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Certas molduras provocam mais que a tela

Publicado em: 01/04/2021 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.36

Exigência qualitativa, no cinema e na fotografia há a imprescindível precisão do enquadramento. “Inquadratura” em italiano – muitos utilizam a palavra “plano” –, onde há vários enquadramentos, mas esta questão não é a que quero tratar. Quero tratar do que temos vivido em termos de transformações de nosso tempo. Prefiro, portanto, a referir-me à porção do espaço físico enquadrado pela lente da câmara em sentido mais amplo que o da técnica cinematográfica. No quotidiano geral, filmar tem sido pela câmara do telefone; já é uma imensa diferença que tem mais a ver com o espaço “onde” e “de onde” e com a etimologia da palavra grega Theatron, “de onde se vê”.
Insisto em lembrar que, na histórica continuidade entre os rituais fúnebres sagrados egípcios para a tragédia e a comédia gregas, houve uma diferença fundamental: mais que os ditirambos, os rituais, as tramas aristotélicas, a Grécia consolidou um edifício físico onde acontecia o fato teatral. Fosse performance, narração poetizada, ou o que se prefira chamar, o tanto de emoção, religião, morte, vida, peripécias, catarses, hybris, e por aí vai, tinha um edifício público só para aquilo. Um contexto cuja acústica impressiona até os turistas mais incautos, ao cair de uma moeda no palco. O mesmo ocorreu séculos mais tarde no teatro japonês, dos funerais ao drama Noh e teve análogos resultados estéticos, mas este será um dos temas a ser abordado em um próximo artigo.

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Neste último ano e meio há um privilégio nosso, leitor, mesmo que esteja longe de compensar o contexto assustadoramente letal em que estamos inseridos: a arte imortal do teatro, o cinema mortal, as lives – ou o que quisermos chamar -, passam pelo enquadramento de um aparelho chamado têle (longínquo) phonés (som, voz, fala). Telefones, originariamente, transmitiam a voz, mas hoje fazem de tudo. A mesma voz que era transmitida pela persona, a máscara dotada de megafone dos teatros clássicos, dos riots, dos caravançarás muçulmanos, dos pajés, dos babalaôs – contadores de história não escrita. O fundo, o campo, virou um enquadramento. São a dimensão do contexto.

Não me detenho ao telefone multifuncional – haveria muito a ponderar – mas o que fazemos, mais da metade da imensa população mundial, do catador de lixo ao ceo da Samsung, é que enquadramos, via texto ou imagem fotografada, tudo o que nos se permite delimitarmos, com precisão, ao espaço filmado. Ao mesmo tempo, excluímos todo o resto, que permanece “fora de enquadramento”. Ou seja: fora do campo do observador, autor ou espectador. Fora do plano, dentro do plano, literalmente. Historicamente.

A pandemia empurrou a fatualidade do que já domina há décadas a comunicação entre indivíduos isolados dentro das massas, que não é teatro, cinema, mas é internet, é rede social. É um telefone meio capenga e truncado. É, como o espelho lacaniano do outro de si, como o inconsciente coletivo junguiano, o desespero de Emil Cioran (1911-1995). É como um primeiro beijo entre apaixonados quando um relâmpago acidentalmente acaba com a energia elétrica.

Numa mais severa formulação para o que vivemos, diria que é como sair de uma moldura. Disse essa expressão repetidas vezes Tadeusz Kantor (1915-1990) quando criava/dirigia “Um Matrimônio”, nas doze lições milanesas que presenciei em 1986 quando aluno da Escola de Arte Dramática de Milão (https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-lembranca-de-kantor; https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-tudo-muito-limpinho); era a presença perene do “pobre quarto do imaginário”. Havia sempre uma porta de entrada e outra de saída, de cuja dimensão bidimensional partiam desfiles de figuras nascidas em seu inconsciente para uma tridimensionalidade vivida no palco; Postas nele não para, mas diante do espectador. O fruir de sua obra era compreensível em si, como qualquer pessoa ignara musicalmente notaria se um executor de uma obra de Mozart errasse uma nota. Oriundo do grupo surrealista de André Breton (1996-1966) & Cia, Kantor é e será O artista contemporâneo come il faut. Dirigia cada replica dali mesmo, do palco. São palavras suas, mais eternas que qualquer bíblia: “O espaço da vida é o espaço da arte; ambos confundem-se, compenetram-se e dividem um destino comum; A ‘quarta parede’ não tem sentido porque a necessidade da obra teatral reside nela própria; o espetáculo acontece não para alguém, mas na presença de alguém; atores não podem fingir uma personagem ou representar um texto; o drama e a vida coincidem na criação de um espetáculo-obra de arte. Enfim: de tudo se lembrar, de tudo se esquecer.”

Mais uma provocação:

“Sustento agora que uma verdadeira obra de arte seja fechada, inacessível. O papel do espectador consiste em manter-se à sombra dessa obra. Não é verdade que vamos a um museu para consumir arte. Foi o canibalismo burguês do século XIX o responsável pela glorificação dessa atitude não artística em relação a uma obra de arte”.

Nada pode substituir o que era ver pessoalmente ensaios e réplicas com ele, mas é já um ganho imenso de cultura artística entrar [e viver] ecos daquele seu lugar mental – sempre que se queira compreender a essência do roteiro do que parece mudar, hoje.

Tadeusz Kantor criando/dirigindo A Aula Morta [Umala Klasa] em Cracovia, fotografado por Włodzimierz Wasyluk. Copia da net, pelo autor.

De http://www.ddg.art.pl/kantor/index.html

Vale a pena visitar esse site, além de ler o que escreveu e declarou. Só a complementariedade entre seus títulos e obras já nos dá a vertigem da compreensão de nossa falsa realidade.