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Crítica de “Dans la Mesure de l’Impossible”, de Tiago Rodrigues, no Festival de Avignon

Publicado em: 08/08/2023 | por: Guilherme Dearo

Imagem colorida mostra atores no palco, em cena, na peça "Dans la Mesure de L'Impossible"

Cena de “Dans la Mesure de L’Impossible”, apresentada em 2023 no Festival de Avignon. | Foto: Divulgação/Magali Dougados

Viviane Dias, nova artista docente convidada do curso de Direção da SP Escola de Teatro nesse segundo semestre de 2023, foi ao tradicional Festival de Avignon, na França, para assistir ao espetáculo “Dans la Mesure de L’Impossible”, do diretor português Tiago Rodrigues. O festival aconteceu entre 5 e 25 de julho.

O Festival d’Avignon, ou Festival de Avignon, é um festival anual de artes realizado na cidade francesa de Avignon todo verão em julho no pátio do Palais des Papes, bem como em outros locais da cidade. Fundado em 1947 por Jean Vilar, é o festival mais antigo existente na França.

Viviane Dias é doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP, num doutorado sanduíche com a Universidade Paris VIII. Ela é dramaturga, diretora e atriz. “Para o módulo de narratividade da Escola nesse semestre, essa peça é um excelente exemplo de teatro narrativo”, comenta. 

Recentemente, a profissional deu uma palestra aos estudantes da Escola, com o tema “As avalanches sobre si mesma – texto, cena & investigação teatral”. A aula pode ser assistida aqui.

Para o site da SP Escola de Teatro, Viviane traz a crítica do espetáculo. Leia a seguir:

Entre o possível e o impossível

“Não gosto do teatro” é a primeira frase de uma peça que aposta no paradoxo para nos fazer mergulhar na realidade mais impossível da vida por meio… do teatro. Ela é “Dans la Mesure de l’Impossible” (“Na Medida do Impossível”).

Tiago Rodrigues, como diretor e dramaturgo – alguém que afirma escrever como ator –, constrói um texto entrevistando dezenas de mulheres e homens voluntários do comitê internacional da Cruz Vermelha e do Médicos Sem Fronteira, que atuam nas zonas dos conflitos mais atrozes do mundo contemporâneo. Para falar do horror, a cena é sóbria: quatro atores no palco, um musicista, uma bateria equipada e uma lona. Luz, certamente. E o público como interlocutor do verdadeiro diálogo que acontece num teatro que nos leva, com um mínimo de elementos, a deslizarmos quase sem nos darmos conta e nos percebermos imersos em territórios da mais crua realidade, ao mesmo tempo que nos lembra, por sua absoluta simplicidade, que estamos sempre no teatro.  

“Há dois mundos: o possível e o impossível. E estes mundos trocam de lugar permanentemente”. Histórias indigestas, de violência, de guerra, do pior e do melhor do humano, de escolhas difíceis, de fome, de sorte no último momento, de amor e ódio. Os voluntários – personagens gigantescas que se atrevem a estar nos lugares mais perigosos do planeta, nomeados apenas de “impossível”, oferecendo cura, sacrificando vida pessoal, e muitas vezes saúde física, mental e a própria vida – são mostradas nos seus paradoxos. Heróis? Uma profissão? Um vício? Um amor pela humanidade? “Há aqueles que abusam de seu poder”. Escutamos que são os mais traumatizados por seu trabalho, e ao mesmo tempo, aqueles com o mais alto nível de satisfação. Uma estranha gente que quer salvar o mundo, ao mesmo tempo, os que tanto sabem sobre o horror de uma humanidade que não pode ser salva? Aqueles que buscam dar um sentido para sua vida? “Se faz muito sexo por aqui”, nos lembra a garota – já que seria o melhor remédio para combater o stress desta gente misteriosa – que ousa se rebelar contra privilégios absolutos do mundo ocidental: o conforto e a indiferença.  

Mas não só as gentes do possível que entram no impossível. Muitos nasceram lá nestes territórios e a possibilidade do futuro passaria por seu trabalho. Outros, largam família e toda vida pessoal, são mais próximos da humanidade do que de seus irmãos. Outros se excitam pelo perigo e pelo desastre. Não há moral, nem territórios definidos, mas questões. Como dirigir um campo de refugiadas num contexto de leis e costumes próprios? Como se escolher entre a vida e a morte de crianças? Existe volta para alguém que passa por este tipo de experiência? Num teatro que abusa do velho poder narrativo, o extraordinário é a normalidade e parece só caber no domínio da palavra. Os testemunhos nos revelam experiências públicas e íntimas, uma soma de negociações complexas em direção ao outro, ao mundo.  

“Não sei por que conto esta história. Não servirá em nada ao vosso espetáculo. É absolutamente impossível de mostrar ao público o que se passou. … Isso é o invisível… É necessário ter estado lá. Vocês podem, talvez, contar a história ao público, mas vocês não podem mostrar o que realmente se passou”. Mas a encenação jamais cai nesta armadilha. 

Há uma orquestração fina, musical do fim de uma história e começo de outra, uma atenção absoluta aos “nós” que juntam os diferentes depoimentos, observando o princípio teatral da dinâmica das energias, a mudança que faz com que mesmo se o expediente seja sempre o mesmo – ator e história diante do público – estejamos, contudo, invariavelmente diante do espanto.  

O trabalho dos atores merece destaque por sua extrema força e habilidade: cada intérprete enfrenta um percurso emocional labiríntico, um verdadeiro tour de force, com plena presença e domínio das diversas partes de composição de seus longos relatos. Narrativo & profundamente lúdico – um jogo entre os sentidos, palavras, posições diante de seu material. A sobriedade se quebra apenas em momentos muito específicos – um canto de beleza ímpar da atriz portuguesa Beatriz Brás, em que o sublime atravessa o horror. 

Mas o trabalho dos atores se completa apenas com a decisiva participação do público na experiência. “500 mil pessoas na armadilha de uma cidade destruída no curso de uma batalha sanguinária, vocês não teriam o orçamento para fazer”. O mundo real parece duvidar do teatro como interlocutor de sua carga explosiva. “Vocês podem pedir ao público para imaginar, mas… não podemos imaginar. ”É impossível de imaginar. Impossível”. A negação do teatro trabalha, em efeitos de metateatro, nos aproximando, de maneira simples e direta, do … teatro. Paradoxo… estamos dentro do melhor teatro feito da matéria simples, que acontece no espaço entre o evocado no palco e a poiesis do público. “Mesmo que você coloque a história no espetáculo, você não poderia jamais dar a medida de… mas aconteceu”.  

Mas é inútil contar ou ninguém quer escutar? “Quando chego em casa, a família e os amigos me perguntam. Mas no fundo eles não querem saber…A capacidade de concentração das pessoas é limitada. Dura apenas minutos. As pessoas querem as histórias simples, as histórias fáceis. A violência não é simples. O sofrimento não é simples”. E os relatos são terríveis, coisas que estragam as festas do mundo possível. “Eu volto de uma missão, minha irmã me pergunta (Não nos vemos depois de um ano, ela me pergunta:) como foi?”.  Assim que o relato esbarra em alguma complexidade, ela emenda: “viu as mudanças que fizemos no banheiro?”. O mundo que cada um destes testemunhos traz parece não poder ser compartilhado na vida ordinária… 

Os figurinos – absolutamente cotidianos e contemporâneos – reforçam que o ator é qualquer um do público. Me parece um ponto frágil da encenação – a necessidade deste reforço um tanto desnecessário nos figurinos impessoais. Apontaria ainda uma sensação de um deslize no ritmo do começo da peça, uma dramaturgia que parece tomar minutos a mais do que os necessários para nos provar que estamos na vida normal, feita por atores no palco, no jogo sofisticado realidade ficção que vai se desdobrar de maneiras mais ricas durante toda a peça.  

Mas ainda que os territórios do impossível sejam difusos e múltiplos, anônimos, o possível se revela como agente concreto. O sistema ocidental neoliberal: “devemos nos interrogar de onde vem o dinheiro para nosso trabalho. Falar dos governos que bombardeiam outros países para, em seguida, nos fazer ir lá para ajudar estas vítimas dos bombardeios”. O impossível revela a perversidade do possível.  

Apenas no fim os solilóquios se tornam uma espécie de cena coletiva. Uma tempestade. A lona que desaba e um bebê que cospe sangue e morre. Uma mãe que neste momento absurdo pega delicadamente uma partezinha do tecido que envolve a criança e tenta limpar o sangue na blusa do médico. “A morte de uma criança em plena tempestade, eu não esquecerei jamais. Mas o gesto desta mãe que acaba de perder seu filho… este gesto…. que limpa o sangue… este, sim… este eu digo para vocês… este é o impossível”. E depois de quase duas horas, o teatro, por caminhos tortuosos, parece realizar a missão irreal e prepara o terreno para aceitarmos um gesto capaz de fazer caber em si o impossível. O resto seria o silêncio, mas a bateria fala. O solo foi preparado pelo jogo ator-palavra – há uma vida de fúria e o som diz aquilo que, neste ponto, nada mais pode. Estamos juntos, no teatro.  

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