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Experimento do módulo Vermelho por Eric Lenate

Publicado em: 28/10/2013 |

A VERDADE DE CADA UM

 

* por Eric Lenate, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

01_A parresia nossa de cada…

 

“A verdade é luta, estratégia, conquista e vitória; é uma força imanente inteiramente atravessada por relações de poder.” (Michel Foulcault)

 

Raros são os momentos em que preferimos dizer a verdade. Porém, sem fundamento não são as razões pelas quais optamos por “agir” assim. De fato, se ousarmos manifestar o que pensamos, podemos nos tornar indesejáveis, deturpando a capacidade humana de convívio e de relações amistosas.

 

Parresia é o termo em grego para designar a coragem de se dizer a verdade, expor tudo, falar com franqueza. As palavras certas, proferidas no momento adequado, oportuno, podem revelar injustiças, impor lucidez e também ferir. Dispará-las pode aniquilar moralmente qualquer instauração de poder. Convicção é fundamental. Mas se o ato parresiástico for obra de mero atrevimento, irresponsável, o dano pode ser irreversível, sobretudo quando – e se – houver plateia. A parresia é uma virtude, antes ainda, uma necessidade; e seu emprego pode se dar tanto na esfera pública quanto na privada. Podemos, inclusive, provocar um ato parresiástico em alguém, ou em inúmeros “alguéns”. E quando a verdade puder ser proferida sem malícia, é justo acreditar que não se guardarão rancores.

 

Talvez venhamos a ter a nítida consciência de que evitar o confronto, a franqueza, gera uma conta a ser paga com muita contrariação, na qual se contabilizam hipocrisia, falsidade, fingimento e mentira, mas quem terá coragem de agir assim?

 

Ser parresiasta não é ser irônico, crítico ou desafiador por meio de ofensas, agressões e insultos gratuitos. Isso nada mais é do que mera opinião e não, necessariamente, opinião verdadeira. O que mais caracteriza a parresia é o fato de sempre haver um alto preço a ser pago por ela e não se ficar impune ao pronunciá-la. Portanto, é na esfera da vida social e cívica que optar por dizer a verdade pode gerar consequências de alcances imprevistos: desordens de todo gênero, contra-ataques, interdições, censura e até mesmo a morte. É arriscado! Proferir a verdade é possibilidade de encontro com a fúria. Foucault afirma que “é abrir para quem diz a verdade certo espaço de risco, é abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo”. De fato, é expor a existência ao risco pelo que é mais caro ao ser humano: a liberdade. Os parresiastas devem estar dispostos a morrer por ela. A coragem é imprescindível!

 

Cena do núcleo 1 do Experimento (Foto: André Stéfano)

 

Na fala pública que a parresia é mais parresia. Foucault afirma que “as diferentes maneiras de dizer a verdade podem aparecer como formas” e analisa quatro delas: estratégia de demonstração, de persuasão, de ensino e de discussão; porém afirma ainda que, mesmo que a parresia também seja uma determinada maneira de se dizer a verdade, esta maneira não pertence à erística (arte de discutir), nem à pedagogia (arte de ensinar), nem à retórica (arte da persuasão), nem tampouco a uma arte da demonstração: “Não a encontramos no que poderíamos chamar de estratégias discursivas”. Pertence a que arte, então?

 

Foucault acredita que, se quisermos analisar a parresia, não devemos fixar nossa atenção no “lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da finalidade que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o ‘dizer a verdade’ abre para o próprio interlocutor”. O ser humano, sobretudo o ser social que se pretende a uma atividade artística – esta que devia ser por excelência e essência um ofício de [auto-]provocação –, precisa estar lúcido quanto a sua responsabilidade perante o uso de uma fala e uma atitude parresiástica; tentar ter máxima consciência das possibilidades e dos perigos possíveis num confronto com o público e com o espaço público; e conseguir perceber qual a Forma mais adequada de fazer sua fala e seu trabalho, parresiástico ou não, chegar com impacto àqueles que o presenciam.

 

02_Do ato e da beleza de experienciar[-se]

 

“Experimento – de experiência – significa observar ou fazer alguma coisa sob determinada ‘condição’, o que acarretará em um resultado ou estado final de acontecimentos que não são previsíveis. Os experimentos – comumente realizados no campo das ciências – não são precisamente repetíveis, mesmo que realizados sob condições supostamente idênticas e previamente estabelecidas.” (Dicionário inFormal)

 

É no momento em que precisamos realizar uma tarefa que nos solicita reflexão e engenho – auto-imposta ou solicitada por terceiros – que nos encontramos com nós mesmos. Neste momento conseguimos ter uma determinada noção – às vezes intuição – do quanto a vida ao nosso redor nos perpassa, ou deixa de nos afetar; do quanto estamos intimamente ligados às problemáticas do nosso tempo atual cotidiano ou do quanto estamos alienados delas, desabilitados, imóveis, perplexos diante de nossa realidade.

 

No ato de experienciar[-se] no campo das artes, nos deparamos com nossas verdadeiras necessidades e, por muitas vezes, com o tamanho do eco de nossos vazios. Duas coisas intimamente ligadas: necessidades vitais e o eco de sua ausência. E é este o instante em que uma porta se abre diante de nós e alguma luz pode adentrar a sala escura: o momento quando temos a oportunidade de admitir que nosso legítimo ato parresiástico talvez resida e ecoe do encontro com nosso terrível vazio; e a possibilidade de manifestá-lo como uma experiência que pode contribuir para dar forma à angústia compartilhada por todo e qualquer ser vivente, e ainda humano.

 

Partindo disto, seguem-se algumas considerações sobre cada experimento:

 

·         Núcleo 01 – “Diante da palavra” e “Coriolano” – Orientação: Cássio Santiago

 

Nítido exemplo de um ato performativo sem riscos ao intelecto do espectador, levemente ilustrado por algumas imagens em movimento – não necessariamente movimento dramático ou performativo – que preenchem determinados tempos/instantes, porém realizado sem necessidade vital. A cena em que um atuador fala ao megafone enquanto outros marcham em sua direção propondo confronto seria muito interessante se, para começar, pudéssemos entender o que foi dito nela. Trabalho mais para organizado do que dirigido, entretanto sem cuidado algum com o que se diz em cena pelos atuadores, com a palavra empregada no experimento como um todo. O ato parresiástico talvez tenha se perdido por causa da falta de necessidade do mesmo?

 

·         Núcleo 02 – “Insulto ao público” e “O inimigo do povo” – Orientação: Eliana Monteiro

 

A direção dá conta de encenar com algum impacto e fruição estética um material dramatúrgico sem impacto algum. Aliás, a dramaturgia parece pretender um encadeamento de ideias de certa forma “filosófico”, repleto de aforismos, se utilizando de frases e períodos com a genuína intenção de produzir efeito no público, mas não o faz. Estão mais para somente “frases de efeito”, que não encontram ressonância nos atuadores, apesar do empenho patente dos mesmos. Filosofia não é teatro. O ato de reflexão filosófica só tem serventia para o teatro quando este tem possibilidade de reverberar em cena, em ação dramática ou performativa. Algo de dramático ou performativo – e a possibilidade da parresia – se instaurou quando o coletivo impôs um microfone para o público. Mas seria necessário que não estivéssemos sob a rédea do horário a cumprir para saber quanto risco estávamos correndo neste momento. Talvez, se estivéssemos em um happening, cabeças tivessem rolado e sangue teria escorrido pela escada de entrada daquela sala.

 

·         Núcleo 03 – “A vida de Galileu” e “O mandarim” – Orientação: Criz Lozzano

 

O que ficou de mais inquietante neste experimento foi a tensão e o atrito manifesto no debate entre os integrantes deste núcleo. Tensão e atrito aparentemente apaziguados em nome de uma manifestação cênica sem tensão nenhuma, sem nenhum impacto e sem inquietação para o intelecto do espectador. O que se apresentou como sendo a proposta do núcleo: um painel de relações pós-humanas de proporções distópicas, acabou por se manifestar de maneira frágil e óbvia. A dramaturgia, que intenta ousadias por meio de aforismos e estrutura fragmentada, não encontra eco na boca dos atuadores. A direção se perde nas questões de tempo, ritmo e espacialidade. Os responsáveis pelo figurino e cenografia vão pela saída mais óbvia ao optar pelo branco em cena para contribuir na caracterização da atmosfera distópica. Uma distopia está intimamente conectada à sociedade atual. Distopias são frequentemente criadas como alertas de perigo, satíricos ou não, que demostram as atuais convenções sociais e limites extrapolados ao máximo que podem acarretar num futuro catastrófico e, exatamente por isso, carecem de maior tensão e cerimonial específico no ato de representá-las ou performatizá-las. O tema escolhido é bom e urgente, mas a manifestação cênica ficou aquém de sua urgência, necessidade e periculosidade.

 

·         Núcleo 04 – “Itaminda” e “Rei Lear” – Orientação: Luciano Gentile

 

“Aonde vai o homem perplexo”. É com esta interrogação que se inicia o experimento do núcleo 04. E é nesta interrogação que ele se encerra, pois não conseguiram passar adiante da própria perplexidade. Frente à complexa tarefa do experimento? Frente à falta do que dizer dentro da própria proposta? Frente à falta de recursos para o ‘como dizer’? Ficam algumas perguntas. Por que o coletivo optou pelo que pareceu um truque dos mais estranhos: parar a apresentação da cena com os próprios atuadores iniciando o debate com o público com justificativas a respeito da própria incapacidade de realização? Porque optar por se adiantarem em dizer de seus procedimentos e dificuldades quando nada ainda lhes fora perguntado, em vez de se esforçarem por tentar levar a cabo a difícil tarefa de transformarem suas formulações – e mesmo suas inquietações e dificuldades – em ato teatral? E fica a sensação de termos assistido a um ato de auto-indulgência coletiva, não a um ato teatral, quiçá parresiástico.

 

·         Núcleo 05 – “A morte de Danton” e “O tartufo” – Orientação: Suzana Aragão

 

A opção por uma cena em tom farsesco propiciou um contato do público com o conteúdo parrético obtido pela dramaturgia e organizado pela direção bastante efetivo. Os elementos oferecidos pela equipe das áreas plásticas também foram fundamentais para a narrativa da cena. Porém, detecta-se uma falta de acabamento em todos os aspectos da cena. Mesmo nos contornos do tom farsesco. Falta de tempo para se chegar a um resultado mais bem elaborado, ou falta de clareza sobre os rumos que levariam a esse resultado mais bem acabado? O que leva a pensar: o farsesco acabou por ser opção ou acaso?

 

·         Núcleo 06 – “O auto da compadecida” e “O pagador de promessa” – Orientação: Elisa Band

 

Aqui não houve a realização em cena do tema proposto pelo núcleo, apesar de ser um trabalho com algum direcionamento. Por exemplo, durante o debate com o público, a exposição feita por uma integrante do núcleo sobre a intenção de trabalharem a parresia no universo virtual ficou clara enquanto explicação, mas não enquanto cena teatral. Na primeira parte do experimento alguns instantes bem humorados, porém somente isto. Depois a tentativa pouco elaborada de um instante em que se retrata o uso displicente da internet, mais precisamente do veículo Youtube (o momento em que encenam uma depilação das partes íntimas de um dos atuadores). Por fim acontece o instante em que uma potência parrésica se manifesta: a cena em que os atuadores confrontam o público e dão sentido para os pirulitos distribuídos antes da abertura do experimento. Entretanto, ficam longe de levar à máxima potência tal confronto e a meio caminho de qualquer tipo de periculosidade.

 

·         Núcleo 07 – “O pato selvagem” e “Ubu” – Orientação: Fernando Neves

 

Exemplo, dentre todos os experimentos, em que a parresia acontece por meio da cena puramente teatral. Trabalho de dramaturgia bem elaborado e orientado. Direção clara e com olhar atento para os atuadores, para as solicitações do material dramatúrgico e para a encenação. Trabalho de contornos amplos e repleto de possibilidades. Atitude clara, bem definida e de contribuição realmente efetiva das equipes das áreas plásticas, com destaque para o trabalho da equipe de sonoplastia.

 

·         Núcleo 08 – “Édipo” e “Íon” – Orientação: Cadu Witter

 

A encenação levada à praça pública por este núcleo ainda apresenta fragilidade, mas possui potência e inúmeras possibilidades. Primeiro, porque o núcleo se dispôs a trabalhar um determinado gênero de expressão teatral que possui suas leis e regras já muito bem estabelecidas. E o caminho e esforço no sentido de conseguirem entender essas leis e regras, em suma, sua linguagem particular e peculiar, já estavam – em cena – apontados. O que é muito importante. Segundo, que a parresia já se encontra à disposição no próprio local de encenação. É tarefa do coletivo entender que não será necessário redundar no ato parresiástico. Apenas deixar que ele aconteça e propiciar outros e melhores momentos para tal, tendo em vista o próprio tema do qual trata a cena em que estão trabalhando: o encontro público com o espaço público. É importante também destacar o delicado trabalho da equipe de sonoplastia na complexa tarefa de acompanhar de maneira incidental uma cena que pode ser repleta de “acidentes” e imprevistos, e destacar também a música original, tema de abertura e encerramento da encenação.

 

03_Conclusões

 

Durante algum tempo, estivemos vivendo sob a primazia da palavra “desconstrução”, que ecoava da boca de qualquer sujeito que se manifestava através do teatro, seja por entendedores ou por ignorantes no assunto. Hoje, a palavra já saiu um pouco de moda ou, pelo menos, já não ecoa mais com tanta força. Acontece que o teatro “pós-desconstrução” – e nossa pretensa e pleonástica tentativa de contemporaneizar o que, por si só, já é teatro contemporâneo – demoliu, principalmente, nossa noção do vem a ser fruição estética através da Forma.

 

Cena do núcleo 7 (Foto: André Stéfano)

 

Nesse sentido, é muito sintomático que a maioria dos experimentos assistidos padeçam de uma carência extremamente preocupante de sintaxe cênica; que alguns núcleos demonstrem uma grande dificuldade de “fazer a ponte” entre suas ideias e a realização cênica das mesmas; e que os aprendizes apresentem uma completa e total falta de preocupação com as propriedades eufônicas e imagéticas da palavra.

 

Demonstra-se de forma clara e retumbante a falta de condições dos aprendizes de lidarem com a palavra falada em cena. Um dos aprendizes, inclusive, durante um dos debates pós-experimento, admitiu padecer da falta de trabalho com a voz no palco. Não seria necessário atentar para isto e pensar uma atividade elaborada especificamente para este fim?

 

Diante de todas estas considerações, para “concluir”, toma-se agora a liberdade de trazer à luz de todos algumas questões levantadas ao longo do dia de experimentos por aprendizes, formadores e coordenadores, que talvez não tenham chegado ao conhecimento de todos e que talvez possam nos gerar importantes discussões:

 

(01) não é perda de tempo esperar de uma juventude que se debate atolada num lodaçal de muitas convicções, mas pouquíssimas experiências e vivência, um ato genuinamente parresiástico?

 

(02) como formular um processo de orientação de modo a se fazer entender que o teatro – um veículo que se utiliza da mentira que produz sensação de verdade – é um dos terrenos mais propícios para o fenômeno da parresia?

 

(03) ainda há tempo de retomarmos determinadas questões, como a importância sintática e semântica da palavra feita para habitar a cena teatral? Como a potência semiótica que pode habitar o corpo de um ator/atriz ou performer? Ou é tarde e já perdemos esta geração?

 

(04) seria necessário atribuir aos formadores a responsabilidade de orientar os aprendizes sobre a responsabilidade com sua fala e atitude perante o público, e sobre sua responsabilidade no confronto e impacto que pretende causar neste mesmo público, ou é tarefa deles adquirir consciência e se deixar aprender pela experienciação solitária, no sentido de que isto diz respeito à trajetória individual de cada um?

 

(05) o que fazer quando nos deparamos com a falta do que dizer de nossos orientados, mas, ao mesmo tempo, com a vontade deles de querer dizer alguma coisa, ainda que qualquer coisa e de qualquer forma, custe o que custar?

 

Agradeço imensamente à SP Escola de Teatro e a seus condutores pelo convite e pela oportunidade de realizar este ato parresiástico! Vida longa!

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