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Experimento do módulo Azul por Marcelo Romagnoli

Publicado em: 26/05/2014 |

* por Marcelo Romagnoli, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

CONFESSO O QUE VI

 

Disseram: Venha por aqui, suba esta escada, entre nesta sala e assista.

 

Serão quatro cenas ou “experimentos”, como a Escola gosta de dizer, alguma coisa como ciência do palco, laboratório criativo, onde se mistura ácido nítrico com hidropool para surpreender-se com o resultado grotowskiano de “descobrir o desconhecido”.

 

E o impulso criativo de cada núcleo é o “Criancismo”, disseram. Um tema árido, controverso, pouco teatral e muito racional. A criança é formatada pelos adultos? Existe um pré-conceito em relação à sua capacidade sensível? Engessamento? Crueldade? Aniquilamento da infância?

 

O que apareceu, claro, em todos os núcleos, foi uma química psicológica, um jogo duplo de intelecto e instinto, pensamento e emoção. Em cena, ouvi aspectos de comportamentos e traumas, uma autodiscussão sobre as próprias experiências vividas pelos criadores. E não é sempre assim com este nosso consultório, que teimamos em chamar de teatro?

 

Cena do núcleo 1 (Foto: André Stefano)

 

O impulso do “criancismo” habitou o corpo de todas as cenas, em sua generalidade, em sua expressividade exagerada, poucas vezes contida. “Menos é mais” não se viu neste sábado frio. Os núcleos tinham muito a dizer e atacaram por todos os lados. Ávidos por estarem em cena, por inventarem, pela discussão, pelo palco, enfim, famintos pelo teatro, saltavam de uma ideia a outra, de uma vontade a outra, doidos pela encenação, pela “experiência” de estarem juntos, descobrindo-se deuses em plena criação. Era o retrato da performatividade, sua força, sua explosão. Eu também quero isso.

 

Vi primeiro um auditório terapêutico de sonhos discutindo a condição da criança numa sociedade dominada pelo método, apresentado em forma de anedotário show.

 

Depois uma santa festa de aniversário cor-de-rosa. Acredite, rito de terror misturado à miséria religiosa.

 

Em seguida um passeio – ou desfile – rodrigueano pela família. Em cena gritava a presença do ator.

 

Por fim, um surrealismo corajoso, com vontade de destrinchar em discurso profundo uma imagem voadora.

 

Latente, o corpo físico do humor. Atores-criadores. Sonoplastias vigorosas. Desenhos de luz precisos. Interessantes ocupações cênicas das salas. Textos contundentes, às vezes buscando um norte, mas já demonstrando intenções objetivas. Direções firmes, com algo a dizer, tateando em pleno sol. (Digam, é possível dirigir em duplas ou trios? Por favor, quero aprender isso sem assassinar o coleguinha.)

 

Enfim, algo a dizer. Em conjunto. Uma delícia de Piquenique em plena Praça Roosevelt.

 

Podia-se ouvir ecos do processo: discussões, demandas, argumentos e dúvidas. Quem precede quem? A ideia ou a forma? Por onde vamos? Qual nosso discurso?

 

Só um cafezinho. E mais uma escada. E outra “experiência”.

 

Que boa essa escola. Isso sim é fusão nuclear.

 

1

Cartilha para sonhos

Uma criança respira liberdade. Seu principal jogo parece ser descobrir o mundo. Infelizmente ela encontra pela frente um adulto educado que, por alguns anos, tece-lhe uma formidável camisa de força. Um corpo maleável torna-se, então, uma massa dura, disforme, amarrada. Apesar disso, nosso cinismo – ou fuga – ainda permite um sorriso, uma falsidade estampada no ar sob a forma de felicidade.

 

É assim que vivemos. É assim que funcionamos. “Viva isso, Júnior, e será aceito em nosso show. Siga as instruções do telão.”

 

Sim, nossa sociedade é um animado programa de auditório, “Ao mestre, com carinho”, apresentado por um psicanalista austríaco.

 

Música. Sopros.

 

Deus, que assiste a tudo de cima, pode ajudar lançando algumas folhas em branco. Porque agora é hora do nosso quadro principal: A Fabulosa Interpretação dos Sonhos. Desenhe seu medo e sorria. Seu inconsciente será desvendado. Sua mente, sua verdade.

 

Veja, é simples educar, disseram os nazistas. Ensine a sonhar.

 

E prepare o shake para a geração seguinte. Ela precisa nascer forte. E já no seu primeiro aniversário nós temos que ter a segurança de que não vamos perder as rédeas.

 

Cena do núcleo 7 (Foto: André Stefano)

 

2

O terror antropofágico

Aniversário muda tudo. Crianças aprenderam a ser fascinadas por presentes, atenção e festas comemorativas. Por isso é muito pertinente dar os parabéns a quem conseguiu chegar até aqui. “Parabéns Júnior, você sobreviveu a mais um ano. Mas prepare-se.” É o que dizem as tias pitonisas.

 

Prepare-se com armaduras para lanças inimigas. Prepare-se com capas para ataques repentinos. Viver é esperar pelo pior. 

 

Enquanto isso, coma.

 

Para corpos amargos, doce. Para almas perdidas, fé.

 

Coma a fé, nesta data querida. Ela é muito útil.

 

A fé é o melhor mecanismo de controle inventado nos últimos 5 mil anos. Acreditar e nutrir a vaga esperança de que a miséria será recompensada, de que a água será transformada em vinho faz o desfile do destino correr sem erro, sem sobressalto.

 

Nossa magreza terrestre, dizem os ilusionistas do circo, é passageira. O céu pertence aos fofos de espírito.

 

Santa ceia, engordai. 

 

Mas quem come quem?

 

A infância mastiga o imediato. “Querido, vamos comprar esta alegria, contratando o Buffet da Xuxa.”

 

E a baleia não perdoa. Alcança. Devora. Sobre a mesa agora eis Jonas, engolido pelo Mercado. Seu brilho vem do cu.

 

E se sou o devorado, mesmo protegido, quem me salvará?

 

Nenhum anjo, nem Rilke, nem Dante.

 

Quem nos salva sempre é a família, a quem devemos graças e amor. É ela o ninho de todos os ritos.

 

Então, senhores, levantem seus copos a ela, ao seu poder escondido.

 

Um brinde à família.

 

Saúde. Amém.

 

3

Vestir os nus

A família. Esta instituição que resiste, organiza comemorações, casa, ampara, protege e sustenta nossa civilização.

 

Família é ilha. Parente é serpente.

 

Geralmente um núcleo familiar só se mantém se seus membros estão dispostos a se sacrificar por ele. E este sacrifício quase sempre abre feridas, é solitário e vai se cristalizando ao longo dos anos. Eles, os adultos, nos dizem que é preciso aceitar a regra, mesmo que pra isso seja necessário amputar qualquer desejo.

 

“A ordem do galinheiro deve sobreviver a duras penas”, diz o galo.

 

A primeira pena é logo o nascimento e os primeiros anos. “Sua nudez, Júnior, será castigada. Este sangue do parto precisa ser limpo. E depois coberto. Logo, vista esta roupa. Ela é o símbolo de que você pertence a nossa esfera social, política e moral. La fora, a selva. Para enfrentá-la, estou aqui, sempre ao seu lado, esperando que você cresça e me perpetue.” Meu pai, meu herói.

 

Padecida no paraíso de uma vida-cão, eis mamãe mon-amour. “Sim, filhas, eu sou o que vocês querem. Querer é poder. Quanto custa seu sorriso, neném? Um gorro ou a própria cabeça?”

 

Crianças sabem tudo sobre revoluções. Às vezes o golpe demora. Às vezes ele nunca acontece. Mas a guerra está sempre explodindo no subterrâneo.

 

Só fiz as pazes com meu pai quando, senil, dei banho em suas dobras. A sujeira, senhoras e senhores, não estava fora.

 

Édipo foi condenado a ver dentro e pode nos explicar melhor.

 

Mato o pai. E a cabana agora é minha.

 

4

A cabana ou O peso do vento

Uma hidra de mil cabeças, que surge de um pântano escuro. Cada cabeça, uma sentença.

 

Uma criança viva, de verdade, (ou era uma atriz?) aparece faladora. Está salva? Sobre ela despejamos nossa liberdade. Tudo pode: correr, brincar, mas agora chega, olha quanta gente veio assistir, começou o teatro.

 

Por que esse vento pesa tanto? Quem fala por mim? Imagens poderosas.

 

Cena do núcleo 3 (Foto: André Stefano)

 

São monstruosas estas mulheres que perseguem. Cuidadoras. Elas só querem proteger. Aprenderam assim. É o costume. Eu cuido de você e depois mereço seu amor incondicional na velhice.

 

Um voo. Para o alto. Pronto, depois disso não precisaria de mais nada. Mas a hidra negra vira uma cabana colorida, um feto, um bunker, um refúgio. Ah poesia, eis nossa esperança solitária. Livrai-nos do mal e o mal é o mundo, o inferno são os outros.

 

Sozinho é onde nos encontramos.

 

Fim.

 

E aquela menina de verdade não esperou pela análise – afinal, pra quê? – e tomou a melhor atitude possível, indo brincar de chuva com o papel picado. Ela quis nos dizer: A vida é mais divertida. O resto é vaidade.

 

Só vaidade.

 

5

Obrigado meninos. O tio saiu achando que tudo ainda tem jeito.

 

Dei tchau pras duas recepcionistas lá embaixo e elas perguntaram: E aí? Foi gostoso? Sim, garotas. Foi uma bomba. De Hiroshima.

 

Elas não entenderam se era bom ou ruim, eu acho. Mas deram um sorrisinho.

 

E fui, feliz.

 

 

* Marcelo Romagnoli é diretor e dramaturgo

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