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Papo com Paroni | Convite à (re)descoberta de técnicas antigas – II

Publicado em: 16/03/2015 |

Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 

A máscara grega era sacra; a latina era técnica: ainda é útil saber a diferença
 
A palavra grega para máscara é prósopron: segunda face, face exterior, rosto fingido. Era parte de rituais coletivos como o coro. Em nível técnico – tekné=trabalho -, diga-se uma vez por todas, a máscara não tinha função na Grécia pré-tragica. A máscara trágica fazia com que outro rosto inteiro escondesse o real (ao contrário da meia-máscara da Commedia dell’Arte). Vestí-la pressupunha um ator sacro, segundo a teoria da origem do trágico formulada pelo sueco Martin Nilsson: (1)   “Na festa orgiástica do deus […], uma cabra era sacrificada, e seus cultores vestiam peles de animais sobre os ombros para cantar um lamento sobre o deus morto. A tragédia surgiu com os cantores vestidos de couro de cabra, chamados de tràgoi. O canto fúnebre no culto de Dionísio e o culto dos heróis fundiu-se na criação conhecida pelo nome de tragédia. Haviam extraído, do culto de Dionísio, o elemento mimético; e do culto dos heróis, a forma e o volume do material.
 
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Passemos a um trecho da Arte Poética de Aristóteles: (…) a comédia é, como já foi dito, a imitação das pessoas que valem menos, não por qualquer defeito, mas porque o lado pior é o ridículo. Um fato pior é ridículo, indolor e não prejudica, assim como a máscara cômica [ghèloion prósopon] é coisa feia, distorcida e sem sofrimento. Embora isso trate exclusivamente a máscara cômica como um estereótipo do feio, é impossível ver a máscara cômica e a trágica como dois elementos distintos. Não sabemos que tipo de máscara usavam os participantes da komos (2) e do ditirambo (3). É provável que membros da komos que sacrificavam a vítima representadora de Dionísio – o bode expiatório – vestissem a pele do animal. Se pensarmos nas funções, trata-se de ritual e não de necessidade técnica. A pele do bode pode ter sido a primeira máscara grega, uma origem da figura mítica do sátiro, parte do coro ligado ao sexo trágico. A máscara do sátiro é reconhecível pelas orelhas pontudas, cabelos, sobrancelhas franzidas, olhos arregalados e boca aberta. Pode ser o “sátiro sem barba” ou o “sátiro barbudo” descrito por Julius Pollux (4) no Onomasticon (liber IV).
 
A máscaras – trágica, cômica, satírica – clássicas e helenísticas eram feitas de  linho, madeira, cortiço ou couro. Materiais perecíveis, não puderam sobreviver ao tempo. Podemos somente imaginá-las a partir de pinturas em cerâmicas: um corpus de estudo real, mas atenção: são fontes indiretas, inventadas pelo pintor da cerâmica
O é mais provável? Não se sabe. É historicamente tradicional supormos que o primeiro ator escondeu o rosto sob uma máscara improvisada. Terá sido  Téspis, o primeiro vencedor do agon (concurso) trágico durante da Grande Dionisíaca de 535/532 a.C? A figura de Téspis é um mistério histórico e mitológico.  Supõe-se que esse ator-dramaturgo de antes de Esquilo agisse sem o prósopon, mas o coro certamente cantava e dançava mascarado (5).

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Já uso de máscaras no mundo latino não foi contínuo como no grego. Para o romano, mascarar-se referia-se a uma pessoa precisa, daí o termo vulgar que indica o indivíduo. A mascara em Roma foi tardia. Além disso, a aparência das máscaras não reflete maior humanização da figura.

Não sabemos ao certo se eram usadas máscaras na época de Plauto (250/55-184 a.C) e Terêncio (185/4 – 159 a.C). Alguns dizem que o ator romano usou a máscara desde o início, enquanto outros afirmam que foi apenas em um período posterior, e que o baixo status social do histrião negou-lhe um objeto com claro valor religioso. Mas quando relataram o uso da máscara por Rócio (morto em 62 a.C), um grande ator que sofria de estrabismo, a elitização perde a sua importância no contexto. A questão, portanto, está aberta. Através de Cícero (55 a.C), sabemos os romanos “não aplaudiam muito Rócio, mesmo com a máscara em seu rosto[…]”; o gramático Diomedes diz que os atores ” […] usavam perucas, não máscaras.”

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Qual era, portanto, a importância da máscara romana? No teatro  plautino, a máscara teria sido utilizada para treinar as expressões faciais dos atores nos ensaios; atuavam com o rosto desvendado. Um uso técnico, prático, não-religioso, antagonismo típico do mundo romano em relação ao grego… para além de qualquer consideração sobre a posição social dos atores. Os gregos utilizavam a máscara de maneira sacral (a la Grotowski) e os romanos proibiam tal uso, o que levou o espírito prático dos atores romanos a utilizarem-na como caminho técnico (a la Lee Strasberg). Qualquer semelhança não é mera coincidência.
 
 
Instruções para leitura

As traduções acima, muitas apócrifas, estão organizadas de acordo com o que recordo de aulas e experiências práticas e diretas importantíssimas realizadas no período em que fui aluno da escola do Piccolo Teatro, hoje Paolo Grassi, de Milão. Ela foi dirigida por Ruggero Jacobbi por anos, depois que ele regressou do Brasil, empurrado pela ditadura militar. Aparentemente, italianos transmitiram um conhecimento esquecido que faz parte do teatro brasileiro.
Cito a maioria dos nomes de quem recebi tal precioso conhecimento, que tenho o prazer e a obrigação de compartilhar. Este era o meu objetivo existencial quando deixei São Paulo, logo depois da ditadura militar que depauperou o nosso teatro. São eles, entre estudiosos de teatro popular, críticos de jornais importantes e aulas de história da dramaturgia, do espetáculo, das máscaras, da cultura folclórica: Ettore Capriolo, Alberto Chiesa, Renata Molinari, Alberto Leidi, Maria Grazia Gregori, Remo Melloni, Lorenzo Arruga, Renato Palazzi e outros contatos esporádicos, como Carmelo Bene e Ettore Imparato.
Não é casual que o meu raciocínio tenha também seguido muito de fontes teóricas citadas e explicadas pela estudiosa Eva Marinai; mas é também coincidente, a partir do percurso trilhado por toda uma geração de encenadores e estudiosos, e com os mesmos mestres. Ela é muito próxima do CSRT de Pontedera, onde muitos espetáculos meus foram apresentados. Eu era diretor de uma companhia de atores semi-estável do CRT de Milão. Não as teria traduzido não fossem as suas explicações.

Utilizei textos originais gregos e latinos, mas infelizmente não conheço o grego a ponto de não me servir de referências auxiliares (pela ordem) em latim, italiano, inglês e francês. Peço indulgência pelas imprecisões provocadas pela minha edição e pelas lacunas, propositais – sinalizadas assim: [ ] e (…). São de minha responsabilidade, fruto de uma leitura intuitiva, que, calorosamente, convido leitor a fazer também. Não se trata de filologia – apropriada a um conhecimento produzido em universidades. Prefiro tratar aqui de um conhecimento prático, fruto de artesanato efetivamente útil para quem faz teatro no palco e utiliza conhecimento intelectual para realizar seu trabalho formal. Muito do depauperamento causado em nosso teatro pela ditadura foi causado pelo cancelamento selvagem de tradições artesanais, orais e … quotidianas. Foi assim, por exemplo, na ditadura de Cromwell, que acabou com a transmissão e desenvolvimento artesanal da práxis teatral elisabetana e a relegou somente ao suporte escrito. A substituição delas por conhecimento intelectual desprovido do crivo do palco e da dramaturgia de cena causa até hoje um dano que procuro mitigar com o que vem a seguir. Portanto, dou a estas o nome de convite à (re)descoberta de técnicas antigas, tradicionais e fundamentais para um teatro digno do nome.

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(1)   in Der Ursprung der Tragedie  – A Origem da Tragédia München, 1911
(2)   Komos, κῶμος, procissão ritual em que os participantes promoviam uma atmosfera de bebedeira, loucura, música jocosa, obscena e alusiva ao sexo.
(3)   Ditirambo, διθύραμβος, o canto coral em louvor religioso a Dioniso. Aristóteles o considera como a origem da tragédia.
(4)   Julius Pollux,  Ἰούλιος Πολυδεύκης, gramático e sofista grego do século 2 dC, de Naukratis, Egito. O Imperador Commodus, por sua oratória. nomeou-o professor de retórica na Academia de Atenas. Escreveu o Onomasticon, Ὀνομαστικόν, um dicionário de sinônimos e expressões organizados não por ordem alfabética, mas de acordo com a matéria.
(5)   Il Teatro Greco nell’Età di Pericle AA. VV, Il Mulino, a cura di Cesare Molinari, Bologna, 1994
 

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