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Papo de Teatro com Paulo Azevedo

Publicado em: 22/10/2012 |

Paulo Azevedo  é ator, promotor cultural e jornalista

Como surgiu o seu amor pelo teatro?
Não tenho uma primeira lembrança precisa, mas comecei no teatro quando ainda era criança e nem imaginava que era uma arte com tantos caminhos e possibilidades. Fazia porque era minha brincadeira inventar histórias, situações, personagens com meus vizinhos e amigos de infância. O amor só veio mais tarde, quando o teatro se tornou vocação.


Lembra da primeira peça a que assistiu? 
Acredito que tenha sido ainda na pré-escola, mas tenho só uma lembrança bem vaga, de estar no auditório da escola assistindo a uma peça. Aliás, a escola teve papel fundamental no meu encontro com a arte. Lembro-me de ter sido levado para assistir a uma adaptação de “O Menino Maluquinho”, do Ziraldo, no Teatro Marília, que ficava próximo da minha escola. Naquela época, me lembro da sensação de estar num espaço de grandes proporções, bem alto… Muitos anos mais tarde, eu estava naquele mesmo, palco daquele aconchegante teatro de 260 lugares.


Um espetáculo que mudou a sua vida foi…
Sou um espectador assíduo. Então, é quase impossível citar “o espetáculo”, mesmo porque sempre está muito relacionado ao meu momento de vida. Desde adolescente, me lembro de pesquisar nas programações dos jornais o que estava em cartaz na cidade, hábito que tenho até hoje. Ver espetáculos sempre foi um grande aprendizado, entender os caminhos criativos, como chegaram até ali… Dois trabalhos, em particular, foram marcantes por serem os primeiros que me fizeram pensar no teatro como possibilidade de profissão: “A Rua da Amargura”, com direção de Gabriel Villela – primeira montagem que assisti do Grupo Galpão; e “O Beijo no Asfalto”, com direção de Wilson de Oliveira, com um elenco impressionante, marcando meu primeiro encontro com a obra de Nelson Rodrigues e com profissionais com os quais, mais tarde, tive a sorte de trabalhar, além de conhecê-los de perto.


Um espetáculo que mudou o seu modo de ver teatro foi…
Mais recentemente, os trabalhos de Ariane Mnouchkine e o grupo francês Théâtre du Soleil, além da trilogia bíblica do Teatro da Vertigem, foram experiências impactantes, que me fizeram rever meu caminho. Não só pelo que vejo na cena, mas por tudo o que está por trás dela: a dedicação, o pensamento que construiu essas obras e artistas etc.


Você teve algum padrinho no teatro? 
Meus pais, minhas irmãs e os amigos mais próximos, de certa forma, cumpriram esse papel por serem meus primeiros espectadores. Mesmo que cheios de receio e preocupação por eu, de fato, querer seguir na arte! Eles me apoiaram e incentivaram muito no começo. Minha persistência (e até teimosia!) nos primeiros passos e a busca por referências, informação e conhecimento sobre esse universo acabavam chamando a atenção dos colegas na área. Por isso, algumas oportunidades me foram dadas, parceiras feitas e me formei com os diretores e grupos dos quais fiz parte.


Já saiu no meio de um espetáculo? 
Infelizmente, sim. Sou um espectador esperançoso! Sempre acredito na possibilidade de uma virada quando a peça já parece não ter pra onde ir. Por quê? No caso, saí uma vez porque era um texto que havia marcado minha trajetória, queria ver uma nova montagem nos palcos e me decepcionei profundamente com a abordagem superficial dada à obra. Eu me incomodo muito quando sou subestimado como espectador.


Teatro ou cinema? 
Ambos. Sempre que posso estou numa sala de cinema ou de espetáculos. São artes que me alimentam e ampliam muito minha forma de estar no mundo, de conhecer novos olhares. Cada vez mais acredito menos na delineação muito precisa de onde começa uma arte e onde termina outra. Como intérprete, eu me reconheço e sinto ainda mais vontade de criar um percurso amplo, que contemple as duas áreas.


Cite um espetáculo do qual você gostaria de ter participado. E por quê? 
Especificamente, não me lembro. Mas gostaria de ter feito um trabalho em um espaço não convencional, como são os trabalhos do Teatro da Vertigem. Deve ser um exercício incrível para o ator estar em um espaço com tantas memórias, em que você se coloca em um registro quase cinematográfico da relação com as distâncias, alturas do lugar… Por outro lado, sei que é uma visão idealizada desse tipo de trabalho, que demanda uma produção muitas vezes monumental para ser realizada. Já escrevi uma peça pensando em um prédio, utilizando minha relação com esse espaço, mas acabei percebendo que o desejo era fazer um filme ali. Recentemente, vi um espetáculo europeu em Nova York, “Sleep No More”, que ocupava andares de um hotel desativado, com a plateia livre para seguir o performer que desejasse. Eles eram extremamente vigorosos e apropriados da história, sem dizer uma palavra. Tenho curiosidade de fazer parte de um processo assim.


Já assistiu mais de uma vez a um mesmo espetáculo? E por quê? 
Sim. Todo encontro com o teatro é único: tanto os artistas que se apresentam e quanto eu como espectador. Como disse antes, ver uma peça é uma aula. Sou muito observador. Então, é sempre uma nova chance de perceber a obra sob outra perspectiva.


Qual dramaturgo brasileiro você mais admira? E estrangeiro?
Por trabalhar muitos anos em processos de criação em que era possível fazer da parte da construção do discurso da peça, tive poucas possibilidades de encenar clássicos, nacionais ou internacionais. Foi um caminho natural. Gosto da forma como Nelson Rodrigues compõe determinadas situações e cerca a história sem amarras; por outro lado, os personagens de Tchekhov me interessam por suas camadas. Poderia citar também alguns dramaturgos contemporâneos que falam de situações de nosso tempo de forma muito interessante. Entendo o texto como parte de um todo. Raramente parto dele para a elaboração de um projeto. A equipe envolvida, um tema ou proposta desperta mais meu interesse.


Qual companhia brasileira você mais admira?

Todas! (risos) Só de fazer teatro em um país com tão precárias condições de estímulo à criação e ao risco e manter-se já são motivos de grande admiração. Principalmente, as companhias de repertório. Os coletivos são minha escola, minha maior referência como artista, embora, hoje, tenha muitas ressalvas a determinadas formas de trabalho. Cresci em uma cidade em que os grupos têm vida longa, ultrapassam fronteiras… Isso me estimulou por muito tempo. Ver e acompanhar de perto o Galpão, o Corpo, além de grupos contemporâneos como a Cia. Brasileira, o Grupo XIX, entre outros, é sempre um lugar onde você pode se alimentar e compartilhar percepções sobre nossos passos na arte. Por fazer parte dos bastidores do surgimento do Movimento Redemoinho há alguns anos, tive a chance de conhecer grupos de muitas partes do Brasil e entender que, no fundo, as vontades e as dificuldades são muito parecidas.


Existe um artista ou grupo de teatro que você acompanhe todos os trabalhos?
Os grupos citados anteriormente, acompanho sempre. Até por uma questão afetiva. Além desses, existem vários outros: Sutil Companhia, Cia. dos Atores, Nova Dança 8, Dudude Herrmann, os trabalhos da Pina Bausch…


Qual gênero teatral você mais aprecia? 
Acho cada vez mais difícil definir gêneros. Essa necessidade de enquadrar as criações não é uma questão que me interessa muito, assim como delimitar as artes e como elas se influenciam. Já é tão complicado buscar definir seu trabalho nos parâmetros que definem os editais públicos, como “excelência artística”, “brasilidade”, “viabilidade técnica”, enfim… Sinto que essa necessidade de estabelecer critérios dessa forma é para os que almejam uma precisão, que não contempla todas as possibilidades de um processo criativo.


Em qual lugar da plateia você gosta de sentar? Qual o pior lugar em que você já se sentou em um teatro?
Depende. São tantas as variáveis de relação com um espetáculo. O pior lugar, com certeza, é qualquer um em que as pessoas ao lado não estejam interessadas, fuçam nos celulares, conversam e ignoram o trabalho dos artistas e o interesse dos demais da plateia.


Existe peça ruim ou o encenador é que se equivocou? 
Para que o teatro aconteça, depende do encontro de muitos fatores, inclusive do espectador. Dizer dessa forma parece quase um milagre assistir a uma boa peça. E às vezes é. Uma vez, ouvi de um diretor russo que você pode levar 10 anos para ver 10 boas peças. Não gosto de sair de uma peça dizendo que o cenário era acertado, tal ator era interessante, aquela cena me tocou, mas sim com a sensação de que passei por uma experiência, que vivi um encontro. Que as pessoas envolvidas ali sabem o que estão fazendo, dizendo, propondo em sua totalidade.


Ao dirigir um espetáculo, percebi que orquestrar todos envolvidos para um mesmo discurso da cena pode ser algo possível quando o encontro e as afinidades se estabelecem. Sempre digo que teatro é matemática, ou seja, ele é fruto de muito tempo de dedicação, trabalho, trabalho, trabalho… E isso não escapa ao olhar do espectador. Se algo “se equivocou”, é preciso perceber que é uma arte delicada em que muitas subjetividades estão envolvidas ao mesmo tempo.


Como seria, onde se passaria e com quem seria o espetáculo dos seus sonhos?
Nesse plano ideal, esse espetáculo dos sonhos seria aquele em que eu pudesse me dedicar exclusivamente a ele, com a possibilidade de compartilhar essa experiência com outros artistas e parceiros. Ele passaria por vários lugares onde possa encontrar um público, de fato, interessado nesse encontro. O fato é que, quando estou em cena, já é um sonho realizado: o de permanecer na arte.


Cite um cenário surpreendente.
Os espaços criados pelo Théâtre du Soleil, além, é claro, da veraneio de “Romeu & Julieta”, do Grupo Galpão, dirigido por Gabriel Villela. Quando vi aquilo pela primeira vez, um enorme horizonte de possibilidades se abriu pra mim.


Cite uma Iluminação surpreendente. 

Um dos momentos mais marcantes que vivi como espectador na relação com a iluminação foi em “O Livro de Jó”, com desenho de luz de Guilherme Bonfanti. Era a cena final e um enorme refletor era o próprio “Deus”, no encontro com a personagem-título. Naquele instante, como eu estava sentado exatamente em frente à entrada por onde saía esse refletor, quem encontrou com “Deus” fui eu. A iluminação de Pedro Pederneiras para os trabalhos do Grupo Corpo também me surpreende pela simplicidade e sofisticação no tratamento do palco e dos corpos ali presentes.


Cite um ator que surpreendeu suas expectativas.
Não conhecia o trabalho do ator escocês Alan Cumming, mas ao vê-lo interpretar todos os personagens de “Macbeth”, fiquei impressionado. Mais do que a questão da virtuose, o que me tocou foi vê-lo se utilizar de recursos tidos muitos vezes como clichês, com a maior entrega e propriedade possíveis. Acredito que o tempo pode ser um grande aliado de artistas que seguem firmes no trabalho e apuro de seu talento.


O que não é teatro? 

Pensando no que já vi no teatro, muitas coisas e formas podem ser teatrais. Pra mim, não é teatro quando não diz respeito ao que é humano. Estar relacionado à condição humana e suas questões mais essenciais é o que me mantém nas artes.


A ideia de que tudo é válido na arte cabe no teatro? 
A máxima de que vale tudo, mas não vale qualquer coisa, talvez caiba aqui. Tudo é muito amplo, mas o teatro tem o concreto – espaço e tempo – como base elementar. Então, tudo que se manifesta nessa via talvez caiba no teatro.


Na era da tecnologia, qual é o futuro do teatro? 
Sempre que me dizem dos perigos que assolam o teatro, penso que o poder de ter alguém, ao vivo, para você naquele instante é insubstituível. Aparatos tecnológicos mais sofisticados, que possam vir a incrementar uma encenação, não se configuram exatamente como uma ameaça. A ameaça maior, nesse caso, é a ausência de uma plateia presente por conta dessa era tecnológica. Estar onde você está, de fato, é um exercício cada vez mais difícil em um mundo de tantas demandas e possibilidades.


Em sua biblioteca, não podem faltar quais peças de teatro?
Aquelas que estejam relacionadas ao que estou trabalhando no momento, além de alguns romances, como “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, que me toca profundamente e me acompanha sempre.


Cite um diretor (a), um autor (a) e um ator/atriz que você admira.
Admiro tanta gente… Os que conheci de perto, os que assisti de longe… Pina Bausch, Fernanda Montenegro, Dudude Herrmann, Stanislavski, Augusto Boal, Fernando Eiras, enfim… Como pode perceber, admiro muita gente. Essa lista teria inúmeras linhas. 


Qual o papel da sua vida?
Aquele que estou fazendo no momento, que faça refletir meu caminho, repensar conceitos e valores, além de ampliar meu olhar sobre a vida. Por um momento, no início da carreira, me sentia um pouco frustrado por não ter “a personagem” que mais sonhava em fazer ou a peça que gostaria de montar. As personagens, de algum modo, sempre me encontraram e foram muito representativas em determinados momentos da minha trajetória.


Uma pergunta para William Shakespeare, Nelson Rodrigues, Bertolt Brecht ou algum outro autor ou personalidade teatral que você admire.

Para todos eles: “Você gostaria de escrever uma peça para mim?”.


Para os companheiros das minhas novas empreitadas: “Topam o risco de um projeto artístico ‘fora da lei’?”.


O teatro está vivo?
Já esteve morto? É muito curiosa essa pergunta. Talvez, para mim, a questão seja: “É possível não estar vivo nele?”.