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Papo com Paroni | Utopia para a Distopia – II

Publicado em: 07/11/2016 |

Mauricio Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 
 
A distopia, o oposto de uma utopia, tem múltiplos modos de ser analisada; reúno, aqui, três feixes principais de visada distópica. São, obviamente, discutíveis e pessoais, além de não científicos. Elenco-os com a única intenção de contribuir com dados para uma criatividade intelectual que fuja dos clichês e listas de caráter místico-empregatícios.
 
[Para não complicar o entendimento com voos necessariamente abstratos, proponho raciocinar através de exemplos. São muitos; a variedade de títulos, citações e conteúdos não deve assustar ou desestimular a pesquisa. Funciona como mapa para a variedade de caminhos, como a alegria de saborear a imensa variedade de frutos que o Brasil oferece em qualquer mercado de rua. Não se pretendem citações intelectualizantes, mas convite ao conhecimento dos títulos e livros que comparecem a seguir. Conhecer bem dois ou três já estará muito bem. Peço socorro a uma frase  do poeta romano Virgilio (70-19 a. C): ab uno disce omnes (Ao se especular sobre o exemplo, aprende-se o todo).]
                                                                                                       
I
Há uma distopia intrínseca no cerne de toda utopia: é consequência da falência de um determinado projeto utópico. Tal projeto se sustenta na ambição do irrealizável e, paradoxalmente, é concebido para se livrar da realidade prosaica do possível; quando o mundo lhe impõe as suas condições da realidade objetiva, o projeto se degenera. 
 
Muitos dos sonhos da Ilha de Utopia, elencados no artigo anterior (https://www.spescoladeteatro.org.br/noticias/ver.php?id=5488), deságuam no desenvolvimento indesejado ou na autocracia teorizada em O Leviatã , do inglês Thomas Hobbes (1588-1679). Ainda que não tenha raciocinado intencionalmente contra o habitante tolerante e altruísta da Utopia de More, Hobbes considera a natureza humana essencialmente competitiva e egoísta; cita o “estado de natureza” do ser humano como base de dois princípios de sua antropologia política: O Bellum omnium contra omnes (Guerra de todos contra todos), e o Homo homini lupus (O homem é lobo para o outro homem). A natureza selvagem do “estado natural” requer um governo e uma sociedade fortes porque os bens são escassos e coloca todos contra todos. Para que haja paz social, haverá que se desistir de parte do direito natural à liberdade. Daqui nasce, provavelmente, o clichê “a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro”. O conceito é o exato oposto ao compartilhamento da liberdade para a sua multiplicação e usufruto geral. 
 
O principio hobbesiano do subiectionis pactum é a renúncia parcial da liberdade, sancionada pelo pacto de um contrato social que transfira todos os direitos naturais – exceto a vida – a uma pessoa ou a uma assembleia que dá vida à sociedade civil (pactum societatis). Da mencionada guerra natural de todos contra todos nasce o medo da morte, igualmente natural. Isso leva o Estado Absoluto – o Leviatã – incorporar a si mesmo, e não ao cidadão, o poder sobre cada pessoa. A sociedade necessitaria de uma autoridade forte o suficiente para assegurar a paz, seja a de um monarca, a de um comitê “democrático” ou a de uma assembleia “democrática”: o Leviatã, poder inquestionável, absoluto e centralizado. Hobbes é, portanto, o precursor do estadismo e do absolutismo modernos: uma utopia para a distopia.
 
Convido o leitor a pensar em outro caso clássico desse modo de ver: O paraíso, descrito pela Bíblia enquanto utopia que traz o inferno, acaba transformado num manual medieval para a inquirição de acusados de bruxaria (mulheres em sua maioria, cujos bens eram confiscados pela Igreja), vira um compêndio de tortura para inquisidores na obra do teólogo espanhol Nicolau Eymerich (1320-1399) publicada no século XIV. 
 
II
 
Além da especulação de filosofia política, há uma imensidão de fatos históricos que corroboram a impossibilidade de realizar a perfeição projetada em qualquer utopia. Parece uma tragédia, um niilismo que muitos artistas temem a ponto de evitar-lhe a síntese. Para ser direto: às utopias socialistas oitocentistas de Owen, Proudhon ou Marx e Engels, apesar do inegável progresso sociocultural daquela dialética, opõem-se as distopias do século XX, representadas pelas ditaduras implantadas pelo estalinismo, maoísmo, polpotismo e sub-rogadas, perfeitamente descritas em A Revolução dos Bichos, do britânico George Orwell (1903-1950). O exemplo é ainda mais eloquente se pensarmos nos versantes nazistas do império do capital da “perfeição” ariana de 10.000 anos, prometido por Adolf Hitler, no falso renascimento do Império Romano fantasiado por Benito Mussolini, no anticomunismo macarthista norte-americano dos anos 50, nas ditaduras populistas e militares latino-americanas e africanas, na extrema concentração de renda e na iniquidade do capitalismo selvagem do trabalho globalizado infantil e do escravismo consumista. Para além do radicalismo pragmático, tudo parte de um modelo abstrato, de um sonho originário que exacerba qualquer categoria, ordem, harmonia, método, superação, individualismo, coletivismo, materialismo, idealismo hegeliano ou liberalismo “puro” que seja. Exemplo emblemático é a distopia de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1894-1963).
 
É muito difícil para artistas – sonhadores radicais por antonomásia – relacionarem-se com essas categorias éticas quando exercem as suas atividades. Se o fizerem, não serão tolhidos na criatividade, da própria razão de serem artistas? Enfrentar essa questão sistematicamente confere profundidade e estrutura histórica ao nosso trabalho. Trata-se de exercício de imenso aprendizado e a multiplicação criativa que nasce dessa vertigem, preferível à dos fanáticos religiosos ou políticos arrivistas, dos quais estamos muito mais próximos do que possamos imaginar.
 
III
 
Ver uma distopia como um gênero é uma ideia que particularmente desaprovo por acentuar características de maneirismo, superficialidade e maniqueísmo formal e ideológico, além de cercear a reflexão. Mesmo assim, há uma infinidade de títulos que superaram essa idiossincrasia. Enumero algumas – não haveria espaço para todas:
 
Em As Viagens Gulliver (The Gulliver’s travels, 1726) di Jonathan Swift, o doutor Lemuel Gulliver encontra os yahoos (homens símios que representam a corrupção) houyhnhnms (cavalos inteligentes e socialmente racionais); em Les 500 millions de la Bégum (1879),  Júlio Verne descreve o antagonismo da utópica France-Ville e a distópica e militarizada Stahlstadt. Os nomes já dizem tudo… Vamos a outros exemplos; O Calcanhar de Ferro (The Iron Heel, 1908), de Jack London; Nós (1921), de Evgenij Zamjatin; Metropolis (1926), de Thea von Harbou; Admirável Mundo Novo (Brave new world, 1932), di Aldous Huxley; 1984 (1948-49), de George Orwell, que gerou dois filmes: um em 1956 (O Sol Não Nascerá no Ano 2000) e outro em 1984 (Orwell 1984), além de uma serie televisiva e outra radiofônica; radiofônico; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury e o filme homônimo (1966) de François Truffaut; A Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1962) di Anthony Burgess e o filme homônimo de Stanley Kubrick; O Planeta dos Macacos (La planète des singes, 1963), de Pierre Boull, com filme homônimo de Franklin J. Schaffner (1968) e um remake de 2001 di Tim Burton, além da série televisiva;  Metropolis, clássico de Fritz Lang (1927); Blade Runner(1982), filme de Ridley Scott, de Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick; RoboCop (1987), filme de Paul Verhoeven; Star Trek (Jornada nas Estrelas,1966-2005), uma dimensão distópica oposta ao universo original; Black Mirror (2011), série televisiva britânica; Akira, mangá di Katsuhiro Otomo, com filme homônimo.
***
 
A distopia das coisas indissolúveis e da separação das coisas deste universo, tão bem formulada pelo filosofo pré socrático Zenon de Eleia (490/485 a.C.?–430 a.C.?) ficará para o próximo artigo.
 
 
Bibliografia 
 
Norberto Bobbio, Da Hobbes a Marx: saggi di storia della filosofia, Morano Editore, 1965.
Norberto Bobbio, Thomas Hobbes, Giulio Einaudi editore, 2004 
 
Thomas Hobbes, Dall’antropologia alla teoria politica –  in Treccani.it
 
Leviathan part 1 e 2, early modern texts.com. Versão quase completa em PDF
 
Thomas Hobbes, Leviathan, Cambridge, University Press Cambridge.
 
Nicolau Eymerich, Manual da Inquisição, Editora Juruá,1ªedição brasileira, 2001. 
 
Wikipedia.it
 

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