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Papo com Paroni | Impossível não narrar IV

Publicado em: 01/09/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

(continuação do artigo anterior)

 

A Desconfiança

 

(…) começarei inventariando as obscuridades inerentes ao tempo: mistério metafísico, natural, que deve preceder a eternidade, que é filha dos homens. Uma dessas obscuridades, não a mais difícil mas tampouco a menos bela, é a que nos impede de estabelecer a direção do tempo. Que ele vai do passado para o futuro é a crença mais comum, mas a crença oposta não é mais ilógica — a que foi fixada em verso espanhol por Miguel de Unamuno: Noturno o rio das horas flui do manancial que é o amanhã eterno… Ambas são igualmente verossímeis — e igualmente inverificáveis.

Jorge Luis Borges (1899-1986), “História da eternidade” (1936); tradução Heloisa Jahn — Companhia das Letras, 2010.

 

Entre os 15 e 16 anos de idade, passei metade de um ano a ler dois atos de “Hamlet” todos os  dias, infalivelmente. Eu suspeitava de tudo, menos dessa peça que acredito ser o ápice do teatro. O que me fascinava era a desconfiança de que Hamlet fingia a loucura diante de sua corte – e de sua mãe. E desconfiava de que o fantasma do pai assassinado não existisse. Era o drama da consciência que modificava o conhecimento da realidade. Qual realidade seria confiável? Qual subjetividade? Hamlet estava no limite entre a certeza bíblica das coisas e a subjetividade da mente humana.

 

A fascinação do mundo como suspeita nos torna importantes. Para adolescentes e arrogantes isso é uma mina de ouro. Nossa contemporaneidade coroou essa mentalidade. Basta observar as propagandas de carros, rigorosamente iguais a brinquedos. Ou mulheres jovens com aspecto de anciãs retocadas a barbies, não pela loirice, mas pela redenção ao plástico. Basta decapitar bonecas em  cena (como fiz numa redução de “Otelo”) ou criar metáforas com crimes realmente ocorridos (como fez o Satyros em “Edifício London”) para arranjar sérios problemas de censura.

 

***

 

O alemão Immanuel Kant (1724-1804) declarou que conhecer uma coisa em si mesma é impossível; uma coisa só pode ser conhecida a partir do entendimento que dela temos a priori. A experiência do real, empírica pura, é incerta. A realidade da coisa em si é um mistério. Através de uma critica transcendental da razão, reconhecia fatores sociais, culturais e inconscientes na avaliação da coisa em si.

 

 

Isso só chegou integralmente ao teatro com o italiano Luigi Pirandello (veja no artigo “Pirandello, político até a medula”). Em sua peça mais representada, “Seis personagens à procura de um autor” (1921), a representação da morte da criança que origina o drama cria uma cisão que desmonta o próprio drama; alguns acreditaram que era mesmo a morte do ator/menino. Outros, que era somente uma personagem. Logo no comecinho, Julian Beck e Judith Malina encenaram “Esta noite se improvisa”, que lotou um teatro off Broadway por cinco meses. Inspirou o nome e a criação do Living Theather (*) – “Nós não representamos, nós somos”. Se entendermos a temática enquanto performance, o teatro começa somente quando a peça acaba. Tudo é teatro, tudo é contexto; o texto não passa de um contexto.

 

***

 

Hegel  historicizou o pensamento transcendental de Kant, criando uma dialética de tese, antítese e síntese subordinadas à historia enquanto ideia.

 

Dos filhos desse pensamento, Marx rechaçou o idealismo e declarou a materialidade da dialética histórica. Esta dependia da distribuição das condições materiais entre os grupos humanos. O motor da historia era a luta de classes. Pensamento resultante, a ideologia (que camufla a realidade  em favor da dominação) versus consciência de classe (que esclarece o que seria o modo “correto”) é a síntese da história. Criou um excelente método de análise histórica, mas também uma imunidade ideológica paralela: quem discordasse da análise seria um  inconsciente ou um reacionário opositor da emancipação da classe oprimida.

 

***

 

Um mundo de desconfiança: No meio do teatro engajado, um utilíssimo instrumento estético como a suspensão da desconfiança, pensado por Samuel Colleridge (1772-1834), acaba banido em favor da dialética de classe. Numa versão rasa, o teatro não dialético seria o teatro de uma suposta elite branca brasileira. Digo suposta porque essa gente nem sai de casa para ir ao teatro. Detesta qualquer teatro. Há uma série de quimeras funcionais a uma súcia pseudoartística que se abandona a pouquíssimos cultores que se visitam e se elogiam nos espetáculos (?) que fazem. Um círculo vicioso que nem vícios de verdade propõe.

 

Propõe ignorância articulada. Não é porque vivemos numa iniquidade social inadmissível que tudo o que estiver longe de  teses sociais é necessariamente a favor de uma “elite branca”. Desconfiar de tudo o que pensa e faz um burguês ao favorecer a apropriação do trabalho alheio é tão ingênuo quanto desconfiar de quem luta pelo progresso social. Nesse contexto maniqueísta e sectário, o teatro perde seu sentido.

 

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Sentido recuperável, se pensarmos numa crença popular italiana (**) sobre o imperador e filósofo estóico romano Marco Aurélio (121-180 dC.). Em seus triunfos, deificado e exaltado diante do povo, ordenava, ao escravo que fazia flutuar a coroa de louros sobre sua cabeça, sussurrar-lhe memento mori! – lembra que [como todos] morrerás! Igual atitude humana diante da certeza da morte deu sentido ao teatro de Beckett a Camus, a Sartre, a Shakespeare.

 

***

 

No percurso invertido narrado por Borges, a morte da certeza deu sentido ao teatro de Kantor. A visão daquelas paradas macabras que saíam do desenho atravessavam a moldura e entravam num quarto imaginário que coincidia com o palco, diante do público, era fantasmagórica. Insubstituível, irreplicável, a sua presença no palco projetava outra dimensão do universo. Ele dizia, com consciência, que era outro mundo e que a este “aqui não volto mais!”. Título, aliás, de seu penúltimo espetáculo.

 

***

 

A ciência tem avançado por caminhos menos ortodoxos. Talvez loucura surrealista, há pesquisas sobre se o universo tem duas dimensões a partir das tradicionais – altura, largura e profundidade; criamos o entendimento de espaço e tempo para podermos operar a nossa consciência de estarmos vivos. Isso implica que o que vemos e tocamos seria o resultado de uma consciência. No importantíssimo acelerador de partículas do Laboratório Fermi (EUA) se pesquisa seriamente que isso pode ser verdade. A questão está resumida aqui para quem se interessa por física quântica.

 

***

 

Sugiro uma inquietante suposição: Qual seria a função do teatro no contexto de o teatro virar o mundo real? Vice-versa, como seria transformar essa realidade? O que seria da consciência de transformarmos o mundo? Que tal reler, sob essa ótica, Artaud, Brecht, Shakespeare, Ibsen, Meyerhold, Buñuel, Appia, Gordon Craig? Perdoem-me, empiristas e historicistas. Acalmem-se, transcendentais.

 

E agora?

 

(*) Assista a um precioso documentário de uma hora sobre o Living Theater no Youtube

 

(**) Tertuliano (155-230 d.C), na sua Apologética, cita a expressão: Respice post te! Hominem te esse memento! Memento mori! (Olha para atrás de ti! Lembra-te de que és somente um homem! Lembra-te que deves morrer um dia!)

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