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O Experimento do Módulo Azul por Fernanda D’Umbra

Publicado em: 27/03/2013 |

Fernanda D’Umbra*, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

METRÔ BRESSER, 23 de MARÇO DE 2013

 

Nasci em São José do Rio Preto no ano de 1971 e saí de casa aos 17 anos para fazer Teatro em São Paulo.

 

Moro aqui há 25 anos e nunca tinha ido à Oficina Cultural Amácio Mazzaropi (prédio que abriga a Sede Brás da SP Escola de Teatro). Foi louco atravessar a rua e reconhecer aprendizes na calçada chegando para o Experimento. Era cedo e eu me lembro de comentar com alguém que era duro fazer Teatro àquela hora da manhã. Eu estava totalmente perdida e, por ser agora uma senhora de 42 anos, conseguia admitir meu estranhamento (jamais faria isso quando jovem, padeci de toda a espécie de orgulho quando moça). Não entendia nada: onde eram as salas, quais eram os critérios de avaliação, como as turmas (nem chamam de “turmas”, têm outro nome) se misturavam, enfim, eu não sabia onde tinha um banheiro. Claro que estava cercada de pessoas gentis  que foram me orientando ao longo do dia (Eric, Elen, sem vocês, nem sei), mas minha falta de informações era proposital. Elen havia me passado por e-mail alguns dados importantes sobre as fontes de pesquisa do Experimento: imagens, Bauman, a performatividade como eixo temático (fiquei mais ligada a este fator). Mas era “por querer” que me colocava ali na posição de ignorante suprema. Queria ter a sensação que minha mãe teria ao ver o Experimento. Queria saber o que os aprendizes mostrariam a um público “civil” e me coloquei nesta posição. Então entrei na sala 39 sem eira nem beira.

 

Falarei, portanto, amigos, sobre o que meu corpo viu e nada mais. O Núcleo 4 ocupava a sala tendo um piano como astro rei e comportando-se como planetas bêbados às nove da manhã. Era uma bela cena, diga-se, cujo foco espalhava-se pela sala, achei isso muito esperto. Gostei da maneira como eles iam se colocando no espaço e dividindo com o público um texto que claramente nascia de depoimentos pessoais. Há que se ter uma presença cênica descomunal para realizar o que propunham, pois o espectador tinha ali muitas possibilidades de olhar e escuta. Havia uma força grande na postura dos atores, eles sabiam o que queriam, o que já é grande coisa num experimento que levou apenas dois dias de preparação. Tinham uma dramaturgia construída de forma muito consciente (haviam decidido o que dizer, achei isso precioso) e falavam com convicção. Levanto aqui uma crítica: falavam. E a voz no Teatro não foi feita para falar, mas para matar de amor quem está na plateia. Ela pode ser baixa, alta, colocada, esganiçada, isso não importa.

 

Importa que te comprem e te levem pra casa. A voz do ator tem que ficar na cabeça do espectador até o café da manhã do dia seguinte, até o fim da semana, até sei lá quando. Mas isso pode ser considerado uma passo além, algo que ainda virá. O que me agradou foi ver ali um pensamento performático. Uma encenação à vera. Alguém conduzia aquela situação e esse alguém tinha nome e sobrenome. Eram os atores que mandavam ali. Isso pode parecer pouco, mas é quase tudo. 

 

Quando saí da sala, não tive muito tempo para nada. Ainda estava bastante perdida ali e achava isso fundamental para minha experiência. Não queria saber de nada. Queria permanecer leiga e o fiz. Entrei na sala 21 e me sentei para ver o núcleo 7. Desenrolava-se ali um texto quase poético onde uma palavra puxava a outra. A coisa ia bem e eu nem piscava tentando ver onde o cenário de bexigas e massa humana nos levariam. Em um dado momento me perdi. Porque os atores começaram a cheirar a plateia e a fazer alguns comentários que eram nítidas piadas internas. Tenho aqui em meus pensamentos algumas convicções/preconceitos que se solidificaram com a idade. Um deles é a tal da interação com a plateia. Tenho mais medo disso do que dos deslizamentos de terra no litoral. Ela arrebenta com a ficção, porque transforma o ator em “alguém que está te cheirando”, você se lembra de que aquilo tudo é mentira. Portanto, a interação com a plateia deve valer uma vida. Deve ser feita com o máximo respeito à ficção, sob o risco de derrubar o ator expondo a fragilidade da performance: “Não sei bem pra onde ir, vou para a plateia”. Sinalizo que já vi belas intervenções de atores na plateia, mas reafirmo que isso só deve ser feito se tiver ainda mais força do que o que vemos em cena, senão está jogando contra. É certo que tudo era experimento ali e vale como experimento. Mas diante de mim a mentira da ficção teatral se desfez. E eu pensei em outras coisas. Pensei que eles poderiam se machucar com as bexigas, por exemplo. Mas isso foi uma grande bobagem minha. Bexigas não machucam ninguém.

 

Cena do núcleo 5 (Foto: André Stefano)

 

Na sequência fui para o experimento do núcleo 1, na sala 34, onde havia uma pista de dança e algumas pistas a seguir. Durante os quinze minutos de performance percebi que se buscava um estado de exaustão e esgotamento que pode ser belo e forte, se for encenado. Não vale ver o esforço. A performance tinha tantas qualidades de imagem, como um figurino bem cuidado, corpos bem diagramados no espaço e uma bela presença cênica dos intérpretes. Então onde foi que eu me perdi? Na realização do esgotamento. Não é bom que o Teatro seja real. Não é bom que o ator se machuque de verdade, goze de verdade, sangre de verdade ou perca um dente de verdade. É claro que não foi isso que aconteceu, mas tenho para mim que a verdade do Teatro tem que ser a mentira, senão é realidade e a realidade é só uma referência no Teatro, não é o Teatro. Se eu vejo de fato o cara se esgotar na minha frente, aquilo me tira dali. Cito agora um dos maiores gênios mentirosos de todos os tempos, Chiquinho Brandão: “O público tem que achar que é fácil”. Concordo com ele, esse é o nosso segredo: jamais revelar quanto custa. 

 

Já estava com fome quando entrei na sala 26 para ver o núcleo 5 e gostei muito quando vi num foco uma atriz muito concentrada, que compunha uma bela figura com o resto todo ali: luz, cenário, música, tempo/espaço. Quando outras vozes foram surgindo me veio uma boa sensação de organização e pensei, isso vai me fazer esquecer a fome. E fez. A opção pelo ensaio/treino dentro da cena foi muito boa. Ela criava uma dramaturgia de resistência dos atores. Resistência física e resistência às ordens do diretor, que por sua vez respondia às ordens do dramaturgo presente na cena e, portanto, agente factual do conflito. O negócio era ali, na hora, tipo um hot-dog que você vê o cara fazendo. E foi ficando tudo muito claro para mim. Mas terminou sem a mesma força que começou, porque escapou uma certa felicidade em realizar, uma certa festa interna de contentamento por cumprir a missão. Eu percebi isso antes da performance terminar. Talvez eu não esteja sendo clara, mas se pudesse ser bem cruel (o que não é da minha natureza) diria que eles quase agradeceram antes de acabar. Porque de algum jeito sabiam que tinham ali algo bom nas mãos. Começou no começo, mas acabou antes do fim. 

 

ALMOÇO NO LA BARCA, FEIJOADA E BATE PAPO SEM CAIPIRINHA

 

À tarde fomos para o quintal da minha casa, a Praça Roosevelt. Deu tempo até de vir pra casa e arrumar a cama, que tinha ficado desfeita na pressa da manhã. Voltei para a Praça e esperei as ordens na frente da escola. “Vamos lá!”, os meninos e as meninas do núcleo 2 chamavam a todos para o outro lado da rua. E é sempre bom ver como as coisas funcionam do outro lado.

 

Com seu figurino cinza e vermelho eles pareciam ter saído do chão, pareciam ter sido projetados junto com a Praça. Achei isso foda de bom, muito esperto do ponto de vista da performance. Eles “viraram” um pedaço do espaço. Tinham clareza de como ocupar cada canto da praça e usaram um recurso muito eficaz: um objeto levando o próximo ator à próxima cena de maneira a integrar o elenco pela convenção e não pela contracena. Eles estavam juntos, mas não se misturavam. Achei isso muito bom, dramaturgicamente falando. Parecia uma reprodução da metrópole, onde todos estão juntos e sós ao mesmo tempo.  

 

Experimento do núcleo 3 (Foto:André Stefano)

 

O núcleo 6 foi subterrâneo! Aquilo foi demais! A parada dos bueiros foi animal. Como puderam ter aquela ideia? Quisera eu ter tido muito antes. Foi bom ver como eles se viraram para construir um espaço cênico num lugar que não é um espaço cênico tradicional. E foi no braço que os caras estabeleceram a ficção numa praça com crianças, pais, skatistas e eu (de novo deliciosamente perdida). O uso da arquitetura da praça foi muito esperto, mostrou uma bela noção de ocupação e possibilidade dramática do espaço. Que bom que não choveu. 

 

Então entramos na Escola e eu ganhei uma sacola linda do Eric com coisas legais dentro (não ia deixar de escrever isso, adoro ganhar presentes). Subi para o oitavo andar, mas dei de cara na porta. Lotado. Jamais me verão reclamar de uma sala lotada, mesmo que eu fique de fora.  Então abri um gibi e deixei o tempo passar. Não queria escrever nada lá, queria sentar em casa depois e surrar minha memória, como estou a fazer. Quando finalmente entrei para ver o núcleo 8, a coisa toda tinha um aspecto de festa, de programa de auditório e aquilo parecia divertido. O que me deixou cabreira ao longo do Experimento foi uma coisa muito simples: informação versus forma. Era muita informação cênica (sons, imagens, atuações) para pouca forma. E no Teatro a forma entrega a encomenda. É preciso formalizar para atacar plateia e derrubar os espectadores de seu pedestal de preguiça e estranhamento. Sem forma, remamos à deriva, entramos e saímos da mentira tomados por uma instabilidade onde o truque se revela. Ah, se soubéssemos como o mágico tira o coelho da cartola, jamais o levaríamos a sério. Pelo que vi, imaginei a performance como o resultado de um processo excessivamente coletivo, onde o grande número de ideias turvou a forma. O rigor liberta. É estranho isso, mas é fato. 

 

Então fui parar naquela sala linda do oitavo andar para assistir ao último Experimento do dia, o do núcleo 3. Tudo estava escondido sob um véu e eu me sentei na primeira fila, coisa que quase nunca faço. Um tecido leve encostava na minha cabeça e eu achei ruim que o cenário me tocasse (frescura minha, mas enfim…). Quando levantaram o tecido, o que eu vi foi uma linda imagem absolutamente bem acabada de corpos e espaço vazios “colocados” no palco. Sim, colocados. Parecia que alguém tinha ido ali e posicionado os atores em cena como se fossem brinquedos de carne e osso. Os intérpretes mostravam uma bela consciência do espaço e o ocupavam executando uma dramaturgia de silêncios e movimentos, quebrada finalmente por uma canção que poderia sim ter sido lançada com mais propriedade, já que vinha pra arrebentar com o vazio sonoro. Mas valeu mesmo assim, teve força suficiente para fechar o dia e encerrar os trabalhos com uma beleza tranquila. Que força tem a delicadeza, meu Deus! Saí dali certa de que há um pensamento estético se formando e isso é o que importa no fim das contas. 

 

A todos os aprendizes, mestres, coordenadores, recepcionistas, seguranças e demais profissionais da SP Escola de Teatro, meu mais profundo respeito, admiração e carinho. Obrigada é pouco. Então digo que lhes devo um sábado. E que se um dia puder pagar, serei muito feliz por isso.

 

 

* Fernanda D’Umbra, atriz e diretora, escreve a convite da Coordenação Pedagógica da SP Escola de Teatro

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