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Literatura, ficção e metáforas físicas; Por Marcio Aquiles *

Publicado em: 18/01/2022 |

A forma como entendemos o conceito de literatura é bastante recente. Como fenômeno histórico e também alinhado a diversas teorias críticas, depende de variados contextos que permitem uma delimitação atrelada a diferentes períodos, mas grosso modo essa definição familiar como hoje a compreendemos vem do século XVIII. Tais quais os critérios do que seria uma ficção potente – estes, igualmente, com alta variabilidade. Embora os estudos literários sejam sistêmicos a ponto de apaziguar muitas subjetividades e juízos de valor na análise de uma obra artística, é incontornável o fato de que qualquer fenômeno natural está sujeito, em maior ou menor grau, ao olhar do sujeito que o interpreta.

Assim, dizer o quão original ou sofisticado é um material ficcional (um romance, por exemplo) não é uma tarefa unidirecional, trata-se de uma incumbência que demanda escolhas. Pessoalmente, tanto como escritor quanto crítico, tomo por operação estimar principalmente dois elementos. O primeiro deles é a elasticidade idiomática, em que o autor deveria demonstrar habilidade em tensionar o idioma e promover pequenas revoluções com a língua, alargando as fronteiras do até então realizado no campo literário. O segundo, tão importante quanto, é a intensidade ficcional, por meio da qual precisaria propor a fuga de lugares-comuns e ter ousadia ao instaurar temáticas não convencionais.

Marcio Aquiles é um dos vencedores do Prêmio Biblioteca Digital 2021

Ainda considero as inventividades formais e de enredo – que ganharam vida e relevo durante o romantismo – como dispositivos decisivos na construção de uma literatura relevante. E aqui tomo a liberdade de instituir o paralelo físico com a eminente lei de Lavoisier (1743-1794), “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, igualmente válida para os propósitos deste texto. Deixo patente de início, portanto, que é evidente que a literatura é construída principalmente por meio de intertextualidades, seja com o cânone, a cultura local ou o espírito do tempo, porém é crucial que a obra proponha novidades ao leitor.

Antes do romantismo, a originalidade não era uma questão. Depois, transformou-se num pilar fundamental – e que vai exigir, àqueles que dela fizerem pouco caso, um assombroso tour de force, pois buscamos, com a arte, sobretudo o novo, em contraposição à rotina de repetições de nosso cotidiano. Pode-se, naturalmente, utilizar o cânone ou mitologias consagradas para criar narrativas deslumbrantes, como fizeram, para ficar em duas referências recentes e convergentes, uma do século XX e outra do XXI, James Joyce e Margaret Atwood em Ulysses e The Penelopiad, respectivamente, em suas releituras/desconstruções do monumento erigido por Homero. Mesmo o pastiche, procedimento pós-moderno por excelência, vai requisitar dos escritores algum nível de invenção. Não existe, desse modo, muito segredo: aos escritores cabe o papel de criar novos mundos – ou, no mínimo, reinterpretá-los com maestria.

Isso não significa que todas as narrativas ficcionais precisam de malabarismos extremos em seu conteúdo ou na constituição do signo linguístico. Uma boa história, mesmo que simples, pode resultar em sólida literatura. Compete aos autores com ímpeto criativo, porém, tentar desenvolver fábulas com um mínimo de singularidade – já que, conforme nos inspira Lavoisier, o ineditismo absoluto é teoricamente impossível – para bem-estar geral e relevância da literatura. É assustador perceber, por exemplo, a quantidade descomunal de escritores-jornalistas ocidentais (a maioria de meia-idade, a maior parte homens) que se arriscam na prosa literária com narrativas memorialísticas sobre suas infâncias nostálgicas (nem tentam disfarçar), com variações mínimas em termos estruturais ou imaginativos, redundando em tramas óbvias e consenso vulgar. Proibido não é, no entanto isso deixa a corda da literatura frouxa, quando a tarefa do escritor seria, a meu ver, esticá-la ao máximo.

E aqui entra a segunda metáfora com o reino da física. A segunda lei da termodinâmica, síntese sublime de como funciona o nosso universo, aponta: o grau de imprevisibilidade de um sistema aumenta com o tempo. Ou seja, basta seguir esse modelo entrópico natural a nosso favor e permitir aos nossos anseios criativos que a aleatoriedade incremente nossa ficção. A cada dia, ano, século, o mundo acumulará nossos vocábulos, idiomas, acontecimentos históricos, mitologias, fontes de inspiração, num processo expansivo que tende ao infinito. Por que escrever mais um livro sobre o filho que se revolta contra o pai?

Ok, autores geniais, alguns poucos no topo da cadeia, conseguem fabricar cosmos com água e farinha. A nós, contudo, que por prudência ou juízo deveríamos nos considerar medianos (sob risco de um tombo colossal, caso as expectativas não se cumpram), convém trabalhar duro, quebrar a cabeça e tentar criar algo cuja forma e conteúdo almejem o extraordinário e extrapolem o cotidiano clichê. Esse deveria ser o norte da literatura.

* Marcio Aquiles é escritor, crítico literário e teatral, autor dos livros “Artefato Cognitivo nº 7log5ie”, “A Cadeia Quântica dos Nefelibatas em Contraponto ao Labirinto Semântico dos Lotófagos do Sul” e “A Odisseia da Linguagem no Reino dos Mitos Semióticos”, entre outros. Em 2021 foi contemplado com o Prêmio Biblioteca Digital, na categoria romance. Desde 2014, coordena os projetos internacionais da SP Escola de Teatro.




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