A seção Ponto desta semana é um tantinho diferente… Ela traz o depoimento de Filipe Brancalião, formador do curso de Atuação da Escola, sobre o Odin Teatret, de Eugenio Barba, que nesta semana visita a SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, ao lado de Nicola Savarese, para o lançamento da nova edição do livro “A Arte do Secreta do Ator – Um Dicionário de Antropologia Teatral” (para saber mais, clique aqui).
E Filipe fala com propriedade, afinal, neste ano, ele esteve na Dinamarca, onde fica a sede do Odin Teatret, dirigido por Barba, para participar do Odin Festival. Confira o texto:
Um Ator que se Experimenta
Há cerca de dois meses tive a oportunidade de pisar em um dos tablados mais importantes do teatro moderno. Em uma cidadezinha de não mais de 30 mil habitantes, onde o sol se põe às 20h30, mas que desde as 17h já está completamente vazia e onde o padroeiro é um santo muito familiar aos brasileiros, São Jorge, está sediada uma companhia de 48 anos de idade, que mantém um mesmo núcleo de integrantes desde sua fundação e que é responsável por uma das mais verticais investigações artístico-pedagógicas no que mais tarde se nomeou “treinamento do ator”. Seu diretor é Eugenio Barba e esta companhia é o Odin Teatret.
Essa aventura teve início quando, em dezembro de 2011, Eugenio veio ministrar uma de suas aulas magnas no projeto “Diálogos da SP” e, na ocasião, fez o convite para que a escola estreitasse ainda mais os laços com o Odin Teatret. Para tanto, me sugeriu que participasse do Odin Festival, uma intensa programação com inúmeras aulas, demonstrações de trabalho, sessões de treinamento e espetáculos da companhia. Alguns meses depois, com a proposta aprovada por nossos coordenadores Joaquim Gama, Francisco Medeiros e pelo nosso diretor Ivam Cabral, deu-se início a batalha pelo custeio do intercâmbio, que contou com o empenho de Ivam, Tato Consorti e da equipe do Kairós.
Em 18 de agosto, eu embarcava rumo a Holstebro, Dinamarca, onde viveria uma das mais intensas experiências artístico-pedagógicas de minha vida.
Dentre os interesses deste intercâmbio, para além da aproximação com um dos diretores mais importantes da atualidade, estava também a busca por pistas pedagógicas que pudessem nos provocar novas reflexões acerca de nossas propostas na SP Escola de Teatro. Simplesmente ao conhecer mais de perto a história e as práticas do Odin Teatret já se torna possível reconhecer os elos que nos aproximam, no entanto, o Odin Festival revelou muito mais pontos do que aproximações.
Em 1964, após dois anos de convivência com Grotowski, Eugenio Barba estava no interior da Noruega e diante de um grupo de candidatos reprovados numa das escolas teatrais do país, sugeriu a formação de uma companhia, autodidata, em que todos pudessem partilhar suas experiências e descobrir, juntos, novas possibilidades de estar em cena.
Com participantes oriundos de diferentes países, esse grupo de jovens artistas apresentava elementos de cada uma das culturas ali presentes e investia num aprofundado estudo dos escritos dos grandes mestres do teatro: Constantin Stanislavski, Bertolt Brecht, Antonin Artaud, Etienne Decroux, dentre outros. Ao longo de sua existência, viajaram pela Europa, África, Ásia e Américas e formularam o que mais tarde seria chamado de Antropologia Teatral: “o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas”.
E foi em meio a essa rica trajetória que o Odin Teatret e Eugenio Barba criaram uma prática pedagógica instigante e que nos interessa por um essencial ponto em comum: o princípio de experimentação.
Ao longo de seus processos criativos, o Odin Teatret não priorizou apenas a montagem de espetáculos, mas também a investigação de treinamentos e práticas de trabalho que pudessem ampliar as qualidades expressivas do ator, além de gerar repertório de criação. Nesses treinamentos, muitos deles individuais e outros coletivos, a principal regra aos atores era: se experimentem! Por meio de elementos básicos, considerados por Barba como pilares da presença cênica, cada um dos atores desenvolvia programas de trabalho em que explorava suas potencialidades criativas e expressivas, não apenas buscando um estado de presença extra-cotidiano, mas também, gerando material cênico para cada um dos processos criativos da companhia.
Placa indicando a sede do Odin Teatret, em Holsterbo, na Dinamarca
No Odin Festival, pude acompanhar todos esses programas de trabalho, tão diferentes entre si, quanto eram diferentes os atores que os conduziam. Cada demonstração de trabalho revelava um ator destemido, ousado, atento às orientações de seu diretor e perspicaz na busca por responder-lhe cenicamente a cada provocação. No entanto, para que essa resposta se processasse, o ponto de partida não era apenas a criação da cena em si, mas um vertical processo de pesquisa corporal, vocal, imagética; uma prática de descobrimento pessoal, de exercício de encontro com o outro e de matriz do grupo. Exercício este em que era imperioso superar inseguranças e expor-se a uma confrontação, a uma desorientação, a uma radical experiência de criação, disponibilidade e despudor criativo.
O que estava em jogo então era algo extremamente próximo à nossa prática na SP Escola de Teatro: um processo de experimento, em que o ator, em diálogo com seu diretor e em paralelo ao processo de montagem, investiga as suas possibilidades criativas e cria a sua metodologia. Um trabalho atoral (um ator autor), de um treinamento diário, atrelado não a “um” processo de criação, mas sim a um “estado de criação”, cotidiano, rigoroso, vigoroso. O que se desnudava à minha frente eram atores no mais puro do seu ofício: a prática sobre si mesmo em diálogo com seus materiais criativos.
Diante das 8 horas diárias de trabalho, esses atores atingiam um nível de precisão, composição gestual e dilatação corporal repletos de um assombroso estado não cotidiano. Mas a contundência do Odin Teatret não estava apenas no treinamento desses atores. A cada noite, cada espetáculo apresentado mostrava um coletivo de artistas inquietos e indignados com as questões de seu tempo, levando para a cena um olhar sagaz sobre a realidade e lançando a todo tempo a pergunta: “Quem somos nós e o que estamos fazendo de quem somos?”.
Ao se experimentar cotidianamente, na sala de trabalho, aqueles atores experimentavam ir além dos limites de suas resistências físicas e emocionais e a cena não poderia deixar de revelar isso: homens e mulheres engajados com sua humanidade, experimentando a si e nos convidando a uma experimentação radical de nossa humanidade!
E, afinal, qual é a nossa pretensão na SP Escola de Teatro que não a de investirmos na formação de aprendizes disponíveis para essa prática diária, cotidiana e extremamente interessados em experimentar a sua humanidade no encontro com o outro?
Qual é a nossa metodologia que não a de um efetivo processo de investigação teatral onde atores, diretores, iluminadores, cenógrafos, sonoplastas, técnicos de palco, dramaturgos e pedagogos se debruçam sobre questões pungentes da realidade e procuram, por meio da arte ao vivo e da poesia cênica, dar vida a essas questões e lançá-las no debate público?
Viajar à Dinamarca e encontrar a radicalidade, o rigor e o vigor do Odin Teatret foi a possibilidade de (re)conhecer o nosso vigor, (re)pensar o nosso rigor e (re)elaborar a nossa radicalidade. Que as relações se façam na prática e já estão se fazendo, se experimentando!
