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Papo com Paroni | Utopia para a Distopia – I

Publicado em: 03/11/2016 |

 Mauricio Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro 

 

Em tempos  de desconstrução de qualquer certeza e de advento de milenarismos de todos os gêneros, vale a pena lembrar o santo que perdeu a cabeça em defesa da ideia de politica na qual deveria prevalecer a moralidade, no sentido latino de mores – comportamento: Sir Thomas More (1478-1535).

 

Era um modo de separar a Igreja do Estado. Como More, Niccolò Machiavelli (1469-1527) também se opunha à indissolubilidade entre Igreja e Estado. Mas o primeiro viajava diametralmente em sentido oposto a Machiavelli, que opôs a razão de estado à moralidade, a ética politica das ditas “razões de estado”. Não, não são o clichê pseudomaquiavélico “os fins justificam os meios”. São as razões imperativas e indissociáveis ao ato de governar pelo bem de seus governados.

 

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More foi Lord Chancellor (primeiro ministro – o chefe de Governo) do monarca Henrique VIII (1491-1547). Sucumbiu pela coerência de opor-se à separação Igreja Católica Romana e à criação da Igreja de Inglaterra – Anglicana – onde o rei também é o chefe da Igreja. Desde então, a autoridade máxima da Igreja Anglicana é o rei por ser este o chefe do Estado e não a anátema teocrática  em que o chefe de Estado é o rei por ser este o chefe da Igreja.

 

Thomas foi decapitado pela sua discordância com aquela ordem ético-política, ainda que não aprovasse um Papa a opinar temporalmente sobre a sua Inglaterra. Respeitadíssimo pela população, desaprovou oficialmente o divorcio do rei com a rainha Catarina de Aragão (1485-1536) por não produzir um herdeiro masculino ao trono.

 

Precisamente sobre esse tema há o texto do autor contemporâneo italiano Renato Gabrielli, com ensaios, de “Moro e il suo boia – Progetto per una messa in scena di Mauricio Paroni de Castro”, (Vita e pensiero – 1992 – Universidade Católica de Milão). A peça foi traduzida como “Morus e seu carrasco” e montada no Brasil por meu mestre e amigo Gianni Ratto (1916-2005), que assistiu aos ensaios de minha montagem milanesa de 1992. (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/11/23/ilustrada/37.html )

 

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É conhecida a ironia sobre o governo e sociedade inglesa presente em Utopia. Mas o que é essa obra que originou o senso comum do “sonho impossível”?

 

Utopia tem titulo e texto originais em latim: De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia (Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia). A trama narra a viagem imaginária de Hythloday (Raphael Hythlodaeus) a uma ilha-reino habitada por uma sociedade “perfeita”. Seria uma sociedade pacífica, onde a cultura normatizam a vida das pessoas.

 

Como toda obra do Renascimento, provavelmente uma tradução do grego para o latim inspirou More – feita com Erasmo de Rotterdam (1466-1536): eram escritos de Luciano (125-181); em particular, de um diálogo em que Menipo, dramaturgo grego, desce ao subterrâneo e narra sua jornada. Há referência à República, de Platão (428-348 a.C), que, explicitamente fala de uma cidade ideal. O trabalho também relaciona-se à Moralia de Plutarco.

 

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O título é um neologismo de ambiguidade fundamental: “Utopia”, latinização do grego Εὐτοπεία; ευ significa bom e τóπος (topos) significa lugar, seguido por –εία.: Οὐτοπεία. Com a contração do οὐ (não), a palavra utopia equivale a não-lugar, inexistente. Ou lugar imaginário. É muito provável que tal ambiguidade fosse intencional. Portanto, o significado correto do mesmo é a conjunção dos dois sentidos: “o grande lugar (não é) em qualquer lugar”, Trocando em miúdos: em todo lugar, em nenhum lugar.

 

Esse tornou-se o sentido moderno da palavra utopia : uma ilha ideal (lugar) que não pode existir na prática (nenhum). Confirmando a irrealizabilidade de Utopia, More emprega nomes como: Hythloday (contador de inverdades) – o protagonista; Ademo (sem povo) – o governante de Utopia; Amaurot (Cidade Oculta) – a capital; Anidro (sem água) – o Rio de Utopia. Mais adiante veremos que é nisso que reside também o seu oposto, a distopia.

 

Na primeira parte de Utopia, More mostra a Inglaterra do século XV em suas contradições sociais e económicas. Famosa é a história das ovelhas que pastam nos grandes prados onde poderiam trabalhar os camponeses, forçados ao crime, dado o desemprego e a miséria resultantes. Na segunda parte, Hythloday, o viajante-filósofo, visita a ilha criada por seu primeiro rei, Utopo, que cortou o istmo que a conjugava com o continente.

 

Utopia é dividida em 54 prefeituras, em referencia aos 54 condados ingleses. Mas, ao contrário da Inglaterra, Utopia resolveu os seus contrastes sociais graças a uma singular organização: os produtos da terra são de propriedade comum; o comércio é quase inútil, já que todos se comprometeram a trabalhar a terra cerca de seis horas por dia, doando a produção à ilha. O resto do tempo é dedicado ao estudo e ao descanso. Desse modo, a comunidade desenvolve a sua própria cultura em paz e tranquilidade.

 

A ilha é governada por um príncipe que tem o poder de coordenar as diversas instituições e representar seu povo; O governo está confiado a juízes eleitos pelos representantes de cada família; Adota-se o princípio, revolucionária para a época, da liberdade de expressão de pensamento e da tolerância religiosa, que é direito apenas dos crentes; Ateus são privados de cargo público e não são punidos por isso, embora desprezados pelos habitantes; A estrutura agrícola produz para o consumo e não para o mercado; O ouro e a prata não têm valor; Os cidadãos não têm dinheiro; A cidade é planejada; Não há escravidão para aqueles que cometem crimes; Intolerância e  fanatismo são punidos com o exílio e a servidão; o povo escolhe suas crenças; diferentes cultos coexistem; O número de crianças é estabelecido de maneira a deter o crescimento populacional; As crianças são criadas e educadas em áreas públicas pelas próprias mães; Os utopistas gastam o tempo livre lendo e estudando música, astronomia e geometria; Quem comete adultério é marcado pela infâmia e não pode mais se casar.

 

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Aqui começaram os pesadelos de More. O rei Henrique VIII queria casar-se novamente por razões de Estado; o papa Clemente VII negou a anulação de seu casamento. Chamaria isso de distopia. O oposto. Trataremos disso nos próximos artigos.

 

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Lembro: Distopia, um curta-metragem que escrevi, dirigido por Pedro Urizzi, onde os adúlteros eram sumariamente condenados à morte; o filme A an for all seasons, O Homem que não vendeu sua alma,  filme britânico com o excelente Paul Scofield, vencedor absoluto do Oscar 1967; adaptada da peça de Robert Bolt, que também assina o roteiro. Há uma versão para a televisão (1988), de Charlton Heston onde ele desempenha o papel de Thomas Morus https://www.youtube.com/watch?v=Io8pDyalMps

 

 

Bibliografia:

Umberto Albini, Fritz Bornmann, Mario Naldini, Manual de História da literatura grega, Le Monnier, 1977

Wikipedia;

A tradução italiana de Utopia de Thomas More por Hortensius Lando – fac símile da publicada em Veneza em 1548 por Anton Francesco Doni. Texto completo Utopia de Thomas More a partir do Project Gutenberg – Luigi Firpo (eds). Thomas More, Utopia. Napoli, Guia, 2000.

Catherine Brown, línguas utópicos, Viterbo: New Balance 2004 [1995]

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