigos dele, tratando-os com muito respeito. Quando está entre as próprias amigas, tece-lhe méritos. Confia-lhe tudo o que tem e se permite descansar somente quando ele descansa; doem-lhe as dores dele, alegra-se com a sua felicidade. Ao colocar-se sempre sob o seu olhar, vigia-o a distância; fala aos domésticos antes dele; sorri com alegria ao menor sinal de afeto que ele lhe dispensa. Ela se toca a orelha, desfaz e refaz suas tranças; abraça uma criança e a cobre de beijos; começa a desenhar uma pinta na testa de uma amiga, e se esquece de terminá-la; desenha um desenho no chão com a ponta dos pés; olha-o de lado, falando ao amado morde-se os lábios com olhos baixos; jamais se ausenta do lugar onde ele está; apresenta-se a ele sob qualquer pretexto; põe no regaço seus presentes e os admira frequentemente; com ele fica sempre alegre; sem ele, deprime-se; admira seu caráter, acha bom tudo o que lhe agrada, diverte-o com um nada; em sua presença não demonstra sinais de emoção.”

 

***

 

[Antigos judeus e muçulmanos]

 

(…)

 

Entre os povos de semitas ou de dogma muçulmano – que proíbe a arte de imitação – formas rudimentares de ação dramática surgiram, mas permaneceram ligadas aos santuários.

 

O Antigo Testamento descreve as danças diante da Arca dos levitas e tem vários de seus livros quase em forma de drama. Assim é o poema de Jó, de tema desenvolvido numa série de réplicas como o Cântico dos Cânticos, onde o noivo e a noiva se reunirão, enquanto o coro de donzelas se mistura aos diálogos.

 

Apesar do anátema do Corão contra a representação de tudo o que vive, tanto na pintura quanto na escultura ou no drama, eventos religiosos específicos do culto xiita têm mantido, entre os persas, uma parte das crenças nacionais na sacralidade.

 

Os temas são a história sangrenta da família de Ali, conhecido como o Leão de Deus, filho de Muhammad, e seu filho Hassan e Hussein.

 

Essas representações, “téhasiés”, eram os primeiros sermões intercalados com hinos cantados pelos fiéis com os sacerdotes. Nos pátios das mesquitas com a multidão reunida, a lenda contada e cantada tomou forma. Os sacerdotes e os fiéis têm incorporado os imãs, os seus servos e seus inimigos. A partir do século XVIII, a forma tornou-se mais cuidada e os diálogos foram intercalados com danças, canções e coros.

O téhasié (de Azar: dor manifesta, chorar um ente querido) é comemorada durante a quinzena de Mourharrem, que corresponde à nossa Páscoa.

 

Um teatro (teklcé) rudimentar é preparado num pátio de mesquita, numa praça. É constituída por uma fileira dupla de bancos sobrepostos, uma plataforma em torno da cena (sakou), ligada à terra por um declive em cada uma das suas extremidades. Outra plataforma defronte (Taj-nema) ajuda os atores a descer do palco. O sakou não tem cortina, cenário ou bastidores, e é coberto com tapetes e tecidos de  rara beleza, mas sem ligação com a ação, postos ali pelo organizador da performance. A ação é muito restrita. No entanto, após as exortações do rouzekhan, que, de uma espécie de púlpito, faz anúncios e comentários sobre as cenas e melodias do coro, a exposição de problemas bem conhecidos provoca tal emoção que o público explode em lamentos, fluem lagrimas; às vezes, sangue, pois tomado de súbito fanatismo.

 

***

 

Ligação direta para demolir um velho clichê 

 

[Sobre teatro egípcio]

 

Por muito tempo ignorado, graças às descobertas do abade Driotton, o teatro egípcio revelou importantíssimos textos de sua literatura dramática. São, a cada dia, mais numerosos; entretanto sua riqueza jamais foi inteiramente inventariada. Mas podemos ao menos seguir um certo desenvolvimento no Vale do Nilo que encontramos em todo o Extremo Oriente. A ligação entre religião e forma dramática nunca se mostrara tão forte, e podemos, afinal de contas, creditar ao Egito Antigo a honra de descobertas que os gregos erroneamente se atribuíram.

 

Além do culto popular dos deuses, havia práticas quotidianas de significado especial reservadas a uma elite de sacerdotes e espectadores. Com base na crença da eficácia da magia imitativa, havia transposições de gestos simbólicos e atitudes reais: uma forma eminentemente dramática, com efeito.

 

Tratamos da simbologia do morto que, através da pele das vítimas, nascia para uma nova vida; um rito funeral aplicado por analogia ao espírito, portanto estendido ao início da vida. O mistério de “renascimento através da pele”, que remonta ao Antigo Império, ao longo dos séculos foi simplificado e idealizado em suas manifestações, mas manteve o seu caráter imitativo.

 

Quando, em vez de garantir a imortalidade de um homem ou de um rei, tratou-se de perpetuar o culto, portanto a salvação eterna de um deus, naturalmente as cerimônias tomaram uma amplitude maior. 

 

Nas datas críticas da lenda de Osíris – a morte, sepultamento e ressurreição –, grandes festas incluíam muitos figurantes e uma encenação importante, às vezes ao ar livre, às vezes dentro de um templo. Eram os adereços: Uma estátua de Osíris envolto em bandagens, uma cama para a múmia divina, coroas, cetros, armas, vasos cheios de água benta para libações, incensários, incenso e mirra. Intérpretes, os sacerdotes eram personagens da família de Osíris: Shou, Geb, pai e avô de Osíris, Hórus, seu filho, Anúbis, Thoth, seus irmãos e pais e filhos de Hórus. Pelas  mulheres: Isis, Nephthys e outras deusas que de vez por vez faziam o papel de carpideiras. Os sacerdotes também recitavam textos.

 

O drama, dividido em vinte e quatro cenas – uma por hora – acabava com a  ressurreição de Osíris. Vários elementos teatrais estavam juntos: a mímica, realizada por parte dos deuses presentes na ação; a recitação de poema; o coro de carpideiras, cujos lamentos eram apoiados por instrumentos musicais. Foram ainda mais longe. Em um texto recentemente decifrado, encontramos o livro completo de espetáculo sobre a morte de Hórus. Há mais do que recitação para os atores; agora, apresentam os seus papéis com a atuação. Eles vêm e vão, e um deles aparece num carro. Ação e emoção são seguidas pelo comentário de um coro de camponeses. É dividido em três episódios, separados por declamações e danças líricas. Tudo isso um milênio antes da tragédia Ésquilo.

 

 

Leia aqui a segunda parte do artigo

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