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Terceiro Experimento do módulo Amarelo por Sérgio Roveri

Publicado em: 02/12/2014 |

* por Sérgio Roveri, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Dinheiro e poder são, desde tempos imemoriais, duas das principais engrenagens que movem o mundo – e parece não importar muito a que ideologia política este mundo obedece: dinheiro e poder sempre estarão por trás de decisões tomadas em casas brancas, vermelhas e rosadas. Assim, é extremamente lógico, oportuno e salutar que uma instituição de ensino teatral que já nasceu provocadora e irrequieta como a SP Escola de Teatro tenha, de comum acordo com seus aprendizes, escolhido estes dois temas para direcionar os experimentos do módulo Amarelo, a cujo resultado tivemos o prazer e o desafio de acompanhar ao longo do último sábado, 29 de novembro. A origem deste trabalhoso processo remonta ao mês de agosto, quando, ao longo de três horas, os aprendizes participaram de maneira incisiva de uma mesa-redonda que, tendo como ponto de apoio a polêmica e irregular trajetória do empresário carioca Eike Batista, direcionou seu foco justamente para a discussão da equação dinheiro-poder. O livro “O capital no século 21”, do economista francês Thomas Piketty, e uma série de experiências pessoais ajudaram a encorpar o caldo da discussão, mas a cereja do bolo, durante as três horas, nunca deixou de ser Eike.

 

Figura ímpar entre o jovem empresariado brasileiro, Eike Batista se converteu aos poucos em um personagem teatral de rara potência: casou com a mulher mais desejada do Brasil em sua época, frequentou todas as colunas sociais disponíveis no mercado – interno e externo – foi invejado, copiado (talvez não no quesito capilar, mas provavelmente em diversos outros), incensado por governantes e apontado como exemplo da eficiência brazuca até que, após uma dessas improváveis curvas dramáticas nas quais a realidade costuma se mostrar mais surpreendente que a ficção, viu seu nome ser associado a tudo aquilo de que um empresário quer manter distância: prejuízos, demissões, falências, irregularidades administrativas, perda de patrimônio e, o que parece fatal para quem vive de negócios, o esfacelamento do próprio nome. Sugestão de algum personagem mais apropriado que ele para uma investigação e pesquisa teatral? Dou-lhe uma, dou-lhe duas… Vamos de Eike.

 

(Foto: Cristiane Camelo)

 

Um dos principais, e mais visíveis, ganhos dos experimentos, na totalidade do conjunto, é que a trajetória de Eike inspirou os aprendizes, sem jamais aprisioná-los. A figura do empresário podia ser reconhecida aqui e ali, até breves citações ao seu nome foram captadas, mas a imagem algo arrogante do homem de negócios não passou de uma pequena lâmpada a iluminar um conjunto de propostas e realizações que foi muito, e jogue-se ênfase na pronúncia deste muito, além do ponto de partida inicial. Pode-se argumentar, com razão, que este era o principal objetivo dos experimentos. Sim, mas quando se parte de um objeto tão cintilante quanto à vida de Eike Batista, não é desprezível o risco de se limitar a retratá-lo.

 

Peço desculpas, neste parágrafo, por mudar o tom narrativo e recorrer à primeira pessoa do singular. É que, para empregar uma metáfora do mundo dos negócios e das finanças, após ter visto a segunda fase de experimentos, realizada em outubro, eu retornei à sede da SP no último sábado para assistir às apresentações da terceira fase com a curiosidade de quem vai à agência bancária (Ok, podemos ser mais modernos, de quem acessa o site do banco) para conferir o resultado de uma aplicação. No mundo real das nossas parcas economias, a sensação desta checagem não costuma ser agradável: invariavelmente temos menos do que acreditávamos ter – e saibam que já tínhamos pouco. Porém, no mundo aparentemente menos predador da ficção teatral, vi com satisfação que os rendimentos foram muito mais generosos. No conjunto, houve uma inegável evolução entre os experimentos da segunda e terceira fase: atores com maior domínio cênico, dramaturgia mais elaborada, cenografia e sonoplastia (com a ressalva de algumas inevitáveis falhas técnicas que trouxeram certo prejuízo ao resultado final de determinadas cenas) em diálogo mais afinado com a proposta de encenação e uma concepção estética agora situada a quilômetros do que foi visto há pouco mais de um mês.

 

No entanto, e no mundo dos negócios sempre existe um no entanto, os rendimentos costumam ser acompanhados de impostos, pequenas taxas, embutidas aqui e ali que, se não chegam a comprometer o ganho total, nem por isso deixam de incomodar um pouco. Entre estes impostos, ainda para permanecer na metáfora das finanças, ouso dizer que o mais daninho continua sendo o dízimo devido ao maniqueísmo: se no extrato bancário nosso saldo está ou no vermelho ou no azul, sem variações cromáticas possíveis, na vida, e acima de tudo na dramaturgia, as pessoas/personagens não precisam estar confinadas apenas no preto ou no branco. Há uma convidativa palheta de cores entre estes dois extremos que pode resultar em tonalidades maravilhosas e inquietantes – e que por isso mesmo podem e devem ser exploradas.

 

Alguns experimentos, seja na totalidade ou em cenas localizadas, parece ter-se contaminado pelo discurso político e folhetinesco tão recorrente no Brasil de hoje. Um discurso que, para determinar ações, caráter, intenções, personalidades e atitudes de qualquer um, emprega como único termômetro o saldo bancário, a cor da pele ou o CEP residencial. Vilões aqueles que estão no azul, santificados os que estão no vermelho – e sem praticamente nenhuma possibilidade de circulação, entendimento ou diálogo entre estes dois universos em que os personagens não apenas nascem carimbados, mas ajudam a compor uma dramaturgia de castas. Ao empregar fórmula tão simplificada e maniqueísta, corre-se o sério risco de revestir toda e qualquer fábula de uma leitura moral tão previsível e cansativa que nem o recurso da farsa e da ironia consegue suavizar. Este é, a meu ver, o principal risco que se enfrenta ao se debruçar sobre um tema espinhoso como dinheiro e poder: o risco de não se ir além do figurativo, de não se ir além do que pode ser encontrado com mais facilidade e rapidez num verbete da Wikipedia.

 

No meu entender, a excelência de um ambiente pulsante como este encontrado na SP Escola de Teatro é um irrecusável convite para revirar o convencionalismo deste caldeirão, a turvar mesmo esta mistura social sem ter medo de saber aonde os resíduos irão se depositar. Afinal, qual o risco de descobrirmos, no epílogo da nossa história, que o nosso vilão não reside nos Jardins e nem tem carro importado? Como brilhantemente colocou a formadora Roberta Estrela D’Alva ao final de um experimento, por que recorrer a tanta explicitação e didatismo se o que está nas entrelinhas parece ser a parte mais cruel do que aquela que se mostra visível, por que evitar o emaranhado e seus tentáculos, esta sim uma região perigosa e por isso mesmo apta ao questionamento. É, na minha opinião, nesta zona intermediária, em que todos os gatos são pardos e em que os vilões trocam de lugar com as vítimas na hora do banquete, que a dramaturgia pode alcançar resultados surpreendentes e inovadores.

 

Se por um lado esta abordagem por vezes maniqueísta se constituiu, em repetidos momentos, num aspecto delicado que merece ser observado com atenção em experimentos futuros, não faltaram exemplos de situações em que o tema proposto alçou voos muito mais elevados. Não há como deixar de registrar dois exemplos desta potência, presentes em diversos experimentos: o emprego dos depoimentos pessoais, que trouxeram vitalidade, sangue e verdade à maioria das cenas em que eles foram empregados, e o onipresente enfoque na crueldade das relações trabalhistas dos dias atuais, expresso principalmente na predatória ação dos departamentos de recursos humanos. Juntos, depoimentos pessoais e o retrato das relações do trabalho, aproximaram de maneira assustadora – e por que não dizer incômoda – o tema dinheiro e poder da nossa realidade cotidiana. Pudemos nos reconhecer na fila do emprego, e depois na do desemprego, na prática abjeta que afasta os mais velhos do mercado de trabalho, na espetacularização da pobreza, nos episódios de assédio sexual ou moral, no abandono das convicções em troca de uma situação financeira mais portentosa e no exame da nossa consciência que, vez por outra, tem de responder a uma questão insuportavelmente incômoda: ser feliz ou ter dinheiro. O principal e mais notório mérito dos oito experimentos foi o de ter conseguido, de forma mais explícita ou velada, distanciar um pouco o tema dinheiro e poder do universo das grandes corporações e para instalá-lo no tapetinho na entrada da nossa sala. Não era mais possível ignorá-lo.

 

(Foto: Cristiane Camelo)

 

O primeiro experimento do dia, o N1, acertou ao abandonar o aspecto meramente televisivo do trabalho anterior para investir no cotidiano de uma cidade fictícia que, em sua rotina pacata e insípida, em tudo lembra o clima bucólico do clássico “Nossa cidade”, do dramaturgo americano Thornton Wilder. No que seria a praça central de Prosperidade, um mendigo vive da generosidade da manicure, do dono de um bar e do delegado religioso. Fator de equilíbrio na pequena comunidade, o mendigo desestabiliza as bases sociais quando decide (num episódio que merecia clareza maior) recusar as moedas que lhe são depositadas nas mãos. A partir daí, a peça converte-se em um libelo contra a hipocrisia das causas filantrópicas, que para sua existência dependem da manutenção da miséria. É um tema relevante, sem dúvida, que foi realçado pela boa performance dos atores e pela eficiência da cenografia. Mas que teria a ganhar se tivesse havido um pouco mais de sutileza na condução da história a partir do ponto de virada oferecido pelo mendigo – no momento em que caem todas as máscaras da cidade, seria curioso se os moradores exibissem ao menos uma máscara que não fosse a esperada. A ruptura das convenções sociais resultou no surgimento de personagens semelhantes demais – ou seja, demoliu-se um mundo sustentado pela hipocrisia oculta para se construir um outro sustentado pela hipocrisia às claras – o que não deixa de ser uma variação do mesmo mundo. O avanço em relação ao experimento anterior foi visível, mas uma bifurcação na estrada que leva à Prosperidade talvez tornasse o município mais interessante aos olhos do mundo.

 

Um distanciamento em relação ao trabalho anterior também foi sentido na apresentação do experimento a cargo do N5. Um navio de luxo, onde supostamente uma bomba repousa na casa de máquinas, é o universo claustrofóbico de uma luta de classes entre empregados da embarcação e milionários de reputação duvidosa. No experimento anterior, a existência da bomba parecia representar um componente dramático mais intenso do que agora. Se a iminência da explosão e do naufrágio foi, de certo modo, suavizada agora, ganharam força as relações entre patrões e empregados e, o que não deixa de ser interessante, entre empregados e empregados, com um questionamento moral em tudo oportuno. Apesar de uma porta do navio insistir em emperrar, a cenografia foi feliz ao recriar este Titanic de papelão, que também parece navegar em direção às profundezas do oceano. A existência de uma bomba na casa de máquinas poderia ter oferecido à dramaturgia a possibilidade de flertar com um clima de thriller, no qual questões morais teriam de se debater com a questão primordial da sobrevivência. O experimento, a meu ver, se estendeu um pouco além do que o tema sugeria, embora não tenha deixado de ser prazeroso ver o prazer do elenco na composição de personagens tão instigantes.

 

A esquematização das cenas e a incomunicabilidade entre elas se constituíram nos principais problemas detectados na exposição sobre a memória apresentada pelo N7 – obstáculos que não foram sentidos no experimento anterior, cuja proposta, ainda que menos aprofundada do que a atual, resultou numa experiência mais interessante e menos didática. Entre os oito experimentos apresentados no sábado, poucos temas foram tão criativos e pródigos em recursos quanto este adotado pelo N7: analisar as relações de trabalho por meio de um passeio por pelo menos nove séculos de história. Apesar do empenho do elenco, o experimento esbarrou em uma dificuldade que não pode ser transposta: a suposição de como serão as relações entre patrões e empregados nos séculos vindouros. Sem poder olhar para a frente, o experimento, ainda que de maneira eficaz, viu-se obrigado a retratar o já conhecido: a violência da escravidão, a exploração dos trabalhadores ilegais, as condições desumanas a que são submetidos os operadores de telemarketing e o convívio na maioria das vezes cruel entre patroas e empregadas domésticas. Dentro de seus universos específicos, as cenas resultaram eficazes, mas falharam na hora de criar uma narrativa mais continuada. Nesta dramaturgia compartimentada, em que se estabeleceu um embate entre futurologia e arqueologia, venceu esta última. Não teria feito mal ao experimento investir em um exercício ficcional que possibilitasse supor, ainda que de maneira absurda e especulativa, como trabalhadores e patrões circularão no ano de 2530, por exemplo. De qualquer maneira, o grupo foi extremamente ousado e, ainda que não tenham chegado a um destino mais claro, não tiveram medo de enfrentar os obstáculos da estrada. Atitudes como esta costumam justificar a viagem.

 

Foi no quarto experimento do dia, concebido pelo N3, que começou a se delinear um fenômeno que se tornaria a marca dos experimentos seguintes: o emprego dos depoimentos pessoais e a denúncia da vilania dos departamentos de recursos humanos. Com uma banda ao fundo executando uma canção que falava de depressão e fracasso e uma duvidosa dança das cadeiras, na qual nem sempre o vencedor levaria a recompensa, o experimento já começou em alta voltagem. Mais afinado, dolorido e potente do que o experimento anterior do grupo, o atual foi feliz ao aproximar a questão dinheiro e poder do ambiente familiar por meio da contundência dos seus depoimentos. Se havia toques de farsa na experiência anterior, o que se viu agora foi um mergulho mais aprofundado nas relações de trabalho e suas consequentes injustiças. A presença da banda se revelou um ponto alto na narrativa do experimento, bem como a precisa atuação do elenco: as personagens de Sulamita Maria e Rosana Shu amadureceram neste intervalo de um mês entre os dois experimentos, deixaram de lado o que tinham de folclórico para assumir feições mais humanas e reconhecíveis. Era natural que duas figuras tão singulares – uma representante do empenho pessoal e, outra, do poder da linhagem familiar – se encontrassem no final para um acerto de contas. A grande batalha que se avizinhava foi decidida com um rápido tapa no rosto. Podia se esperar mais, é verdade, mas em muitas vezes é justamente isso que o mercado de trabalho oferece aos seus postulantes.

 

Um dos momentos mais arrebatadores do experimento anterior do N8 – um número de funk executado por uma aprendiz moradora da região do ABC – foi deixado de lado no experimento atual. A coreografia continuou, é verdade, mas desta vez a cargo de um funcionário de uma loja de departamento: apesar de eficiente, o número não apresentou a mesma acidez e nem a mesma provocação da proposta anterior. Primeira prova de que o grupo não teve medo de mexer em time que está ganhando.  A segunda prova: o grupo produziu uma alteração profunda na narrativa ao inserir, na segunda parte do experimento, uma longa cena em que dois personagens, em trajes da monarquia, revelavam seu esnobismo e seus desejos separatistas. O experimento atraiu a atenção pela eficiência do acabamento estético: a beleza por vezes congelada das vitrines representou um contraponto interessante à anarquia exposta no vídeo projetado em uma parede lateral do cenário. Outro ganho do experimento foi o de ter estabelecido uma relação tão direta entre consumo e satisfação pessoal – o que até então era basicamente macroeconomia nos experimentos anteriores assumia agora o perfil da economia doméstica. O experimento apostou em sonhos de ascensão social, em falências pessoais e na ligação mais íntima entre o indivíduo e a economia, sendo feliz na maioria dos retratos. Pena que, para abarcar tantos temas, eles tenham recorrido a dois experimentos em um só: impossível manter-se alheio à distância entre o primeiro bloco, o da loja, e o segundo, o dos monarquistas. Ainda que um pudesse ser visto como extensão ou desdobramento do outro, o diálogo entre ambos se estabeleceu de forma truncada.

 

(Foto: Cristiane Camelo)

 

Se estivesse nas rádios e não confinada nas salas da SP Escola de Teatro, a canção Purezinho não precisaria de mais de duas semanas para se tornar um grude nacional. Maior (e talvez único) sucesso da dupla Milionário e Financeiro, que antes atendia por Miserável e Fio sem Mãe, a canção foi o exemplo mais bem acabado da ascensão e ocaso dos dois irmãos cantores que abandonaram a plantação de batata para tentar a sorte na cidade grande. Atingiram o sucesso, é verdade, mas se mostraram incapazes de pagar o preço de sua manutenção. Principal personagem do experimento do N4, a dupla Milionário e Financeiro deu um rosto e humanizou de maneira impressionante a avidez do mercado fonográfico que, ao expor suas entranhas ávidas por usar e depois desperdiçar talentos, revelou-se um representante de qualquer tipo de mercado, com ou sem trilha sonora. A dupla já aparecia no experimento anterior, mas antes andava às voltas com questões de ordem religiosa, o que impunha certos limites às possibilidades dramatúrgicas. No experimento atual, a dupla ressurge coberta de ambições financeiras e profissionais, o que torna seu recorte bem mais interessante e cosmopolita. O experimento, por vezes, assume a agilidade contagiante de um videoclipe – contribui muito para este efeito a leitura pop dos figurinos. Porém, o experimento perde um pouco de sua força inicial ao retratar o ocaso da dupla, em uma sequência um pouco arrastada que não consegue manter a agilidade empregada na hora de retratar a ascensão. Mas este experimento foi, sem dúvida, extremamente eficaz ao abandonar o que não funcionava tão bem no experimento anterior e potencializar o que apenas era sugerido como uma proposta certeira. Se a ordem era falar de mercado, deram uma lição de marketing.

 

Penúltimo experimento do dia, o apresentado pelo N6 ofereceu um novo entendimento à máxima de que menos é mais. Sem ambições didáticas ou psicologismo de qualquer ordem, o experimento atingiu resultados impressionantes ao simplesmente colocar quatro atores estáticos, inexpressivos, reduzidos à insignificância de alguém obrigado a obedecer às ordens de uma voz metálica sabe-se lá vinda de onde. No experimento anterior, os atores queimavam suas calorias em um humor físico cujo principal objetivo era levar um dos personagens a ocupar a cadeira da presidência de uma fábrica abandonada. Apesar de eficiente, o experimento não se distanciava muito dos mandamentos de uma gincana. Era um jogo e, por isso mesmo, sujeito a regras que impediam voos mais extensos. No experimento atual, as regras foram implodidas, o humor físico teve sua amplitude reduzida e limitou-se, ao menos nos primeiros e impressionantes minutos, a expressões faciais de uma comunicabilidade arrebatadora. O riso brotou do constrangimento, a empatia brotou da dor, a compaixão brotou da insignificância de cada um dos personagens em cena. Este cenário, limpo de mocinhos e vilões, do bem e do mal, de certezas e lições, foi um terreno fértil para o desenvolvimento de um experimento ousado que conquistou a plateia por sua proposta despretensiosa e extremamente simples. Na primeira exibição, o experimento sofreu por problemas técnicos. Os recursos de iluminação e a projeção jogaram contra a performance dos atores. Se o que se desenhou ali naquele momento foi um duelo, eu arriscaria dizer que os atores venceram. Na minha opinião, o deslize do experimento, talvez o único, não pode ser creditado à falha técnica da iluminação. O experimento é tão potente e tão certeiro no seu alvo que não precisaria da comicidade empregada na hora em que são revelados os dados do balanço da empresa. O absurdo já se tornou tão evidente, e tão palpável, que é praticamente possível de senti-lo no ar: números distorcidos de um balanço não passam de um jogador dispensável em uma equipe que entrou em campo para vencer.

 

O N2 se encarregou de fechar a maratona de experimentos do sábado com um desafio extra além daqueles já compreendidos pelo tema: levar o público para o terraço do prédio da sede da SP na rua Marquês de Itu, onde a cidade despontaria como o mais impotente, real e perturbador cenário à disposição dos aprendizes. O foco do experimento – as ocupações e os processos violentos de reintegração de posse – foi de uma atualidade jornalística, para dizer o mínimo: dois dias antes do experimento, um dos principais grupos teatrais de São Paulo havia sido despejado de sua sede, um ato que, a toque de caixa, passou a fazer parte da dramaturgia do grupo. No experimento anterior, o grupo se perdera em alguns clichês ligados à atividade da imprensa, o que resultou num tratamento um pouco amador da relação entre mídia e população. As propostas do grupo surgiram mais amadurecidas agora. Os depoimentos ganharam sobreposição de vozes, o que pareceu ampliar a extensão do problema, e o desespero da figura humana, ameaçada de perder o teto, seja ele de qualquer tipo, foi trazido para o primeiro plano da ação. Deixou-se de lado o espetáculo para jogar foco no drama humano – um inquestionável ganho. O espetáculo se apropriou de cenas reais colhidas pelos aprendizes entre as vítimas da reintegração de posse. Mas, se a realidade ofereceu matéria-prima para o grupo, também cobrou o seu quinhão para participar da história. Com menos de dez minutos de apresentação, os aprendizes foram surpreendidos pela interferência de um carro de som que, da rua, despejava em decibéis impossíveis de serem ignorados canções de Roberto Leal e Adoniran Barbosa, enquanto o morador de um apartamento vizinho contracenava ora com os aprendizes, ora com o carro de som. Foi uma experiência única, pois a cidade, faminta em todos os sentidos, pareceu querer se apoderar de algo que dizia respeito a ela. São Paulo se tornou, contra todas as expectativas possíveis, a grande protagonista do último experimento do dia. É certo que os atores poderiam ter tirado melhor proveito desta situação inusitada, em vez de se recolherem a uma timidez defensiva. Mas fica a pergunta: como reagir diante de uma protagonista gigantesca que engole a tudo e a todos e que, por suprema ironia do destino, tem sua dieta baseada nas duas engrenagens que movem o mundo e os experimentos: dinheiro e poder?

 

Se este gigantesco, e por vezes prolixo relatório, pudesse ser reduzido a uma ideia central a ser condensada em poucas linhas, a ideia seria esta: é impressionante a rapidez com que os aprendizes deram uma resposta ao tema dinheiro e poder proposto em agosto. E, mais impressionante ainda, como souberam cultivar o desapego entre os segundo e terceiro experimentos, a ponto de descartar sem dó aparente soluções consolidadas em prol do novo, do risco e do desafio.

 

Dinheiro eu não sei se eles têm, mas poder não lhes falta.

 

Parabéns a todos.

 

 

* Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo

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