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Experimento do módulo Verde por Sérgio Roveri

Publicado em: 28/04/2014 |

* por Sérgio Roveri, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

A atual situação da criança no Brasil (e por extensão no resto do mundo) radiografada sob o ponto de vista da família, da moral, do afeto, da violência e da exploração. Difícil imaginar um tema mais oportuno que este, e de implicações ainda mais contundentes, para servir de matéria-prima à investigação teatral. Foi justamente sobre este tema que os aprendizes da SP Escola de Teatro resolveram se debruçar ao longo deste primeiro semestre de 2014 – um período em que, sinal da estranheza dos tempos em que vivemos, as crianças, vitimadas por ações brutais praticadas pela família, pela comunidade ou mesmo pelo governo, se afastaram ainda mais dos suplementos infantis dos jornais para ocupar o centro das páginas policiais. Crianças abandonadas por pais dependentes químicos, crianças espancadas no ambiente doméstico, cenário que, teoricamente, deveria ser sinônimo de proteção, crianças mortas por balas perdidas, crianças refugiadas de guerra, crianças assassinadas por se encontrarem, heresia do mundo capitalista, em meio a disputas por heranças, crianças atiradas ao impiedoso mercado de trabalho, crianças que, esta sim a maior das afrontas, impedidas de ser simplesmente crianças.


A psicanalista norte-americana Elizabeth Young-Bruehl (1946-2011), mundialmente reconhecida por suas premiadas biografias de Hannah Arendt e Anna Freud, compilou parte das situações acima citadas no alentado estudo acadêmico “Childism: Confronting Prejudice Against Children”, de onde surgiu a expressão criancismo, ainda pouco comum aos ouvidos brasileiros mas já objeto de estudo da Unesco, órgão da ONU empenhado no momento em analisar, entre tantas outras coisas, a situação da criança no mundo – ou, mais especificamente, de que modo o olhar adulto está interferindo no cotidiano infantil. Com um cardápio disciplinar que quase chega a soar premonitório tamanho o seu empenho em não apenas refletir o seu tempo, mas em andar a alguns passos à frente dele, a SP Escola de Teatro elegeu o criancismo como o objeto a ser dissecado de maneira cênica por seus formadores. No último sábado, dia 26, tivemos a oportunidade de acompanhar o resultado de três dos quatro experimentos cênicos apresentados no período da manhã pelos formadores do módulo Verde.


O resultado surpreendeu não apenas pela eficiência de quesitos técnicos ou pelo acabamento das cenas – surpreendeu principalmente pela diversidade da abordagem do tema, pelo ecletismo das propostas e leituras, pela entrega devotada dos alunos e pelas infinitas possibilidades de discussão que os trabalhos ofereceram. Não eram ainda, embora estivessem muito próximos de ser, trabalhos concluídos (como se fosse possível falar em conclusão na atividade teatral ou, mais temerário ainda, como se fosse possível apontar o momento exato em que um espetáculo se revela pronto, quando, em verdade, a absoluta beleza do teatro, bem como sua absoluta potência e seu ainda mais absoluto desafio residem justamente nesta recusa à linha de chegada, nesta recusa em aceitar um ponto final: um bom espetáculo, e público e atores sabem disso, é acima de tudo inquieto, ele pode sempre ir um pouco mais longe na noite seguinte – ou mesmo retroceder). O que se viu, então, nos três experimentos cênicos observados, foi justamente o espírito do teatro se revelar em sua rebeldia, os seus questionamentos, as descobertas de caminhos que poderão, ou não, ser abandonados na esquina seguinte, os tropeços e os momentos em que a estrada se mostra suave e asfaltada. O que se viu, em suma, foi um organismo vivo em busca da melhor afinação para sua própria voz – mas a voz já existe, está ali e é potente, muito potente. Pronta para ser ouvida por todos. 


Núcleo 2 (Foto: André Stefano)

 

O primeiro experimento assistido (N8), a cargo dos aprendizes de humor, chegou a esbarrar – mas depois manteve uma prudente distância – na herança e na influência do humor televisivo. Com inteligência e sensibilidade, os aprendizes criaram um universo lúdico para dar conta de um tema espinhoso: a morte de um bebê. Diálogos ágeis e inteligentes e personagens que podiam ter escapado do cinema de Tarantino ou dos quadrinhos contribuíram para que a cena resultasse numa bem-sucedida mistura entre realidade e ficção – o surgimento de dois policiais abobalhados e clownescos foi um dos grandes achados do experimento. Há, ainda, uma inegável crítica social, que em nada soa panfletária, ao se colocar um magistrado dentro de uma lata de lixo, com sua peruca branca, outrora símbolo inquestionável de autoridade, agora envolta em dejetos. 


De andamento rápido e bem desenhada, a cena supera em muito a aridez presente nos programas de humor da tevê brasileira, justamente por substituir o simples escracho pela inteligência. O único momento que, a meu ver, interfere de maneira brusca na melodia que a encenação propõe é justamente a cena final – a entrada da realidade dando conta de que algo terrível pode ter acontecido talvez pudesse ser elaborada de alguma forma em que a fantasia ainda encontrasse uma pequena brecha para se despedir do público de maneira mais delicada, ainda pudesse encontrar um respiro em meio à tragédia que, presume-se, esteja à espera dos personagens. Talvez este final brusco seja realmente intencional, já que a realidade não costuma pedir licença e nem ter papas na língua. Mas, a dureza da interrupção, com toda desculpa pelo lugar-comum, foi como tirar o doce de uma criança. No caso, de duas crianças que, de tão encantadoras, poderiam saborear seu doce diante do público por um tempo. A cena representou, no entanto, uma vitória inquestionável dos aprendizes. Não é, e nunca foi, tarefa fácil encontrar, ainda que em pequenas doses, riso e lirismo diante da brutalidade da morte.


O segundo experimento (N4), concebido por aprendizes de atuação, promoveu uma mudança drástica de clima ao ambientar, em um cenário de casa de bonecas, um casal inegavelmente disfuncional prestes a cometer o que nos parece ser um dos mais brutais gestos paternos: o descarte de uma criança. Esta situação já foi vista, com igual impacto, em filmes como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, mas, a cada vez em que volta a ser abordada, ainda se revela de extrema potência e desconforto. A cena consegue um grande acerto ao dar relevância à inocência e ingenuidade da garota prestes a ser trocada por outra – parece haver algo terrível a operar dentro da cabeça da criança neste momento: ela pressente a existência de alguma coisa errada, ainda que não saiba precisar o quê, e, não bastasse isso, sente-se culpada por algo que não cometeu. Assume para si, na indefesa de sua pouca idade, as culpas e os desvios que caberiam melhor na consciência dos pais. 


Os realizadores optaram, de forma evidente, por materializar este descarte, que na vida real costuma também ser promovido de maneiras menos evidentes mas igualmente nocivas: a criança descartada por pais ocupados, descartada por irmãos mais velhos e violentos, descartada pelo bullying, descartada por não se encaixar numa agenda familiar que não oferece espaço para abrigá-la. A cena por si já é cruel o bastante pela situação que apresenta e, acredito, poderia dispensar um pouco o maneirismo das interpretações. Penso que esta situação, se radiografada por meio de uma leitura mais crua e menos estereotipada, talvez atingisse uma potência ainda mais dolorida e incômoda. O grande trunfo da cena, na minha opinião, seria o de fazer com que o público, ainda que por alguns momentos, compartilhasse da ingenuidade e do assombro do personagem da menina diante da presença indelével do mal. Da maneira como foi concebida e interpretada pelos atores, no entanto, basta apenas um diálogo para que o espectador localize de imediato onde mora a maldade – é como se a cena começasse com tudo já explícito e resolvido. Os aprendizes têm em mãos um material de rara atualidade e contundência, que poderia ser trabalhado de maneira mais engenhosa se, no meio de uma paisagem de bonecas, houvesse um lugarzinho reservado para um pouco de delicadeza.


Núcleo 8 (Foto: André Stefano)

 

Apresentado pelos aprendizes de atuação, o terceiro experimento (N2) visto no sábado encarcera os personagens entre a igreja e a ciência, o que já é um excelente ponto de partida. A ideia ganha força logo na cena inicial, quando um coro atravessa a plateia para se posicionar em um sisudo altar que ocupa praticamente todo o palco. O público vê-se transportado para uma cerimônia ritualística que, infelizmente, não se realiza em sua plenitude. Os diálogos iniciais dão pista de um promissor debate sobre fanatismo e intolerância religiosa, que irá perder força nos momentos seguintes, quando a chegada da ciência, representada pela figura de um psiquiatra, irá colocar um pouco de lado as questões do sagrado.


Prejudicados pela iluminação, pela cenografia, pelo pouco inventivo uso de flashbacks e principalmente pelos figurinos, os atores parecem não ter encontrado força necessária para dar conta de personagens atormentados por tantas dúvidas e inquietações. É inquestionável a riqueza psicológica proposta pelo texto: encontrar um lugar confortável para o homem moderno, entre o altar e o divã, tendo como ponto de partida os conflitos de um garoto que perdeu os dois irmãos em circunstâncias trágicas. Por si só, a tarefa, que já não é tranquila, apresenta degraus de difícil transposição graças ao embate promovido entre seus elementos internos. Existe uma joia rara, sem dúvida, na base deste experimento, mas para que seu brilho atinja o público com a potência desejada, faz-se necessário eliminar as pedras que estão obstruindo a viagem. A maior delas, na minha opinião, é a dificuldade de o experimento se decidir  por um gênero e investir nele sem medo ou freios puxados. Tudo está presente na cena: personagens convictos de sua fé, um drama familiar de amplitude considerável, uma criança atormentada por uma legião de fantasmas e, em meio a tudo isso, os pilares representados pela fé e pela ciência. Bem combinados, estes elementos seguramente resultarão em um experimento visual e emocionalmente impactantes.


O resultado final dos três experimentos é de raro otimismo. Como artistas e como cidadãos, os aprendizes da SP Escola de Teatro não se furtaram ao chamado para tomar partido diante de uma situação tão preocupante, pois, ao levar os problemas das crianças para o centro do palco, eles estão, antes de mais nada, colocando o futuro da sociedade em discussão. Talvez não se encontrem, a curto prazo, soluções para tantos e tão graves problemas, mas os três experimentos provaram que, ao menos, é possível não virar as costas para eles.



* Sérgio Roveri é jornalista e dramaturgo, ganhador do Prêmio Shell de melhor autor pela peça “Abre as asas sobre nós” e do Prêmio Funarte de Dramaturgia pela peça “Andaime”

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