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Plínio Marcos por
Leo Lama

Publicado em: 14/06/2012 |

Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora, estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar as próprias contas. Pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? Meu pai era dramaturgo. Escritor de teatro. Teatro dá dinheiro. Tem gente que escreve peça pra isso. Meu pai não ganhou muito com teatro. O que ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador. Era um “maldito”, diziam, um “marginal”, mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? “Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo.” Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e desgraçados. Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidiários não davam dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados não tinham “patrocínio”. Mas eu queria tênis americano, eu queria camisa Lacoste, Hang Ten.

Meu pai tinha que ganhar dinheiro. Ele insistia. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e desgraçados. E o ator e Jesus Cristo e nada de “comédia comercial”. Mas eu queria o meu All Star, eu queria ter todos os discos dos Beatles. “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!” E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois, tive que comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e, agora, dá pra baixar de graça na internet). Calça boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro? Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis All Star? Ele achava que isso era “lixo americano”. Ele achava que essa droga importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria, só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro?

Era época de ditadura. Escrever sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários incomodava os “poderosos”.  Além de não dar dinheiro, ainda é proibido? “Pai, me dá dinheiro pra comprar disco do Bob Dylan!” Meu pai fez novela, fez “Beto Rockfeller”. Ele fazia o Vitório, o melhor amigo do Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um… Mas a novela era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: “Bandeira 2”. Mas a Globo é no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava as gravações e ia pra praia: “Novela é chato pra caralho, porra! O direito da gente coçar o saco é sagrado”, ele dizia. Ele ia pra praia e lá ficava indignado porque naquela época a Globo não punha negros nas novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo. Meu pai escreveu no jornal “A Última Hora”, do Samuel Wainer, onde ele trabalhava, que a Globo colocou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer “Gabriela”. A Globo não gostou. Os “poderosos” da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças, o juraram de morte. Em fim, a Globo não dava mais. Quando ele estava por lá, ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu queria dinheiro pra comprar tênis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafetão e cigano sem dente? Não, novela de puta, cafetão e cigano sem dente não dá. Se fosse cigano com dente, musculoso e mau ator, aí dava. Agora, cigano sem dente, pobre e desgraçado, não dá. “Na televisão brasileira, artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo.”

Tudo bem, não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava, não podia novela de cigano pobre e sem dente porque a TV não queria. Então, o que podia? Não podia nem chamar a Rede Globo de racista, nem nada. A sinopse que ele fez pra uma novela, quando finalmente a Globo o chamou, era de uma tribo de ciganos que estupravam as filhas dos empresários e… Bom, não aprovaram. E as portas iam se fechando. E a ditadura ali, descendo o cassete. E eu queria o meu tênis All Star! “Pai, pô, pai, eu quero dinheiro pra comprar time de botão!”

Mas enquanto os “poderosos” iam dizendo: “Não! Não! Não!”, ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um “povo que berra da geral sem nunca influir no resultado”, um povo desgraçado, os marginais, as putas, os ciganos sem dente, os presidiários, um povo que não aparecia na TV. “Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia”. Pobre na Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo não tem rato. Esse povo não era o povo dele. O dele era os sambistas, não esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas marginalizados, os que nunca gravaram CD. O Zeca da Casa Verde, o Talismã, o Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os que morrem na merda. “Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu…”, cantava o Geraldão.

Então, a solução era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histórias e os sambistas cantavam suas músicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros? Negro não podia. Em plena ditadura, Plínio Marcos e “a negrada”? Que papo é esse? Poder até que podia, mas ninguém queria ver. “A burguesia não me quer”, ele dizia. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente pobre e desgraçado, não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria ver show com “a negrada”. Então, o que podia? “Pai, me dá dinheiro pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!”.

 

Plínio Marcos (Foto: Divulgação)

 

A ditadura, quando eu tinha sete anos, estava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada casal que fazia “amor com medo”, nos porões do Doicodi, nas torturas atrozes que muitos sofriam, e eu lá: “Pai, me leva na Expoex, pai, me leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os soldados, pai! Eu quero ver os tanques!”. E ele me levava. Senão, eu chorava. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex.

Quando eu tinha 12 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro, com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchau. Um amiguinho meu perguntou: “Quem é seu pai?” Eu não tive dúvida: “Meu pai é aquele!”. E o meu amiguinho: “Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?”. E eu: “É, aquele”. O meu amiguinho gritou: “Pai, esse aí é o pai do Leo!”. E a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo estava chamando de mendigo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! “O pai do Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!”

Afinal, quem trabalha tem de usar terno e gravata. Naquela época, um moleque de 12 era um tapado. Ou isso era característica minha? “Pai, por que você não trabalha? Pai, por que você dorme até meio-dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra comprar…” E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de “burguês”. Eu estudei nas “melhores escolas”. E olha que o meu pai odiava escola. “A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas; por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes”, ele dizia. Ele saiu da escola na 4ª série do primário. Ele era canhoto.

Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos, escreveu “Barrela!”. “Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilégio meu, neste País”. Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que ele fosse débil mental. Meu pai foi ser palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a minha era escola de “burguês”. Mas como ele pagava a minha escola?

Foi preso, foi solto, ameaçado, escrevia em jornais e revistas, quase todos que existiam. Foi despedido de todos. A censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum. O que fazer? Sair do País? Ele não falava direito nem o português. O que fazer? “Pai, me dá dinheiro pra comprar uma calça Soft Machine!” Uma vez, o meu pai estava com uma dívida muito grande, estava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí, num belo dia, a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era muita grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranquilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial. Foi vender livro na rua, nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros onde se apresentavam artistas piores do que ele.

Ele mesmo editava os livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele foi expulso pelo “rapa”, como um camelô comum. E ele chorava? “Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo.” Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida estava difícil. Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o Plínio Marcos, porra! E tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fracassado igual a uma de suas personagens que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo Centro da cidade. Mas já morreu. Não era melhor do que ninguém.

“Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar.” Com 15 anos, eu quis sair da escola. Ele disse: “Sai logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!”. Eu saí daquela merda na metade do 1º colegial. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade sabe: o ensino do jeito que é, faz mal pra saúde. Uma vez, quando eu tinha 17 anos e ainda morava com ele, em uma madrugada, eu estava na mesa da sala com o violão, triste, querendo encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou com um livro e leu um poema pra mim. “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. Não disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele, aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi dormir e me deixou ali, ouvindo o corvo dizer: “nunca mais!”.

Eu virei dramaturgo como ele, com 21 anos escrevi “Dores de Amores”. Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares. Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai era generoso, violento, essencial, amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje, pouca gente quer montar as suas peças e pouca gente quer assistir.

Meu pai já não precisa mais vender livro na rua pra quem não quer comprar, ou pra quem compra só pra “ajudar”. O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: “Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo; me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com muita vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma”. E se ele me escutasse, ele diria, com um sorriso malandro sem dentes, segurando as lágrimas: “Ê, Leo Lama!”.

Meu pai não sabia receber elogios. Mas se ele me ouvisse agora, eu diria: “Pai, eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu velório, estiveram os maiores artistas do País. Médicos, políticos, advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Eu estava segurando uma aba, o Kiko outra. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: ‘Plínio Marcos, um grito de liberdade!’. Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista, e nós, no barco, deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente tudo era só o mar. E você foi como todo mundo vai.
Muita gente te amava e ainda te ama. Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe. O amor dela ecoa em mim. Mas, e eu, pai? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem”. “A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos.” Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial como você. É difícil. Eu reclamo. Está difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever.

O mundo está se destruindo, tem muita gente desgraçada, tem muitas festas, muita fome, muito abuso. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe, essa gente, os “homens-pregos”, fixos no mesmo lugar. Essa gente quer ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa, essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que acredita em Deus e só fode Ele, essa gente não quer ser essencial, pai, essa gente… Essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com essa gente. Perdoa-me.

Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: Leo Lama.

 

 

Veja os verbetes de Plínio Marcos e Leo Lama na Teatropédia.

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