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Experimento do módulo Amarelo por Mara Leal

Publicado em: 07/10/2013 |

* por Mara Leal, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

São Paulo, 5 de outubro de 2013. Sinto frio enquanto caminho em direção à Praça Roosevelt para assistir aos experimentos do módulo Amarelo da SP Escola de Teatro, cujo eixo temático é a Narratividade. Um lugar que traz tantas memórias e, ao mesmo tempo, tão novo para mim. Enquanto espero no saguão, observo a efervescência dos alunos da escola e penso: qual é o meu papel aqui? como posso contribuir? A ideia de ter um olhar mais “distanciado” sobre as cenas é muito interessante, mas será que é realmente possível? Essa minha escrita já não está contaminada por muitas das re-ações aos experimentos apresentados? Achei melhor não consultar o material que serviu de base para as criações, mas minha imaginação sobre ele já criou outras tantas narrativas.

 

Entro quase correndo em uma sala toda preta. Depois de subir quatro andares de escada, respiro fundo, pego minhas folhas de papel, caneta e observo… A primeira imagem que me chama a atenção é a caixa preta toda riscada de branco, riscos que convergem para o centro-fundo da sala, para um retângulo negro central. Penso: parecem raios… Durante a conversa penso nas tirinhas do Laerte saindo como ondas da grande tele-visão em que se transformou a cena. Ou as tirinhas estariam tentando entrar nela e transformá-la? Um ator/personagem-criança/Laerte se depara com um coro que, de forma paródica, apresenta números televisivos. Apesar de não fazer parte do meu repertório infanto-juvenil de anos de TV, identifico os personagens parodiados e a crítica à indústria cultural massificadora. Ao final, o ator/personagem vem em direção à plateia percorrendo o corredor central entre uma chuva de colônia, bolinhas de sabão e confete criada com a ajuda de dois ventiladores. Penso: no que ele se transformou?

 

Durante a conversa, os participantes do experimento falam do percurso realizado para chegar ali, das referências, e muitos fazem comentários. Muitas falas ecoaram em mim, principalmente a questão sobre como atritar mais com a força conservadora da TV. Como romper com essa estrutura “dramática”? Como transgredir/deglutir essa grande tela que invade nossa vida cotidiana? Como fazer com que essas tirinhas que já invadiram o palco, também rompam a tela? 

 

Intervalo – troca de espaço. Será que nesse ínterim os raios transformaram tudo em branco? Vejo três mulheres com ternos escuros e salto alto, uma mulher loira em um vestido preto sensual. Penso: as narradoras do passado versus a narradora do presente. O percurso de Laerte? Por que é tão difícil simplesmente contar uma história para o público? Por que precisamos criar tantos anteparos? Há muitas formas de narrar. No caso do trabalho do ator, me chamou a atenção o fato de a maioria ter optado pelo narrador/personagem. Por quê? Há que se pensar sobre isso. Por que a função narrativa fica mais no texto do que nos outros elementos da cena? Acredito que aí, nesse baú invisível, é que está a possibilidade de muitas descobertas. Aqueles vazios das cadeiras podem dizer muito mais.

 

Troca de cena. A ambientação permanece branca com a luminária/cadeira sob o tecido. Essa luminária permanece em mistério até o final. Entram outros narradores/personagens. Chamou-me a atenção o fato de se ter um texto já tão apropriado em apenas cinco dias. Depois descubro que eles já estão trabalhando com o texto desde o primeiro experimento. Para amadurecer é preciso tempo. A narrativa é “quase” ilustrada pelos personagens (bichos, pessoas e objetos), mas o contraste com a construção cômica colabora para manter o distanciamento. Volta o tema do “crossdressing” que permeou as outras cenas de forma jocosa. Fico com a impressão de que esse tema foi o que deixou mais marcas nos trabalhos. Durante a conversa fala-se da busca da ideia da casa vazia para o cenário: do vazio interno transbordando para o externo. 

 

Volto à questão inicial: qual o meu papel aqui? Lembro-me do dramaturgo e encenador George Tabori: o que mais me inquietava em seu trabalho é que ele conseguia contar uma história que, ao mesmo tempo em que me fazia aproximar das personagens, criava fissuras, choques, me tava tapas, me tirava do conforto da cadeira e fazia ecoar a frase de Heiner Müller, de que a tarefa de arte é tornar a realidade impossível. Como fazer isso? Ah… No seu caso com muito humor, paródias, depoimentos pessoais, quebras de expectativas, aproximando, distanciando, aproximando, distanciando e, principalmente, não esquecendo em nenhum momento do espectador como seu parceiro do jogo, apresentando-lhe as regras e o convidando a jogar. Vocês já conseguem fazer isso em alguns momentos, acho que para verticalizar deveria se investir mais nas fissuras, nas quebras e na parceria com o espectador.

 

Núcleo 4 (Foto: André Stéfano)

 

Não resisto e vou ler “Laerte em trânsito”, publicado na revista Piauí. Laerte propõe um trânsito para além das questões de gênero e, ao fazer isso, se opõe a estruturas sólidas de poder. Para Foucault, essas forças opostas em luta estariam diluídas nas estruturas de poder, que criam formas de exclusão, de disciplina e de saberes, cujo objetivo seria domesticar e disciplinar os corpos.

 

Seguindo seu ponto de vista, os sujeitos estão envolvidos nessa teia e se engajam em diferentes lutas. Na medida em que tudo pode ser absorvido para obter controle, até as táticas mais subversivas podem ser incorporadas pelas estruturas de poder. Parece não haver saída. Se não há como se libertar dessas estruturas, se todo discurso busca o poder e o controle, como criar contra-discursos à lógica dominante? Laerte faz isso ao implodir o senso comum, a buscar a transposição dos limites, como diz, e sabe que é um caminho desconhecido e pleno de incertezas.

 

Agradeço o convite, fiquei muito feliz em participar desse compartilhamento de processo e espero que minha narrativa, em alguma medida, ecoe e transborde como os experimentos fizeram comigo.

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