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Experimento do módulo Verde por Silvana Garcia

Publicado em: 02/06/2014 |

* por Silvana Garcia, especial para o portal da SP Escola de Teatro

                                               

 

CARTA AOS APRENDIZES DO MÓDULO VERDE (PROVOCADA PELOS EXPERIMENTOS N2, N3, N4 E N8)

 

Prezados aprendizes,

 

Decidi que a melhor maneira de escrever este texto é em forma de carta, pretendendo uma comunicação mais direta que me permita visualizar meus interlocutores – gosto de olhar nos olhos daqueles a quem provoco. Porque é disso que se trata, de uma provocação, certo?

 

Começo dizendo que, do que vi no Experimento, muitas coisas me agradaram, outras me surpreenderam, para o bem e para o mal, e umas poucas me foram indiferentes. Como não tenho espaço para falar de tudo, limito-me a destacar alguns aspectos que pretendo problematizar e, dessa forma, contribuir para a continuidade do diálogo sobre os exercícios. Então, vamos lá.

 

Núcleo 3 (Foto: André Stefano)

 

Confesso que até o presente eu nunca tinha ouvido falar de criancismo, nem do livro da Elisabeth Young-Bruehl, o que não significa que não tivesse consciência do que significa a violência contra a criança, no amplo espectro de suas versões, do preconceito ao abuso sexual, da humilhação ao espancamento letal. Vivendo no mundo de hoje, no Brasil em especial, é impossível ignorar o assunto. Trata-se, pois, de algo relevante, que merece ser trazido à cena.

 

Sei que, do ponto de vista da dinâmica do Experimento, ter essa temática por norte não significa a obrigação de adotá-la; mas irei necessariamente levá-la em conta porque vi que esteve presente em todos os trabalhos, e muito presente em alguns casos, não apenas como pano de fundo.

 

Não bastasse o criancismo, vocês também tinham Philip Ridley como referência. Ora, isso dá uma moldura bem definida para a pesquisa. Ridley é um dos autores da geração dos anos 1990 que trouxeram o tema da violência a patamares cênicos inusitados até então e que definiram uma dominante fortíssima no teatro inglês das últimas décadas. Ele, e toda uma sequência de autores – Sarah Kane e Mark Ravenhill aí incluídos – tiraram dos palcos ingleses, com resolução, o véu da inocência – houvesse ainda algum – e forçaram a plateia britânica a suportar as cenas mais contundentes e desagradáveis que já lhe haviam sido apresentadas desde, digamos, Titus Andronicus, de Shakespeare.

 

O uso de linguagem vulgar e obscena, a explicitação do sexo em cenas de estupro, atos de humilhação e tortura, a crueldade exposta em muitas de suas formas revelam um background de violência que já não pode mais ser contido pela fachada de uma sociedade supostamente ordenada e homogênea – não esquecer que Ridley é do East End londrino, o lado miserável e marginalizado da capital. No caso da violência, o caráter presencial do teatro agrava o impacto sobre a plateia, que está obrigada a vivenciar a experiência da violência em uma dimensão que, em muitos casos, tem mais contundência do que na vida real. Não há como “fechar os olhos” à violência da sociedade quando ela vai para o palco. Ou, dito de outra forma, o palco pode ter essa potência, depende do que temos a dizer e de como o acionamos.

 

Núcleo 4 (Foto: André Stefano)

 

Em seus trabalhos, vocês escolheram situações que remetem diretamente à violência: fratricídio, negligência que conduz à morte, abuso sexual, crueldade infantil (sim, isto é certamente uma redução do trabalho de vocês, mas, entendam, estamos em uma construção teórica, portanto, também retórica). Então, a questão que se coloca é: como podemos levar um tema como esse para o palco sem, digamos, usando uma imagem forte, “rasgar a nossa carne”?

 

Justamente por isso o que me chamou a atenção foi a escolha de elementos mediadores dessa violência: ou por se passar na imaginação das personagens, ou pela ambientação de contos de fadas, ou pelo filtro do riso. De imediato, essas mediações suavizam o impacto daquilo que os episódios poderiam conter de indignação ou denúncia. O que se passa na imaginação, ou no mundo do fantástico não oferece perigo, não significa risco, são mundos protegidos – e assim também se sente o espectador.

 

Tomemos o caso de Relógio-labirinto: ali estão alguns bons espinhos na garganta, com cenas que insinuam ou explicitam masturbação, incesto, violência sexual, estupro… E, então, por que não me abalam? Há que se perguntar em que medida a ambientação de faz-de-conta efetivamente oferece contraste para essas situações. Porque me parece que essa é a ideia: sobre esse fundo cor-de-rosa, coisas terríveis acontecem. Vemos uma família grotesca, de conduta viciosa, que se perpetua no infantilismo das relações pela troca constante da filha adolescente por outra mais inocente. A combinação é boa, tem substância para promover imagens potentes de teatralidade e derivação de crítica social; no entanto, vejo certo pudor no tratamento das cenas, que as tornam mais um apontamento do que realização. Para ser justa, falta apenas um pouco de radicalidade, já que de fato temos ali todos os elementos – o que inclui o bom trabalho dos atores – que poderiam fazer saltar ao olhar do espectador o lado perverso dessa “fábula”.

 

Em Os três irmãos, a opção de criar dois níveis diferenciados de ação – em um registro, a “fantasia” da imaginação e, em outro, mais verossímil, as cenas do bullying que os irmãos promovem contra o mais jovem – facilita o contraste que destaca a faceta cruel da relação entre os irmãos. O jogo menos impostado dos atores preserva maior credibilidade para as cenas do assédio que levam ao assassinato. Também atua no mesmo sentido o desnudamento da personagem: é isso que cria o impacto, que revela a violência do ato, mais do que propriamente o “mergulhoda morte” na “piscina” em torno da qual toda a peça se desenvolve. (Aliás, tomo essa cenografia como um bom exemplo de solução cênica, constituída como parte integrante da narrativa). No entanto, o convincente jogo estabelecido entre os irmãos, somado aos elementos mencionados acima, acaba por criar um impasse: no limite, ele põe em cheque a escolha do outro lado, o da “fantasia da imaginação”. A projeção do mundo adulto em um lugar onde predominam os clichês dos tipos cômicos desacredita a possível análise dos motivos que subjazem ao comportamento infame das crianças. Não por ser um lugar do cômico, mas por esse cômico não sustentar a dimensão crítica. Não se sustenta pela graça, nem por seu poder de caricatura (entendam a caricatura aqui como a distorção que revela “o que está por trás”). O que torna uma figura crível? O que dá substância e consequência a uma construção de figura/personagem? Neste caso, como tirar proveito da paródia, naquilo que a caracteriza como campo de averiguação crítica da sociedade?

 

Algumas dessas questões dizem respeito também a O estranho julgamento do caso do Antônio. Como no exercício anterior, este também contém uma cena de tribunal que pretende comentar os motivos expostos como tema (como não conheço os antecedentes, especulo sobre essa coincidência) e, como em Relógio-labirinto, toda a peça está imersa no mesmo ambiente fantasista, neste caso unificada pela chave do humor. O mote é um caso de negligência com desfecho fatal e o que está em questão aqui é: como conciliar a situação dolorosa da morte de uma criança com o tratamento festivo do cômico? O que ocorre, obviamente, é que, mesmo sendo objeto da cena do julgamento, que toma boa parte do exercício, o que está em primeiro plano não são os aspectos funestos da atitude do irmão mais velho, mas os procedimentos cômicos que, aqui, aparecem construídos a partir de diversos recursos. Rimos porque há o uso cômico da língua, há a imitação de personagens que reconhecemos de outros meios como a televisão e o cinema – aqui também vale a investigação sobre as diferenças entre imitação e paródia –, rimos porque as figuras, de substrato farsesco, fazem ou dizem coisas hilárias. Então, aquilo que, por sua relevância dramática, deveria ser principal, passa a ser secundário. Ou simplesmente desaparece. Até a morte é encenada como um jogo de mímica e o bebezão (aliás, um belo truque o que desvenda e constitui o boneco!) anula em nosso pensamento qualquer imagem tenebrosa de um neném sorridente e rosado voando janela abaixo. Assistimos à cena sem qualquer comoção. Ficam algumas perguntas: será que esse tema cabe na comédia? Será que a comédia comporta esse tema? No entanto, há na tradição da dramaturgia ocidental, casos em que o trágico e cômico dialogam. Talvez fosse o caso de visitar novamente esses exemplos.

 

Núcleo 8 (Foto: André Stefano)

 

Em Rute e Elisabete somos levados para outro lugar. A violência agora aparece totalmente diluída em um ambiente onírico que beira à surrealidade. A penetração promovida entre os elementos – entre o que seria atualidade dramática, cenários da imaginação, ou do inconsciente, e plano alegórico (fiscalização do medo na figura dos sapos) – conduzem a um contexto de abstração que impede o espectador de entrar: como dar sentido ao conjunto das partes, ou mesmo dar sentidos às partes, ainda que não constituam um sentido unívoco? Em alguns momentos, a falta de intencionalidade na liga dos elementos dificulta para o espectador a compreensão do que ele está vendo. Não estou pregando obediência estrita ao paradigma dramático, não é disso que se trata, mas sim do fato de que, como espectadora, preciso que o espetáculo faça suas escolhas para que eu possa fazer as minhas – do contrário, saio com a sensação de que não houve clareza, da parte dos artistas, acerca do que eles queriam me contar. Entendo, contudo, que o trabalho ainda está em processo e mereceria uma continuidade, pois estão reunidos ali elementos de boa plasticidade cênica e há um grande potencial expressivo no trabalho corporal dos atores, em especial na figura dos sapos, poderia apontar um outro caminho para a cena.

 

Bem, estes são, em síntese, os “nós” que deixo para serem desatados na continuidade do debate. Espero que meus comentários, desenvolvidos a partir dos referenciais que alimentaram os exercícios, possam derivar para outros aspectos que, associados a eles, constituíram a espinha dorsal de cada trabalho.

 

Gostaria de frisar ainda que há, em cada um dos exercícios, muitos bons achados, na dramaturgia e na condução da cena, no trabalho dos atores e nas experimentações do espaço cenográfico, da luz e do som, enfim, em todos os aspectos da criação do Experimento, que fizeram valer a pena estar lá e assistir. Entendi que meu papel era esse que cumpri aqui e só por isso passo por cima dos bons acertos. E deixo ainda assinalado que teria sido um prazer se tivesse tido a chance de conversar mais com vocês. Mas, assim são as regras do jogo, e elas também têm seu sentido.

 

Fica, então, um abraço e meus parabéns a todos.

 

* Silvana Garcia é teórica, ensaísta e professora

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