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Ruth Escobar por Emilio Di Biasi

Em 1972, Ruth Escobar me chamou para dirigir “A Massagem”, de Mauro Rasi, com Nuno Leal Maia e Stênio Garcia. Barra pesada. O Mauro vinha do interior muito jovem e com um talento extraordinário, escrevia sem parar. A peça se passa num apartamento sofisticado em Nova York. Os personagens são um americano (Stênio) e um brasileiro (Nuno), que se faz passar por francês. O americano era um roteirista de cinema, o brasileiro sobrevivia em Nova York fazendo massagens, ou seja, era garoto de programa.

Mauro havia passado um tempo em NY e se baseou em histórias reais. Hoje em dia seria uma história normal, mas naquela época era muito ousada. O Mauro era um cara muito antenado com os acontecimentos políticos também. O texto tem latente o domínio americano com relação ao brasileiro ou ao latino, através de jogos eróticos. Além disso, havia um monitor de TV o tempo todo ligado com aparições de uma figura humana narrando notícias. Uma referência ao livro 1984, do George Orwell. A vigilância invadindo a privacidade através da tecnologia.

Comecei a trabalhar com o Nuno e o Stênio voltando ao processo que eu tinha usado em Cordélia. A Ruth Escobar tinha um sítio e ofereceu o local para ensaiarmos. Lá fomos nós, isolados de tudo, tínhamos até de cozinhar.

Era uma peça bastante delicada e eu precisava desse tempo de convivência entre os atores. O Stênio já era famoso, enquanto o Nuno só havia feito Hair. Também precisávamos trabalhar o espaço cênico em que faríamos a peça. Eu não queria simplesmente recriar esse apartamento. Quando voltamos do sítio, eu e o cenógrafo, o Marcos Weinstock, conversamos a respeito. Seria encenada no Teatro Galpão, hoje Sala Dina Sfat, do complexo Ruth Escobar.

Onde atualmente é o palco havia arquibancadas e, ao lado delas, uma pequena varandinha, com uma linda vista da cidade. Marcos e eu resolvemos mudar a arquibancada para o outro lado, quebrar a parede de fundo, colocar uma grande janela, um grande vitral, assim o público poderia ter uma visão da cidade real durante o espetáculo. Conversamos com Ruth e ela topou na hora.

A Ruth é uma pessoa que não tem limites, arrojada, corajosa. Ela já tinha feito grandes espetáculos e destruído paredes com Victor García. Imediatamente ela começou a obra que deslocou a arquibancada para onde estava o palco e todo  o espaço cênico ficou voltado para o exterior onde estava essa janelona.

Com essa proposta fantástica, o Marcos veio com a ideia de que não precisávamos mais ter pudor para usar um cenário ultrassofisticado, moderno e realista, já que o fundo seria absolutamente real.

O resultado foi um loft em branco e preto com cromados e vidros. Em toda a extensão da parede do fundo, além do janelão, uma cozinha e um banheiro completos num plano mais elevado, de dois degraus, dando para a arena que seria a sala. O banheiro tinha portas de vidro jateado por onde podiam ser vistas as sombras dos atores. No mais, poucos elementos. Diante da janelona ficava uma mesa pequena com duas cadeiras e, na arena, um colchão com estampa de zebra sobre o tapete preto da sala. Durante o espetáculo, o espaço elegante e clean ia sendo anarquizado por adereços eróticos coloridos utilizados pelos atores.

O trabalho com Nuno e Stênio foi surpreendente, na entrega viril sem barreiras e sem preconceitos. Eu havia trabalhado com todas aquelas atrizes com temperamentos fortes e temia que a macheza brasileira prejudicasse o trabalho do ator. No entanto, eles foram além da minha expectativa. Os exercícios tinham um rendimento criativo que foi aproveitado quase na sua totalidade, tornando os atores codiretores. Victor García, sempre torcendo pelo espetáculo, ia ver meus ensaios de vez em quando e papeávamos. A estreia sofreu vários adiamentos devido à censura, que fez vários cortes de cenas consideradas atentatórias à moral e aos bons costumes.

Houve adiamentos também por causa de uma disputa judicial pelos direitos da peça entre Ruth Escobar e outro produtor. Resolvida essa questão e reformulada a peça depois dos cortes, afinal, estreamos. Ficou faltando uma réplica da Estátua da Liberdade que Ruth pretendia colocar no topo de um dos prédios do Bixiga e que seria visível através do janelão. Mas inventamos outra novidade, um massagista à disposição do público, com cama apropriada e uniforme, instalado num beco embaixo da arquibancada.

Resolvi também que não deveria eliminar do espetáculo uma das cenas cortadas pela censura, como um desabafo, um desafio. Ela permaneceu, mas era dita em silêncio… só com o movimento dos lábios. Acontecia depois do intervalo. O primeiro ato era bastante agitado. Durante o intervalo, os atores entravam no banheiro e lá podiam relaxar, fumar e tomar banho. O público via sombras do que acontecia lá dentro.

No começo do segundo ato, todas as luzes se apagavam deixando o espaço apenas iluminado pela luz da cidade que entrava através do janelão. Stênio e Nuno saíam do banheiro envoltos apenas em uma pequena toalha, enrolada na cintura. Relaxados, iam para o janelão, tiravam a toalha, ficavam nus, sentados um de frente para o outro, acendiam um cigarro e ali conversavam sem som. Só se via a silhueta dos atores que acendiam repetidamente fósforos. Nesses momentos era possível vislumbrar alguma coisa a mais. Um espanto de beleza. Na estreia, Victor García gritou censura!. A polêmica e o sucesso estavam lançados. De um lado, indignação, de outro, o teatro vencendo barreiras.

Em 1980, a Ruth Escobar me chamou para fazer um projeto com detentos dentro da Penitenciária do Estado. Ela havia feito uma peça lá antes e eles, os chamados reeducandos, ficaram muito felizes, era uma forma de auxiliar os detentos, ou melhor, os reeducandos, como eles os chamavam. Foi meu último trabalho de 1980, era uma peça para ser encenada no Natal, para todos os presidiários e seus familiares. Escolhi O Alto do Burro de Belém, do Chico de Assis.

Me preparei muito antes. Tinha guardada uma matéria da Drama Review, revista que eu sempre comprava quando ia a NY, que justamente falava sobre o teatro para presidiários e contava as experiências deles com os presos, isso me ajudou muito.

Quando cheguei à Penitenciária, já haviam aberto as inscrições para quem quisesse participar da montagem, eram cerca de 30 detentos. A Penitenciária do Estado, que ficava atrás do Carandiru, abrigava presos de pena mais longa e que tinham cela individual. Devo ter ficado com um pouco de medo, mas agora acho maravilhoso, foi uma experiência única.

Tinha sempre ao meu lado o Luiz Carlos Laborda, que trabalhava muito com a Ruth e que estava pronto a interferir se houvesse qualquer problema, até fiz ele assinar a direção comigo.

Lá encontrei caras muito confiáveis, fora de qualquer clichê de violência, foi muito interessante observar como eles vão perdendo a identidade (a revista americana também falava sobre isso), porque têm de se mostrar sempre bonzinhos, vão virando uns anjos de inocência. Outro fator que ajuda a perder a identidade é o fato de que ninguém os chama pelo nome, é sempre um apelido ou um número.

No primeiro exercício queria retomar essa identidade perdida, mas disse a eles que era uma brincadeira, que iam apenas se conscientizar que estavam no palco. Pedi que se apresentassem e dissessem seu nome completo, disse que poderiam gritar o seu nome completo. Foi uma coisa tão emocionante que me arrepia até hoje. Pude identificar a personalidade de cada um através desse pronunciar de seu nome. Uns falavam com muita raiva, outros um pouco menos, alguns meio brincando e de alguns outros você mal ouvia a voz.

Fui identificando os temperamentos de cada um e como eles se sentiam. Acho que foi uma catarse impressionante porque ninguém sabia o nome completo de ninguém. Eles topavam tudo o que eu propunha. Fiz aqueles improvisos com animais e eles foram adquirindo confiança. Mas ali era também um barril de pólvora, de repente, do nada, surgia um começo de briga, mas os próprios colegas apartavam.

A peça do Chico de Assis conta a história do nascimento de Cristo. Começamos a montar o espetáculo. Ficou muito bom, fizemos uma apresentação só para o pessoal interno, depois haveria uma sessão para as famílias e o público em geral. Mas, infelizmente, isso nunca aconteceu, porque entre um espetáculo e outro houve uma grande rebelião. Soube pela televisão. Estava almoçando quando vi a notícia. Fui correndo para lá, até então eu tinha livre acesso à Penitenciária, mas quando cheguei o policial da guarita me informou que eu não podia entrar.

Eu insisti que precisava ver como meu grupo estava e ele respondeu que não e que nós é que éramos os responsáveis por aquilo. E foi o que saiu em toda a imprensa, que um grupo de teatro tinha começado a rebelião.

A Ruth deu o depoimento dela dizendo que tudo parecia coisa armada, mas ficou por isso mesmo. O grupo ficou incomunicável, nem podia receber correspondência. Depois de muito tempo, recebi algumas cartas deles, uma delas era de um preso que estava prestes a deixar a Penitenciária, ele me pedia um trabalho. A Ruth também recebia muitas cartas assim. Foi uma experiência e tanto. Uma energia que nenhum grupo de atores tinha me dado até então, agradeço muito a Ruth por essa oportunidade tão boa e que, infelizmente, terminou com essa martelada na cabeça.

Extraído do livro “Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz”, de Erika Riedel, Coleção Aplauso, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010

 

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