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Olhares: Crítica de ‘Calibre 762 – Da pólvora ao peito’

Publicado em: 17/11/2019 |

POR LUCIO MEDEIROS, especial para SP Escola de Teatro

Lembro de ter lido uma vez de Jorge Mautner que toda grande obra de arte possui quatro elementos: luta pela igualdade, pela liberdade, pela curiosidade e ser um bálsamo para o sofrimento.

Esses me pareceram ser os elementos que guiam a obra em progresso de “Calibre 762 – Da pólvora ao peito”, apresentada no projeto Ouvi Contar dentro da programação das Satyrianas. O grupo já havia refletido sobre a banalidade da violência em sua obra anterior, denominada “Luneta”. E se ali tal temática era apresentada a partir da incapacidade do casal protagonista da peça de reagir diante da brutalidade de seu entorno, em “762”, somos sacudidos com a indiferença com que naturalizamos ou não nos chocamos com o nonsense da (i)lógica do discurso belicista.  

A leitura dramática da peça de “Calibre 762 – Da pólvora ao peito”, escrita e dirigida por Júlia Zocchi, foi feita por Letícia Karen. É um monólogo construído a partir da antropomorfização de um projétil. Tem como ponto de partida o disparo que atinge uma criança em idade escolar. 

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Considerando o fato do escandaloso número de crianças mortas por armas de fogo na cidade do Rio de Janeiro neste ano, torna-se impossível não fazer o enlace com o texto de Júlia Zocchi. Reflexão oportuna e atual, o texto está longe de ser um panfleto de agitprop: é um discurso de conteúdo político, sim, mas articulado artisticamente.

Uma tensão constante atravessa a peça, pois a partir das reminiscências do projétil de calibre 762 somos impelidos a refletir sobre o quanto a indústria bélica consegue emplacar seu discurso comercial e assim nos vender a ideia equivocada da segurança.

O projétil não possui outra função senão a de matar. Ao refletir sobre isso a cápsula disparada lamenta não ter morrido como bala teste, pois ao cumprir seu destino destruiu seu corpo feito de latão e pólvora levando consigo o corpo de uma criança.

A desumanidade da concepção das armas de fogo é reforçada em alguns momentos. A autora joga luz ao fato de que balas tiram a vida não somente dos alvos de guerra, para os quais teoricamente seriam produzidas, mas também ceifam vidas de cidadãos indefesos que nada fizeram para que fossem alvo de disparos.

“Calibre 762 – Da pólvora ao peito” possui uma tessitura poética, com hábeis jogos de palavra que reforçam o conteúdo e mostram uma autora preocupada com o desenho geral da trama sem deixar de cuidar dos detalhes. O trabalho, em processo, deve formar uma trilogia com a já concluída “Luneta” e outra peça vindoura, segundo a autora. “Calibre 762” é obra política que não abre mão de ser artística. 

 

Lucio Medeiros é participante da Oficina Olhares — Uma Poética da Crítica, ministrada por amilton de azevedo, como atividade de extensão cultural da SP Escola de Teatro. Os participantes foram convidados a escrever críticas de espetáculos das mostras AutoPeças e Ouvi Contar, dentro da programação das Satyrianas 2019.

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