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Digressões sobre dois dramas vivos mesmo com plateias vazias

Publicado em: 12/03/2021 |

Mauri Paroni

Chá e Cadernos, 100.33

Ainda sobre Tchekhov

O russo Anton Tchekhov (1860-1904) é, antes de ser o nome maior do naturalismo, o refinado  narrador de relações humanas privilegiadas que sua obra constrói entre os próprios fruidores e realizadores de seus textos.

O Tabaco faz Mal (О вреде табака) foi por ele escrito em 1886 e revisado pelo autor em 1902. A personagem única é Ivan Ivanovič Njuchin, marido da diretora de uma escola de música posta num internato feminino. Esta lhe dá a tarefa de dar uma palestra sobre os danos do tabaco, embora ele mesmo seja um fumante. Ele aproveita o fato de ela não estar presente para falar de seus problemas com ela, afirmando que ela é despótica, mesquinha e mau humorada. Expressa seu desejo de fugir de uma vida que quer esquecer. Chega ao ponto de rasgar e pisar na roupa  que veste com que se casou e dá palestras. No final, vendo que a esposa voltou, veste-se novamente e roga à platéia informar-lhe que a palestra sobre os danos do tabaco já aconteceu.

Presentemente, projeto uma montagem desse texto filmada diante de um plateia vazia. Será uma palestra de um fragilizado dependente químico a uma plateia Imaginariamente lotada com notável influência no desfecho da trama. É a narração ficcional pelo protagonista filmada, física e concretamente, diante do  ambiente vazio; em contradição real  com quem vê o evento no suporte digital, privilegiado no projeto.

É sempre muito difícil escrever projetos de direção para editais e manter o foco no publico e nos artistas com que iremos  nos relacionar; evito projetar espetáculos ou tramas somente para contemplar a quintessencial abstração de um edital, que, a sermos perfeitamente francos, sabemos que é o que faz aprovar os recursos físicos; desse ponto de vista, editais criam um gigantesco mesmo espetáculo em tudo quanto é lugar. Por outro lado, não saberia indicar uma outra política cultural para as artes do espetáculo. Elemento mitigador dessa condição é certamente uma pedagogia que leve em consideração é importantíssima. Existe. É possível: Um dos pontos excelentes da SP é que se estuda em meio à dinâmica interna das estéticas e personalidades presentes, necessariamente heterogêneas – a complementaridade resultante constrói boas relações humanas, base de qualquer teatro ou cinema de qualidade.

Tenho a presunção de não saber o que é, se cinema, teatro, exercício, o que ando fazendo; sei que é fluxo vital  significado enquanto arte. Além de ser o primeiro ponto do curso de  extensão sobre roteiro (link aqui!).

Este, aliás, começa com a psicologia do realismo na montagem,  descrita por outro russo, Sergei Eisenstein, pelo dramaturgismo contemporâneo e por práticas concretas e o respeitadoras  da própria invenção criativa dos participantes.

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Ainda sobre Pirandello

Vestir os nus é um drama de Luigi Pirandello (1867-1936) escrito entre abril e maio de 1922. Foi apresentado pela primeira vez no Teatro Quirino, em Roma, em 14 de novembro de 1922, Muitas de suas personagens, se não a maioria, criaram-se com a Companhia Maria Melato e Annibale Betrone.                              

A protagonista Ersília Drei, salva depois de tentar o suicídio, conta a uma jornalista uma mentira sobre o motivo que a levou a tal atitude. Essa mentira, publicada, atinge outras personagens de sua estória que, então, vêm à procura dela, uns para exigir retratação, outros para tentar corrigir erros passados. Um escritor, que pensava em viver um romance com Ersília, acaba por ver nela uma excelente personagem para um romance ou uma peça.

Estória daqueles que se sentem nus, por se considerarem insignificantes, Ersilia veste roupas impostas por outros. Assumindo involuntariamente ser um “nada”, ela deseja ser alguma coisa. Aceita ser qualquer coisa que outros queriam que fosse. Governanta na casa do cônsul Grotti, em Esmirna, Ersilia fica noiva do tenente de marinha Franco Laspiga, que mais tarde a deixa. O cônsul aproveita seu estado de espírito desolado para travar um relacionamento sexual abusivo com ela, que não nota que a filha daquele, não é mais vigiada, cai do terraço, e morre. A mãe da menina escorraça Ersilia, que, obcecada pelo o remorso e para acentuar o desgosto que tem por si mesma, entrega-se ao primeiro transeunte e decide se envenenar. Internada no hospital, certa de morrer, romantiza uma lembrança menos “desonrosa” da realidade que viveu e conta que  se envenenou por ter sido abandonada pelo namorado. Sua história termina publicada, despertando emoção e participação do público em sua tragédia. Até o tenente Laspiga, que está prestes a se casar, deixa sua noiva. Esta, tocada – mas promotora –  pela história da “pobre mulher abandonada”, pede que ele se ofereça a Ersilia para reparar o mal feito. O cônsul, por um lado, nega o que os jornais dizem, mas ao mesmo tempo gostaria de tê-la de volta como amante. Laspiga descobre que a jovem era amante do cônsul e a acusa de ser prostituta, justificando o linchamento social pelos que, hipócritas, sentiam pena dela: julgam-na “devassa” e culpada pela morte da criança. Ninguém mais acredita em sua “estória romântica”. Ersilia, exaurida, envenena-se mais uma vez.

Emerge a estória de uma mulher que se vestiu de muitas maneiras, todas adequadas à vida burguesa, em que nenhum dos figurinos lhe caiu bem. Despede-se da vida “nua” falando àqueles que assistem à sua morte, Laspiga e o cônsul: “Vá, diga, você à sua esposa, você à sua noiva, que esta defunta – aqui estou (interjeição) – não pode se vestir”. No original em italiano: «Andate, andatelo a dire, tu a tua moglie, tu alla tua fidanzata, che questa morta – ecco qua – non s’è potuta vestire»

Pirandello era, sim, uma pessoa de letras, mas sobretudo de palco. Palco físico; o que o impelia a empregar interjeições e linguagem coloquial de seus atores, mais que as impostações marcianas, comuns a maioria – deixe me dizer – dos atores e diretores.

Escritores, narrações em linguagem espúria, grupos e suas conveniências; sempre a negação do evidente. Parece escrito ontem de tarde, diretamente para nós. Talvez seja verdade. Talvez.

Links para os outros escritos sobre Pirandello nesta coluna :

Papo com Paroni | É possível morrer, mas não é possível encenar: O testamento de Pirandello

“Vivemos o preciso momento em que comparecem distintos projetos de História, entre laicismo e teocracia; o antagonismo entre eles começa a adquirir contornos mais nítidos na inversa proporção da definição das armas e lugares onde a briga irá se desenrolar. Promova-se, então, o exercício da interrogação sobre os limites entre ficção e realidade, entre a arte e a barbárie, comuns a quaisquer civilizações. Essa é uma função que o teatro – só ele justifica a nossa existência artística – pode, ainda, desincumbir-se com baixo custo, sem guerras e demais esquizofrenias sociais.”

Pirandello, político até a medula

“Pirandello é um emblema do século 20: depois de publicar novelas e romances recebidos discretamente, cria peças idênticas e vira um dos dramaturgos mais famosos do século. Nestas, declarou que aos mortais não é concedida qualquer identidade, além da verdade resultante da convenção de alguns documentos. Se estes documentos faltam, a realidade é incognoscível, todos podem reduzi-la ao que se quiser.”

Traduzir a dramaturgia: encenar Luigi Pirandello

“Não me recordo bem o nome do diretor italiano fez uma comparação muito apropriada sobre como Pirandello via o teatro. Ele citou um texto de Borges em que o filosofo árabe Averróis, ao traduzir a Arte Poética de Aristóteles, não conseguia entender o que era a síntese da vida no teatro através da tragédia e da comédia. Sequer sabia como traduzir tais palavras. Pirandello, de sua patriarcal Sicília árabe-escandinava (os grandes autores teatrais italianos eram fortemente ligados aos dialetos regionais, como a verdadeira cozinha da península), via o teatro da mesma forma: reinventou-o sem sintetizar arquiteturas estéticas, sem construções alheias ao tempo e espaço reais. Ligado, de maneira pura, ao fluxo dos acontecimentos da vida. Simplesmente, elaboração do choque entre a realidade da vida como ela é e a construção das aparências de que se nutre o teatro.”

Anton Tchekov

 

 

Mauricio Paroni 

diretor e dramaturgo, coordenador da Biblioteca da SP Escola de Teatro. Foi professor residente da Royal Scottish Academy of Music and Drama de Glasgow, Reino Unido, e da Volda Hogschule, Noruega. Recebeu o prêmio “il Contemporaneo” de melhor direção, em 1993, pelo seu trabalho em “Oplà siamo vivi”.