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Papo com Paroni | Graham Eatough e a Deriva Clássica

Publicado em: 19/05/2014 |

* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Em 1996, o Conselho Britânico organizou uma mostra de teatro escocês em Milão. Eu havia sido incumbido, por parte do CRT (*), da direção de um dos textos da mostra habitual política da difusão da cultura britânica, feita pelo British Council. Tradicionalmente a ênfase é dada à dramaturgia convencional de autores jovens. David Greig, cofundador da companhia Suspect Culture, de Glasgow, era um deles. Pude escolher entre muitos, mas chamou-me a atenção um texto chamado “Airport”, escrito em espanhol, inglês e basco. Não se tratava daqueles batidíssimos artifícios de tradução simultânea que assolam os textos cômicos sobre viagens, mas de uma contaminação dramatúrgica muito bem articulada sobre as contradições da linguagem atrelada à geografia.

 

Comuniquei ao Conselho Britânico a minha escolha e eles avisaram que o autor iria entrar em contato comigo para conversarmos sobre as linhas principais da direção que pretendia utilizar na encenação. Mas quem me telefonou foi o diretor artístico do Suspect Culture, Graham Eatough (**), outro fundador da companhia – era um inglês radicado na Escócia. Conhecedor da atávica pouca importância que o teatro britânico dá à encenação, achei que estava num terreno fértil – pela diversidade do contato. Graham, meio encabulado, confessou-me que eles trabalhavam de maneira diferente “do que habitualmente se faz em teatro”.

 

Graham Eatough

 

No Suspect Culture, o texto era escrito, sim, por um autor, mas diretamente seguido pelo diretor a partir de exercícios feitos com atores. Respondi-lhe que aquele era exatamente o tipo de trabalho que me interessava e que estava surpreso em encontrar um texto composto em varias línguas; isso, numa dramaturgia tão convencional quanto à britânica, cristalizada num modelo de rebelião já obsoleto (preconizado pelo Royal Court Theatre de Londres, mas esta estória precisará de outro artigo para ser contada). Com um sorriso cordial, Graham disse que aquela era a própria luta deles contra um estabilishment dramatúrgico já denunciado pelo crítico londrino Dan Rebelato. Cada vez mais ansioso, tomei o avião para Glasgow, conheci o Suspect Culture, seus integrantes e estabeleci com David Greig as linhas mestres da encenação italiana. O texto acabou sendo representado em inglês, italiano (no lugar do espanhol) e português (no lugar do basco) porque essas eram as línguas faladas pelos atores da minha companhia.

 

Tudo isso teria bastado para estabelecer uma forte identificação artística entre nós. Mas a minha permanência, a convite deles, para ministrar um workshop conjunto, selou uma relação que continua até hoje – sou associado artístico da companhia e assinamos várias direções em conjunto.

 

***

 

Uma das técnicas empregadas naquele workshop foi a base de um monólogo interpretado por Graham, ótimo ator que recebeu diversos prêmios: “One way street” (“Rua de mão única”), criado a partir do ensaio filosófico homônimo do alemão Walter Benjamin. A técnica chamava-se Deriva (***), praticada de forma performática por alguns artistas situacionistas europeus.

 

O texto do espetáculo, assim como o ensaio de Walter Benjamin, sugere a história de um grupo de turistas alemães em Paris. O guia do grupo, também alemão, se embebeda durante um dos passeios e, ao invés de guiá-los através dos óbvios pontos turísticos que podem ser vistos em qualquer cartão postal, os leva aos lugares que guardam as suas recordações. O seu primeiro beijo em Paris, o lugar onde costumava comer, o bueiro onde perdeu a foto de sua avó: lugares que descortinam recordações tão pessoais, capazes de formar um trajeto único – uma cartografia emocional.

 

Ao voltar para a Itália, trabalhei essa técnica exaustivamente, adaptando-a a meus ensaios, além de desenvolvê-la prática e teoricamente. Já no Brasil, o nome Atelier de Manufactura Suspeita veio à nossa mente enquanto associado artístico do Suspect Culture ao estabelecer um grupo em que o eixo da pesquisa apoia-se no ator como suporte da dramaturgia.

 

***

 

Mas o que é essa tal deriva?

 

É um exercício criado para trabalharmos de maneira prática a geografia humana sugerida pela obra de Benjamin, que definimos de cartografia emocional. O livro apresenta uma série de narrativas não lineares, ligadas por um profundo mergulho nas memórias pessoais a partir de estímulos dados por detalhes de lugares por onde Walter Benjamin passava em criança, ou lugares distantes que ele visitou em viagens – algumas narrativas lembram os fragmentos alucinados de Baudelaire em “Paraísos artificiais”.

 

O exercício consiste em criar situações reais e públicas nas quais o ator realiza um deslocamento a partir de premissas previamente determinadas e com um tempo de duração também estipulado. O exercício gera um fluxo de ações que é determinado pelo percurso feito. Ao término, são feitas as considerações e reflexões acerca do mesmo, para compreender e contextualizar a trajetória emocional.

 

Esse exercício é o ponto fundamental de minha indagação em que atores são suporte da dramaturgia, e não o contrário. Os ganhos dessa inversão de percurso são de vários níveis: conceitual, criativo e interpretativo.

 

1.     Predomina a ideia de que o subtexto, ligado às personagens, deve ser substituído pela ideia de contexto, ligada à ação, de modo a dar uma função ao ator dentro de um percurso. Explora conflitos suscitados nos interlocutores por situações particulares de seu próprio cotidiano.

 

2.    O percurso define a trama, a partir das crônicas jornalísticas originarias (de Voltaire de Souza, no caso do projeto “Aqui ninguém é inocente”), das quais se originará.  A trama é, em si, a contextualização. Ela está para o nosso teatro assim como a caixa preta está para o palco italiano.

 

3.     Esse percurso impulsiona uma dramaturgia que relaciona a biografia dos atores, com a biografia das personagens de Voltaire, com a relação com as pessoas e espaços da cidade.

 

4.     O ator pode assumir a responsabilidade que o transforma em criador não só do texto, mas da escritura geral do espetáculo – e performance –, que é o texto feito de palavras, gestos, sons, ritmo, trajetória real da estória e trajetória das subjetividades que dela fazem parte – incluídas as do público. Seu trabalho funde-se com um substrato artístico que, ao transbordar do âmbito pessoal, possibilita uma amplitude teatral infinita.

 

5.     O dramaturgo dialoga com o suporte trazido pelo ator: precisa impregnar-se desses novos elementos para, juntos, mas com atribuições precisas (cada um em seu oficio), elaborarem a escrita.

 

6.    Como diretor, organizo, com método, a orquestração e a comunicação entre essas esferas, defino parâmetros precisos de prática, de criatividade, estabeleço regras para que se possa estar aberto às descobertas.

 

Descobertas surgem somente se criarmos condições para que aconteçam. Uma epifania pode até vir por acaso, mas não as reconhecemos assim, e ficam impedidas de se repetirem. Se houver intenção na preparação de condições para achá-la, poderemos reconhecê-la, e ela não mais se perderá.

 

Nesse âmbito, o exercício da deriva é muito importante por combater a atitude geral do ator que representa que está representando. A deriva desconstrói tal vicio, pois é passível de ser vista como obra em si, gera reflexão e interesse por parte de quem vê; interfere de modo decisivo na comunicação e na presença do ator que a pratica.

 

***

 

Em “Rua de mão única”, Benjamin nos faz crer que somos obrigados a nos localizarmos a todo instante, mesmo se desejarmos nos perder. Nem um porre nos tira da linha. Ser “racional” seria ser condicionado a seguir placas de trânsito, indicações de direção, semáforos. Por extensão, seguimos modismos, tendências estéticas, manias coletivas, turismo de massa.  Viajamos milhares de quilômetros para posar diante de um cartão postal.

 

A coisa vem de longe. Quem quer que tenha visitado qualquer ruína de cidade romana com atenção, terá sempre notado uma rua de norte a sul chamada cardum e outra de leste a oeste chamada decumanum, com paralelas do mesmo nome. Ao conquistar e manter um império de dimensões continentais, os romanos faziam de tudo para localizar-se sempre. Seus atuais herdeiros, os norte-americanos, também têm essa mania. Se você visitou Nova York, mesmo desatento, notou que a cartografia urbanística é a mesma: um tabuleiro de xadrez.

 

Perde-se muito com isso. A sensação de desorientar-se em Marrakesh, onde se pode fantasiar raptos, escravidão branca e coisas afins, ficou fora de moda.  É bem mais comum um executivo de folga (de um dia) na Itália conhecer alguma lojinha globalizada em Veneza do que se perder naquela maravilha e descobrir que o que há de melhor na cidade não são apenas os museus, canais ou gôndolas: são também os bares atrás de portas de residências comuns. Oferecem uma infinidade de petiscos marinhos (cicchetti) inimitáveis, acompanhados de honestos vinhos brancos (ombretta de vin) e fofocas terríveis sobre a cidade.

 

Enfim, o ensaio de Benjamin sugeriu-me algo ainda maior: a existência, em qualquer cidade e nas pessoas que as habitam, de uma cartografia emocional a ser descoberta e desenhada.  É muito mais emocionante lembrar-se da primeira tentativa parisiense de paquera (com óbvias consequências desastrosas) em algum bar medíocre do que reconstruir uma visita com excelente guia turístico à Torre Eiffel. Às margens do Império, nós também herdamos a mania de nos localizarmos, embora as coisas sejam mais difíceis por aqui.  Tudo faz supor que a cidade seja feita para se perder e finalmente comprovarmos a utilidade do GPS de pulso, que fatalmente virará uma moda.

 

São Paulo tem poucos cartões postais, uns três ou quatro. Mas se praticarmos o raciocínio da perda e, munidos com a coragem da própria criatividade, aventurarmo-nos além dos Jardins, acharemos uma coisa incrível dentro de nós mesmos. Essa cartografia emocional nos levará à maior riqueza cultural de nossa cidade: as pessoas.

 

Por exemplo, na Mooca fechou-se recentemente a portinha de um espanhol que provavelmente introduziu a produção do churros na cidade – e marcou para sempre a infância de muitos paulistanos. Mais precisamente, ele “inventou” a máquina que molda a massa do churros diretamente na frigideira a partir de um simples furo numa lata de óleo. Pequenas emoções: a máquina é a mesma há mais de quarenta anos; ele só abre às sextas e sábados, das três às dez da manhã; o lugar fica cheio de notívagos simpáticos e trabalhadores; o café é perfeito para qualquer ressaca e acompanha o churros, levemente agridoce, como na Espanha; o lugar nunca foi reformado e é imitado pelos fakes dos jardins; é praticamente impossível ser assaltado por ali. Como a lugares assim provavelmente vamos só com pessoas muito próximas ou no início de um bom grau de intimidade, aí está um dos pontos cardeais (o cardum) da nossa geografia emocional, um modo de se perder no caminho do trabalho, congelado pelo quotidiano. (****)

 

(*) Centro do Ricerca per Il Teatro – Centro de pesquisa para o teatro, onde mantive uma companhia semiestável, e onde trabalharam quase todos os diretores importantes da cena contemporânea do século XX. Entre eles, Tadeusz Kantor, Eugenio Barba, Julian Beck e Judith Malina, Tadashi Suzuki, Richard Foreman, Lee Breuer, Peter Schumann.

 

(**) http://www.grahameatough.com/projects/suspect-culture/

 

(***) É bom que se precise: a Deriva chegou aqui por nossas mãos com o espetáculo “Aqui ninguém é inocente, exaustivamente praticada e divulgada em todo o processo itinerante de nossa criação do Manufactura Suspeita e do Linhas Aéreas, de Ziza Brisola, nos bairros de periferia de São Paulo, na Praça Roosevelt e em cidades do Interior de São Paulo.

 

 

(****) cf. Caldeirão Cultural, de Mauricio Paroni de Castro, revista Lounge, n. 6,edit. Price , São Paulo, 2003

 

 

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Dada a repercussão positiva de artigos em que relato experiências pessoais de palco, disponibilizo informalmente as principais influências que nortearam a construção e composição da poética que pratiquei na Itália, na Escócia, em Portugal e no Brasil. Serão artigos designados com a palavra “Influência” e foram publicados no livro “Aqui ninguém é inocente”, de minha autoria em conjunto com Ziza Brisola, pela Alameda Editorial em 2006, que gentilmente libera a publicação aqui. O livro fez parte do projeto Voltaire de Souza, o intelectual periférico, patrocinado pelo Fomento em 2005.

 

Assumo o risco de parecer pedante, mas parece-me coisa útil descrever experiências vividas com algumas das mais lúcidas mentes do teatro do final do século 20, no fim do período em que a ditadura militar brasileira depredou financeira e intelectualmente o nosso teatro. Principalmente devido a essa penosa situação, muitas personalidades citadas nunca – ou raramente – vieram ao Brasil. O contato de nossa cultura teatral com elas dependeu mais de artistas exilados ou radicados no exterior ou se deu exclusivamente através de livros e estudos universitários. Os verdadeiros dependentes da necessidade de troca artesanal, os atores, foram condenados ao isolamento. O inverso também é verdadeiro e o que se conhece do teatro brasileiro num universo dominado pelo eurocentrismo não faz senão que agravar essa triste realidade.

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