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O Experimento do Módulo Azul por Hayaldo Copque

Publicado em: 30/04/2013 |

Hayaldo Copque*, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Processando a teoria

Ainda que discorde de seu pressuposto (a ideia, de fundo szondiano, de um pós-dramático, ou pós-drama), a principal obra do teórico alemão Hans-Thies Lehmann[1] já possui seu lugar de importância dentro da teoria teatral, justamente por oferecer elementos para que possamos ler e refletir sobre determinadas práticas tornadas visíveis especialmente a partir do final do século 20. Além disso, como bem afirma Jean-Pierre Sarrazac, seu conceito-chave “tem ao menos a vantagem de lembrar-nos da dissociação entre teatro e drama” [2].

 

O debate produzido pela obra de Lehmann, muito atacada particularmente em alguns meios acadêmicos, expõe claramente uma peleja (eterna, se pensarmos em toda a História da Arte) entre os representantes de uma dita tradição versus os representantes de uma dita ruptura. A principal vantagem do livro “Teatro Pós-Dramático”, e de toda a discussão subsequente, está, portanto, no lançar luz sobre práticas teatrais mais experimentais[3], sobre formas outras de relação cênico-textuais, de criação e de recepção da arte teatral.

 

A noção de teatro performativo parece surgir como uma tentativa de sanar os principais problemas, de ordem prioritariamente conceitual, da obra de Lehmann. Assim, afirma a pesquisador Josette Féral:

 

“Esse teatro que chamarei de teatro performativo, existe em todos os palcos, mas foi definido como teatro pós-dramático a partir do livro de Hans-Thies Lehmann, publicado em 2005, ou como teatro pós-moderno. Gostaria de lembrar aqui que seria mais justo chamar este teatro de ‘performativo’, pois a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento” [4].

 

No cerne deste teatro estaria, dentre outras, a noção de processo, a experiência sobreposta à ideia de um produto final. E qual não foi a minha surpresa quando – ao ser convidado para assistir às exibições do Módulo Azul e escrever um texto para o portal da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco – soube que tais exibições se tratavam de aberturas de trabalho dos aprendizes e que, mesmo a mostra final, deveria ser encarada como um experimento? Se o eixo temático deste módulo é a performatividade, não me parece haver nada mais adequado do que encarar estas mostras públicas como processo.

 

Abertura de processo do núcleo 5 (Foto: André Stefano)

 

Um processo e uma importante experiência tanto para os aprendizes quanto para os espectadores, incluindo aí os formadores da SP Escola de Teatro. As dificuldades de estabelecimento de parâmetros para a análise sempre estarão colocadas nesse tipo de teatro em que se impõe uma estética da presença, em que realidade e ficção, representação e apresentação interpenetram-se continuamente e os signos emergem em constante mutação, instaurando um jogo polissêmico que, muitas vezes, exige do espectador uma maior atenção. Lembremos o que Fátima Saad nos diz, na revista A[L]BERTO #2, a respeito do espetáculo contemporâneo:

 

“Por um lado, há uma fricção entre o real e a obra, na qual a obra ‘formaliza’ o real e o real ‘contamina’ o espetáculo, fazendo-o existir num limiar entre o cotidiano e sua abstração […]

Por outro lado, o pensamento da e sobre a obra é desestabilizado e oscila entre a experiência imediata e a necessidade de conceitualização para que essa experiência se dê plenamente […]” [5].

 

Adiante, no mesmo texto, a dramaturgista da Cia. Teatro do Pequeno Gesto parte de uma afirmação de Luiz Camillo Osorio para dizer que “a procura de sentidos naquilo que está ‘em processo de constituição’ caracteriza, contemporaneamente, tanto o gesto crítico quanto o gesto criativo e é, portanto, obra coletiva, de criadores e fruidores” [6].

 

Mas se o espectador precisa estar mais atento em seu papel de coautor – dentro desse jogo de signos e frente a maior abertura para a construção dos sentidos da obra –, é necessário que o artista também não se deixe abandonar às imagens mais fáceis, à abstração exagerada, à intuição vazia ou ao racionalismo demasiado e ao hermetismo extremo, afinal, cabe justamente ao artista – e este seu papel nunca mudará – agenciar (ainda que) os mínimos elementos desencadeadores da abertura do imaginário do espectador. É preciso que o espectador seja convidado a essa coautoria.

 

Até mesmo o teatro contemporâneo já se ergueu como tradicional, na medida em que vemos a repetição de cânones (fragmentação, incorporação do real, pouca luz, microfone, mídias, dança, performance…). É importante que o artista busque sua identidade no meio desse tanto e, ainda que com esse tanto, afirme sua identidade. Ir além, retornar, focar na fagulha, mas, pensar, alheio a todos os mestres e inspirações: “o que de fato há de vivo aqui?”; “o que eu quero?”; “o que me move?”. Para mim, para o outro, para o meu outro.

 

Os núcleos

São muitas, portanto, as dificuldades para a elaboração de um teatro performativo que fuja do clichê e que permita a participação do espectador. Nas condições propostas para o Módulo Azul, eu diria que as dificuldades se ampliam. Não pelo fato de os aprendizes estarem em formação, afinal todo artista que se preze sempre estará nessa condição, mas pelos próprios desafios (e eu não tenho dúvida de que é dessa maneira que a coisa deve ser encarada) propostos pelos formadores, coordenadores e pela equipe pedagógica da SP Escola de Teatro.

 

Imagine um processo de montagem com dois dramaturgos, dois diretores, um grupo de atuantes ou humoristas (sendo que, não necessariamente, os diretores saibam como trabalhar com humoristas) e toda uma equipe técnica dobrada. Agora imagine essas pessoas tendo de criar uma obra cênico-teatral sem um texto pré-definido (ainda que possuam certo material teórico, porém não necessariamente organizado para a finalidade cênica: aspectos da teoria de Bauman, a obra de Romeo Castelucci, a noção de performatividade, além dos formadores à disposição). Se em um grupo com anos de trabalho o desafio já seria homérico, imagine com jovens que talvez nunca tenham trabalhado juntos.Foram oito os núcleos a se apresentar: dois na Praça e três na Sede Roosevelt, pela manhã, e três na Sede Brás, no período da tarde. Em geral, percebi um trabalho muito bem acabado do ponto de vista dos elementos visuais e sonoros, entretanto, alguns núcleos pareciam não ter a exata consciência dos signos que estavam mobilizando e outros utilizaram recortes amplos demais e acabaram não dando conta do que parecia ser o propósito inicial, ou criando abstrações tamanhas, que se perdiam em si mesmas e, por conseguinte, dificultavam mais o diálogo com o espectador.

 

Os dois núcleos que trabalharam na Praça Roosevelt começaram seus experimentos abordando a questão da liberdade. O tema estava claro. O núcleo 6 conduziu os espectadores com uma canção com a seguinte pergunta: “Você é livre nessa praça?”; enquanto o núcleo 2 nos pediu para sermos livres na mesma praça. Ambos, cada qual a seu modo, discutiram a questão da liberdade na Roosevelt (o núcleo 2 foi até um pouco além dela), entretanto, lanço uma questão: até que ponto ainda se poderia aprofundar? Ou ainda: chegamos ao nosso limite ou podemos ir além? Acredito ser esta a hora de ir além (e isto não é apenas para estes núcleos, mas para todos).

Núcleo 2 (Foto: André Stefano)

 

Muito do que vi nos experimentos guarda relação com muito do que vi ou ouvi por aí. Era possível localizar Marina Abramovic ou Yoko Ono (núcleo 7), o Yuyachkani (núcleo 8), Pina Bausch (núcleo 3)… Não há absolutamente nenhum problema na citação, ela sempre vai existir e é até mesmo bom que exista, pois ajuda a perpetuar grandes obras e podem auxiliar na criação de outras maiores. Entretanto, é preciso que haja a consciência da citação e que os novos criadores saibam emergir novos elementos e significados de uma forma já utilizada, elementos seus de questões suas.

 

Vamos agora às minhas viagens.

 

Li alguns signos, à minha maneira, e, como dramaturgo, construí [minhas] narrativas com o que vi. O núcleo 3, por exemplo, me apresentou a barbárie do estrangeiro (a mochila feita de bexigas me indicava um turista e sua enorme sacola de viagem). Pensei nas denúncias de estupros perpetrados por soldados em países invadidos pelos Estados Unidos. O pedido de “silêncio” ao final, ao mesmo tempo em que tudo acalmava, parecia nos denunciar que tudo o que está acontecendo irá se perpetuar no campo da omissão; o núcleo 8 me pareceu ter compreendido bem o mundo sobre o qual Bauman se debruça. Pessoas isoladas em suas caixinhas, preocupadas demais em consumir, em ocupar o tempo, em vez de “viver” o tempo; o núcleo 2 mostrou o espaço público e o choque entre a pretensa liberdade e o imperativo racional das normas restritivas – atacadas ao final pela quebra das cabeças, a razão sendo destruída pela revolta e pela dança.

 

Já o núcleo 5 construiu mesmo uma narrativa, facilmente decodificável. Aliás, esse núcleo permitiu-me uma série de leituras e uma fruição feliz, no entanto, questiono-o e questiono-me: será que não é porque pude vislumbrar uma fábula, com personagens inclusive? Sendo assim, qual o real espaço do performativo nesse experimento? Perguntas apenas para a reflexão.

 

Não cabe aqui especular os motivos de alguns terem dado “mais certo” e outros não, mas o trabalho em grupo exige uma ética específica. O desafio de dois diretores e dois dramaturgos trabalhando juntos pode gerar algum choque de hierarquias, mas é preciso usar isso a favor, afinal, o teatro performativo pressupõe quebra de hierarquias. Vencer ou não essa guerra, com um produto final bem elaborado, torna-se quase insignificante quando o processo (tanto o artístico quanto o pedagógico) é o foco. Mas, ainda que não se vença a guerra, o importante é lutar até o fim.

 

Espero ter contribuído de alguma forma com esse texto, que gostaria que fosse encarado como um conjunto de reflexões, de um acadêmico e artista que também vem se questionando sobre algumas questões do teatro contemporâneo, e não como um texto crítico ou de julgamento estético. No mais: um brinde ao desafio.

 

 


 

[1] Teatro pós-dramático, publicado no Brasil pela Cosac Naify, com tradução de Pedro Süssekind.

[2] A reprise (resposta ao pós-dramático), tradução de Humberto Giancristofaro de artigo originalmente publicado na revista Études Théâtrales 38-39/2007.

[3] Ainda que Lehmann explicite que o teatro pós-dramático não seja exclusivamente composto pelo experimentalismo, com artistas que participam, inclusive, do mainstream.

[4] Por uma poética da performatividade: o teatro performativo, p. 197. IN: Revista Sala Preta, v. 8, n. 1 (2008), p. 197-210.

[5] Afinidades eletivas, p. 24. IN: Revista A[L]BERTO, n. 2 (2012), p. 17-27.

[6] Ibidem, p. 25.

 

 

Hayaldo Copque, dramaturgo, ator, professor e doutorando em Artes Cênicas pela UFBA, escreve a convite da Coordenação Pedagógica da SP Escola de Teatro

 

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