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Papo com Paroni | Tema delicadamente criminoso – I (*)

Publicado em: 20/07/2015 |

Maurício Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro
 
Este é um artigo longo sobre teatro estendido ao cinema, que aconteceu em minha vida após curar-me de um grave linfoma em 2004. A morte quase aconteceu também, mas no lugar dela aparecem as figuras contadas a seguir. (**) 
 
 
***
 
 
Conheço Beto Brant desde quando ele se interessava por teatro. Começamos juntos nos anos 80, na escola de teatro do ator Wolney de Assis. Dado o estrago desesperador feito na Cultura pela ditadura militar, fui estudar na Itália. Formada uma companhia semiestável com alguns colegas de escola, lá desenvolvi uma carreira de diretor e professor fortunada por quase 20 anos. Durante um breve encontro em Milão, soube que ele tinha virado diretor de cinema. Reencontramo-nos quando, em São Paulo, o Atelier de Manufactura Suspeita encenou um espetáculo dentro do Sarajevo, um notável antro da Rua Augusta.
 
 
Contou-me que deveria fazer um filme sobre Teatro e que talvez precisasse de minhas referências. Precisava, dizia ele, de um intelectual que não fosse careta, apaixonado pelo teatro… disse entender o meu despojamento formal. Finalmente, disse que a coisa era séria. Dei uma grande gargalhada. Depois de um linfoma, nada mais poderia ser sério.
 
 
No mês seguinte, fui apresentado ao ator Marco Ricca e ao escritor e roteirista Marçal Aquino, que já tinha conhecido no meu espetáculo. Admiração recíproca. Estava formado o “Sinédrio” (posterior explicação). Dei uma olhada no que havia de roteiro. Achei tudo estranho, critiquei severamente o que li. Eles achavam que eu era um ranzinza, mas souberam ouvir e entender o que disse. Foi tudo harmônico, respeitoso, todos nós reconhecíamos as qualidades uns dos outros. Eram qualidades complementares. Quanto aos defeitos, eram os de todo bando de homens (não fascistas) juntos: monotonamente compensatórios e iguais. 
 
 
Ao fim de uma autocrítica, farejei as enormes qualidades do que havia tanto criticado. Havia milhares de possibilidades, mas não cheguei a perceber o essencial, o que realmente motivava todo mundo a fazer um filme sobre o Teatro.
 
 
Foi quando Beto quis que a atriz protagonista fosse Lílian Taublib – pessoa e atriz sem uma das suas pernas – que tudo ficou mais claro para mim. Fiquei horrorizado, vislumbrava somente dificuldades. Sentia um medo desesperador, desses de quem tem fobia de elevador. Instantes depois, pensei melhor. Fiquei com mais medo ainda: de mim mesmo. Havia feito um espetáculo na Itália anos antes – “L’ asino  d’oro” (“Matamorfose”), baseado no escritor latino Lucio Apuleio (125-179 d.C.) – no qual pedaços de pernas e mãos eram içados por cabos para o topo de uma torre no Castelo Sforzesco, em Milão.  No final, os atores se libertavam desvestindo-se das suas personagens sempre prisioneiras através de horrendas mutilações. Era um espetáculo sobre a linguagem do sofrimento, bárbaro a ponto de não se consegui-lo contar. E o primeiro espetáculo do Manufactura Suspeita começava com os atores que dançavam com pernas e mãos de manequins, depois de mortos numa explosão. (***) A coincidência era uma verdadeira fantasmagoria. Pensei: esse cara (Beto Brant) faz no cinema o que fiz no teatro; provoca um choque disso com o mundo real.
 
 
Entendi porque estava ali: dar uma gramática ao sofrimento da ausência, de uma perna, de um amor, qualquer que seja ela. Tudo começava a fazer sentido para mim como autor de alguma coisa, e não mais como um “intelectual” a serviço de um roteiro. Passou-se do artesanato à Arte. Buñuel e Sergio Sant’Anna me seguiam internamente.
 
 
Mais uma vez, o proverbial messianismo do Beto: intenção de enquadramentos rigorosamente teatrais, numa dinâmica muito similar à câmera baixa do cineasta japonês Yasujirō Ozu (1903-1963), em relação ao modo de se sentar japonês e às perspectivas daqueles ângulos. Não há subjetividade de “personagem”. Há objetividade do ponto de vista de uma linguagem diferente que corresponde a cada ponto-de-vista: o romance de Sérgio Sant ‘Anna, a objetividade do pintor, do crítico, do modelo, do teatro. Nada disso foi escrito no roteiro, era subentendido. Percebi a coisa quando Walter Carvalho fez a sua visita ao Sinédrio. Foi num dos últimos dias de redação do roteiro, que influenciou a crítica que começa com “pobre Schubert, que, postumamente não pode escolher as suas companhias…”. Ele chamou de demente quem fazia um espetáculo tão decadente como o Farsas Libertinas e punha o trio de Schubert como leitmotiv… adorei, era exatamente o que queria. Aquele espetáculo refletia o mundo dos encontros fetichistas.
 
 
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Havia feito poucas coisas com cinema na Itália: brevíssimos contatos com Silvio Soldini, Giuseppe Bertolucci, Lina Wertmüller e Raul Ruiz; roteiros de curtas; um roteiro de um longa policial jamais filmado; alguns spots publicitários. Desisti do cinema, que me parecia longe da nobreza do teatro. No cinema tem que acordar cedo, o teatro requer acordar tarde. Quando vi que neste filme tudo era noturno, adorei: era um cinema nobre antes de ser a indústria, que é – e não se deve negar. 
 
 
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Na Itália, todos os enquadramentos tinham de ser descritos no roteiro. Beto e Walter já tinham tudo na cabeça, fiquei surpreendido com isso. Fiquei muito amigo do Walter, ele tem uma cultura de humanista sem ser eurocêntrico. Acho que, a partir daquele momento, virei corroteirista de verdade. Passei a gostar de fazer cinema de novo. Fiquei feliz de verdade.
 
 
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Não conhecia o romance de Sérgio antes de conversar sobre o filme. É um ótimo romance. Estória análoga a um ensaio de Otávio Frias Filho sobre o modernismo, critica os embustes engendrados por muitos artistas que condicionam os contextos de muitas obras de arte em que apresentam. Vai bastante além disso, entretanto: o nosso roteiro, que dele se originou, ou pode ser complementar ou pode traçar um percurso de sentido inverso ao do romance, que faz na ambiguidade das manifestações da modernidade um tema principal. Entretanto, pode ser fiel ao espírito e ao clima do livro. Enfim, eu concordo pessoalmente com o ponto de vista de Sérgio. Mas, infiel ao romance, a estória do filme teve uma grande digressão com a entrada de Lílian enquanto protagonista. A problemática mudou de eixo. Mas retornou no final o tema do Homem a contextualização da Arte, o valor da Arte, o valor do Homem. Há muito de Albert Camus nisso. Ou Dostoievski. Há, enfim, uma coisa que os dois dizem, filme e livro: nós somos maiores que a estética, onde pode haver crime ou não. Dentro da estética, mas dentro da vida, crime é crime, tudo é vida e quase nada é estética; uma vez mortos, sobra só a estética, que é quem pode contar a estória, isso se o esteta conseguir.
 
 
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Quem é personagem e quem é real? Personagem tem a ver com o mundo mental de um autor. Quanto ao cinema e ao teatro, estes têm a ver com as ações de uma pessoa, ou sua projeção mental. Não há uma psicologia concreta. Severo e radical quanto a isso, detesto atores que ilustram o autor para reduzi-lo a psicologias fajutas. Amo atores que desenvolvem as conjecturas escritas de um autor em ações críveis. Não necessariamente verossímeis, mas críveis. Conheci atores que trabalhavam a verossimilhança dos fantasmas de Shakespeare… mas desde quando um fantasma existe? O jogo é outro, eu tenho, naquele momento da representação, que acreditar que as ações daquele fantasma vão ter consequências, isso é o que importa.
 
 
Portanto, no livro, é impressionante a figura de Antonio. No filme, Marco Ricca traçou e venceu o desafio de interpretar essa figura. Já no roteiro, ainda que ela contemple totalmente o drama de um crítico incapaz de comunicar seus sentimentos, o que é impressionante é a relação desconfortável de Antonio com a vida real de Inês e da atriz que o interpreta. Além da relação dele com o artista real Felipe Ehremberg, por sua vez superado por José Torres Campana. Este é, emblemática e paradoxalmente, o autor de uma arte que não é ficção. Mesmo assim, seu quadro não pode extrapolar a estupefaciente e singular qualidade do seu modelo humano: a de não ter uma perna. Não ter uma perna, num quadro, é simples expressão artística. Na vida de Inês, é drama sério.
 
 
Portanto, o que dizer de Inês que, no final do filme, oferece à obra de arte a perna que falta ao quadro e se sente inteira como atriz, transformando a pessoa que a interpreta, Lilian, numa pessoa liberta? O percurso inverso também é válido: a obra de arte que é a prótese de sua perna transforma o quadro numa coisa viva, que é a atriz, liberta da “personagem” de si mesma… Acho isso vasto e ilimitado, uma obra divinamente misteriosa e multifacetada, que vai além de sua forma.
 
 
 ***
 
 
Acredito que o filme deva se chamar, na melhor tradição italiana do século XVIII, “Crime delicado ou A vida é mais que a estética”. Assim mesmo: um título, mais que um tema. Naquela tradição, o título é o nome, é o que designa a obra. Contrariamente ao que aparenta, essa tradição não é explicativa; ajuda a desenvolvê-la. Jamais vou me separar da formação tradicional, eclética e acadêmica que tive na Itália.  Acho que por isso fui chamado e, depois, consegui continuar a fazer parte do que apelidei de “Alto Sinédrio, reunido na casa do Ricca”… até hoje ele deve ter saudade daquele grupo de doidos todas as tardes ali… e eu cozinhava também… Bem, quando das reuniões do roteiro, tinha esse título na mente e no coração, principalmente depois que o Beto, primeiramente, tomou a decisão de trazer a Lilian ao elenco (que eu não chamaria de elenco: chamaria de amostras várias de Humanidade).
 
 
O título secreto, dizia, defendeu-me das crises de falso humanitarismo… ou da temática centrada na deficiência física, da qual poderíamos vir a ser acometidos, estimulados pela problemática real, imperativa, mas perigosamente desviante, que se nos apresentava trazida pela condição especial de Lilian. Lilian também soube se livrar desse perigo: ela em si é a própria estória que o roteiro conta e por isso o trabalho sobre um paralelismo tão delicado com o enfoque principal do romance foi a base da preparação da sua interpretação. Foi extremamente difícil. Falar da personagem era como falar dela, e é duro desenhar os limites, que, aliás, foram também a paixão e fulcro da obra de um dos maiores dramaturgos do século XX, Luigi Pirandello, do qual o filme está eivado. Utilizei muitas técnicas e lembranças da minha brevíssima convivência com o americano Joseph Chaikin quando fomos colegas por dois dias na escola do Piccolo de Milão. Ator, diretor e roteirista de grande peso, Chaikin foi coautor de vários espetáculos de Sam Shepard, e, com ele, fundou o Open Theatre.  Particularmente comigo a coisa era forte e eu sentia medo real, porque padecia de um paralelismo análogo; recuperava-me de um linfoma, além de também ser deficiente físico, pois portador de esclerose múltipla, felizmente ainda relativamente remissiva. Mais um exemplo de paralelismo: tenho um irmão gêmeo que é um importante bailarino e coreógrafo na Inglaterra. A minha dificuldade de caminhar valoriza a dança dele. Cada movimento dele tem para nós um valor subjetivo gigantesco. 
 
 
O Humanitarismo perigoso que mencionei anteriormente destrói essa visão, mas o romance e o filme a valorizam. 
 
 
(continua)
 
 
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(*) Reescritura de “Crime delicado ou A vida é mais que a estética”, publicado no site Cronopios, em
28/01/2006
 
(**) Crime Delicado, de 2005, pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=KYpQbcHQflg
 
 
(***) O espetáculo “A parca norueguesa” (2002) traz à tona a convivência de um grupo de burocratas jovens que percebe que morreu vitimado por uma explosão ocasionada por um vizinho suicida. Ao constatar a situação, os mortos passam a fazer uma série de confissões públicas à plateia, sem interação direta. O público é guiado por um ator norueguês, cuja presença inspira o título. Parca é a divindade que fia e corta o fio da vida, a Morte. 
 
 
O espetáculo que abre o filme é “Farsas libertinas” (2005), a conclusão de um estudo teatral proposto e nascido no dungeon (masmorra) de um clube fetichista real, o Clube Dominna. Revisita situações e papéis vivenciados dentro do dungeon e é construído como uma comédia histórica sobre a liberdade da criação erótica, com as seguintes tramas: uma apreciação pseudocientífica das origens da sexualidade humana a partir do emprego do jogo e da transferência do poder erótico. Os quadros são carregados de ironia e de paródias de práticas fetichistas as mais diversas: bondage (amarração), spanking (chicotes), inversão de papéis, travestimentos, masoquismo, tortura psicológica. 
 
 
 

 

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