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Papo com Paroni | “Nathan, o sábio”

Publicado em: 30/09/2013 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

O alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) tem uma obra parecida com a do dramaturgo italiano Carlo Goldoni (1707-1793): a invenção do teatro burguês. Mas enquanto Goldoni escreveu mais de cem comédias, Lessing ficou no plano teórico e foi um grande, senão o maior, crítico teatral de todos os tempos. Escreveu peças com heroínas, em pleno século 18. “Nathan, o sábio” (no original, “Nathan der weise”, de 1779). Este exemplo máximo de sua obra discute as três religiões “do livro”.

Aqui, divido com vocês a tradução e a adaptação que fiz de um trecho da peça, com a resposta de Nathan ao Sultão Saladino, sobre qual a religião mais verdadeira entre elas. Impressionante ponderar hoje que um texto tão preconizador da tolerância religiosa e humana seja o fundador de uma cultura, a alemã, que, um dia, tenha se deixado cegar pela visão “higienista”, que resultou no Holocausto.

Do Ato III cena VII

Nathan:

Muitos e muitos anos atrás, vivia no Oriente um homem que possuía um anel de valor incalculável, fruto de mãos habilidosas. A gema era uma opala iridescente de cem cores, a qual possuía a virtude secreta de fazer amáveis diante de Deus e dos homens quem a portasse com a mesma confiança. Nenhum milagre, portanto, se esse homem, esse oriental, não tirasse nunca o anel do dedo, e estudou-se o modo para que este permanecesse sempre em sua casa. Tal modo foi o seguinte: ele deixou o anel como herança ao seu filho predileto, estabelecendo que este, por sua vez, o deixasse ao predileto, e que de geração em geração este predileto, sem menção à ordem de nascimento e somente em virtude do anel, fosse o chefe, o príncipe da Casa. Entendeu bem, sultão? (…)

Assim, de filho em filho, finalmente o anel caiu na mão de um tal que tinha três filhos igualmente devotos; ele não podia fazer menos que amá-los todos igualmente. De tanto em tanto, ora um, ora outro, ora o terceiro. Assim que – cada um a turno se encontrasse a sós e sem os outros dois a disputar o sensível coração do pai – este parecia-lhe mais digno do anel. até que, de fato, ele teve a pia fraqueza de prometer o anel a cada um deles… Foi-se adiante assim por um bocado, mas a morte se aproximava. Eis o bom pai encrencado. A preocupação de não entristecer dois de seus filhos, os quais confiam plenamente em sua palavra, o atormenta. O que ele faz? Manda em grande segredo chamar um ourives, ao qual encomenda dois outros anéis, ao molde do primeiro, recomendando-lhe não economizar dinheiro nem trabalho, para que fiquem idênticos àquele. O ourives o consegue perfeitamente. Quando entrega a obra, nem mesmo o pai concede discernir o anel primitivo entre os três. Muito satisfeito, chama seus três filhos e dá, a cada um, a sua bênção e o seu anel… E morre…

(…)

Assim que o pai morreu, cada um levava o seu anel e, portanto desejava ser o chefe da casa. Fizeram-se investigações, surgiram lides e querelas; mas o verdadeiro anel não se pode identificar. (…) Quase ao mesmo tempo, como hoje, não se pode identificar a religião verdadeira.

Saladim:

Como? Seria esta a resposta à minha pergunta?

Nathan:

Pelo menos é a minha justificação, se não sei distinguir entre os três anéis que o pai encomendou com a intenção de que não se pudessem distinguir.

Saladim:

Os anéis?… Não brinque comigo!… As religiões que eu acabei de citar distinguem-se perfeitamente ate pelos costumes, pelos alimentos e pelas bebidas.

Nathan:

…e só isso, não no fundamento. Por que estas não se fundam as três na história escrita ou repassada? E sobre o que se funda a história, se não sobre a fidelidade e sobre a fé? Ora, qual fidelidade? Qual fé havemos de colocar em dúvida? Certo, aquela dos nossos, aquela daqueles de cujo sangue surgimos, e que desde a infância nos deram tantas provas do seu amor; que nunca nos enganou, exceção onde o engano nos era saudável. E como poderia eu, portanto, ter menos fé nos meus pais daquela que você tenha nos teus? Ou vice-versa, ou posso eu pretender que você desminta os teus pais para que eu não tenha de desmentir os meus? Ou vice-versa, e isso que eu digo a ti e a mim, fale também parta o cristão? Não vale? (…)

Mas voltemos aos nossos anéis. Os filhos, portanto, querelaram-se: cada um jurou ao juiz ter recebido o próprio anel diretamente da mão do pai – o que era a verdade – depois de haver já há muito recebido a promessa de ser destinado ao lugar privilegiado que o anel implicava – e isso também era a pura verdade. Ora – raciocinava cada um dos filhos – o pai não pode ter me enganado;  e antes de suspeitar isso dele, de um tão amoroso pai, eu devo acusar de falsidade os meus irmãos – por quão disposto eu esteja sempre a pensar senão boas coisas deles – e saberei bem descobrir os traidores para vingar-me. (…)

Disse o juiz: “Ou me trazem aqui imediatamente esse pai, ou os expulso do tribunal. Acaso acreditam que eu estou aqui para adivinhações? Ou devemos esperar que o anel autêntico abra a boca e fale?… Mas, alto lá! Vocês me dizem que o anel genuíno tem um mágico poder de deixar-vos amáveis aos homens e a Deus. Então, o que decide, já que os anéis falsos não possuirão tal dom é… Ora, quem é entre vocês o herói dos outros dois? Digam! Ah, ficaram quietos? Os anéis não têm poder para os externos? Cada um de vocês não vai além de? … Ah, nesse caso são todos vocês charlatanizadores dos charlatões… (segundo a palavra de Santo Agostinho, decepti deceptores, n.t.). Vossos anéis são todos falsos, e o verdadeiro anel foi perdido, para esconder a perda e tentar remediar, vosso pai fez fabricar três no lugar de um. Portanto – prosseguiu o juiz – se vocês não se contentam com conselho no lugar de sentença, sumam-se! O meu conselho, porém, é que vocês aceitem a coisa como está; cada um de vocês recebeu o anel diretamente do pai, e cada um de vocês o tome por verdadeiro. É possível que o pai não quisesse tolerar por mais tempo dentro de sua Casa a tirania daquele único anel; é certo que eles os tenha amado igualmente a todos os três, porque não quis humilhar dois para exaltar um terceiro. Está bem! Imitem agora vocês aquele amor incorruptível e livre de prejuízos! Compitam entre vocês para evidenciar a virtude daquele anel! Sustentem tal virtude com a temperança, com a suportação cordial, com a caridade ao próximo, com a resignação à vontade de Deus. E quando as virtudes do anel manifestarem-se nos filhos e nos filhos dos filhos, daqui a mil e mil anos, eu os convido a voltar a este tribunal. Um homem mais sábio que eu aqui estará sentado e pronunciará a sentença. Sumam! (…)” Assim disse aquele juiz modesto.

Saladim:

Nathan, caro Nathan! Os mil e mil anos previstos pelo teu juiz, ainda não se passaram… Aquele tribunal não é o meu… Vai!… Vai!… Mas seja sempre meu amigo.

* Maurício Paroni de Castro é coordenador do projeto “Chá e Cadernos”, na SP Escola de Teatro

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