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COLUNA | "A cena desidratada", por Sergio Zlotnic

Publicado em: 22/03/2017 |

Foto: Ju Oktkreuz
 
Na MIT 2017, entre os dias 14 e 21 de março, no SESC Pinheiros, Susanne Kennedy apresentou a sua transposição para o teatro do filme de Fassbinder e Fengler, de 1970: “Por que o Sr R. enlouqueceu?”. O resultado é notável!
Subtraindo dos personagens toda humanidade, sobra constrangimento – na medida em que nos identificamos com as ações que ocupam o palco, sobre as quais a diretora alemã coloca uma lente de aumento. Dilatando os tempos e sustentando as cenas (que quase parecem ocorrer em câmera lenta), ela isola as mais banais estereotipias e automatismos, desembocando num desenho de nossa mediocridade. 
 
Espelho obsceno, que reflete o que deveria permanecer coberto. Obscenidade que nos fazer ver nossa própria nudez – nossos gestos rasos, sem nenhuma espessura.
Para isso, a diretora alemã parece focar e tomar distância dos comportamentos cotidianos. Como se lançasse sobre os humanos um olhar longínquo, vindo do espaço cósmico. Essa visão sem piedade capta nosso repertório: cristalizações que nos engessam, tiques do dia a dia, surpreendentemente vazios de vida.
“Ahan, ahan”, dizem os personagens! Sonoridades corriqueiras, clichês que amortecem qualquer potência. 
 
Talvez, já aí, esteja anunciado o desfecho da estória: a loucura do Sr R., antevisto no título da peça. Pois, quando o que impera é somente o lugar-comum, impulsos homicidas são convocados: o clichê contém e nega a barbárie! Mais não digo: sem spoiler! Mas explico!
 
Função fática é o nome das vocalizações ‘domesticadoras’ – platitudes aparentemente desprovidas de significado – que, na verdade, revelam aquilo de selvagem que dentro de nós existe e ameaça eclodir. Preencher silêncios é sempre um modo de camuflar pulsões primitivas. 
Por isso, quando dois humanos desconhecidos se encontram confinados num espaço hermeticamente fechado, a conversa só pode colar-se no trivial. Com características de imprevisibilidade, cada par da dupla deve reassegurar ao outro suas falsas boas intenções. “Vai chover!”. “Esquentou!”. Lindo dia!”. “Muito trânsito!”… 
 
As frases frouxas são avisos que dizem: “não vou matar você”, “não vou estuprar você”, “não vou canibalizar você”… Se assim é, pela negativa, os desejos bárbaros implícitos afirmam a sua extrema atualidade.
 
O espetáculo alemão é, nesse sentido, um lento concentrado de, numa imagem, conversa de elevador – permanecendo num campo plano, sem terceira dimensão. Sem relevo. 
Os atores usam máscaras de silicone e dublam vozes pré-gravadas. Esse expediente, pela artificialidade, acrescenta distâncias: da poltrona do espectador, as cenas parecem se desenrolar ao longe.
 
Ali, anos luz de nós, assistimos algo que lembra vagamente o comportamento mecânico das criaturas que habitam um planeta solto na vastidão do espaço… O que não impede que nos enxerguemos naquilo que vemos se desenrolar no palco.
 
O efeito é de estranhamento. Alguns espectadores riem. Outros se incomodam com o riso, pois sabem que o que se mostra é o retrato da pobreza de espírito de cada um de nós.
 
Nesse afastamento que a Cia alemã atinge, um processo se completa, espécie de alquimia: assiste-se à desertificação da cena, por assim dizer. Ela nos chega desidratada! Sem nenhuma lubrificação. Donde, quem sabe, o Sr R. enlouqueça de sede!
 
Ao perder contato com o lençol freático que corre nos porões da alma, alimento para humanidade, não há saúde que resista…
E, nessa distância tamanha, alcançada por um olhar tão estrangeiro, veem-se melhor nossas patologias – pessoais e sociais. Ou, dito de outra forma, ao afastar-se tanto – e observar o humano de luneta (ou, ao contrário, observá-lo como se fosse um inseto ao microscópio…), o teatro paradoxalmente enxerga e mostra nossa imensa mediocridade, em toda a sua plenitude.
 
Enfim, algo bastante humano emerge dessa desumanização: não sabemos mais se estamos longe ou perto de nosso objeto de observação – coisa que no campo amoroso, por exemplo, frequentemente nos embaralha a visão, atestando miopia crônica para avaliar e discriminar os movimentos dos afetos: mil vezes nos descobrimos dolorosamente distantes daqueles em relação aos quais nos julgávamos tão próximos. Intimidade é areia movediça.
 
Para concluir! Nessa questão da “justa distância impossível”, pode-se chegar a uma “moral da história”! Em geral, há os nossos “próximos”, a quem procuramos. E há os nossos “distantes”, de quem nos afastamos, cujas opiniões não nos interessam.
 
Bem, diante do trabalho da Cia. alemã Münchner Kammerspiele, deveríamos inverter a equação! Talvez devêssemos buscar as verdades não nos nossos próximos, senão nos nossos distantes; sobretudo nos tristes dias que correm, em que – do ponto de vista político – nosso país, do café e do samba, pra ficar nos clichês, se encontra tão tremendamente fraturado.
 
O espelho produtivo – que nos faz trabalhar – é sempre evidentemente aquele que devolve uma imagem que nos retira de um lugar de conforto…
 

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