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Bravíssimo | Tatiana Belinky por Sérgio Roveri

Publicado em: 30/01/2014 |

 Introdução do livro “…E quem quiser que conte outra”, de Sérgio Roveri, para a Coleção Aplauso (Leia a obra na íntegra)


  

Uma criança de 87 anos

 

Você tem certeza de que quer contar a minha vida?, perguntou-me ao telefone uma incrédula Tatiana Belinky, assim que eu a informei sobre o desejo da Imprensa Oficial de ter seu nome entre o das personalidades biografadas pela Coleção Aplauso. Eu não sou atriz, não sou diretora. Será que alguém vai se interessar pela minha história? Depois de gastar alguns argumentos no intuito de convencê-la, fez-se um breve silêncio do outro lado da linha, logo interrompido pelo inconfundível ruído de páginas sendo viradas. Estou aqui com a minha agenda. Vamos marcar uma entrevista para a semana que vem? Quem sabe não encontremos juntos, então, algumas coisas interessantes que possam justificar um livro.

 

Tatiana Belinky vive em um amplo sobrado em uma rua tranqüila e arborizada do bairro do Pacaembu, em São Paulo. É ela mesma quem atende o interfone e abre a porta para o entrevistador no primeiro dos nossos encontros. Antes de me dar passagem, olha rapidamente para o céu e diz: tomara que você traga bom tempo, depois de tanta chuva. Foi a primeira de uma série de intervenções que ela fez ao longo das entrevistas para demonstrar que, nem seus 87 anos de vida, nem as dezenas de livros que escreveu, justificariam qualquer tratamento mais parcimonioso ou a ausência de intimidade entre nós dois. 

 

Seu quartel-general, onde ela passa a maior parte do dia, está instalado em um dos cantos da sala-de-estar, e compreende uma poltrona listrada de encosto alto (que deve ser muito confortável, já que Júnior, um gato siamês que sabe umas seis ou sete palavras, sorrateiramente se aloja nela à primeira distração da dona), um descanso para os pés, o telefone, o interfone e uma escrivaninha com tampo móvel, sobre o qual repousam lápis, canetas, agendas, clipes e o aparelho de controle remoto da televisão de 29 polegadas, situada a uns três metros a sua frente. Ela refere-se a este cantinho como sendo a sua sucursal de escritório. As paredes deste cômodo, aonde se chega após cruzar uma porta de vidro, estão coalhadas de retratos, dezenas deles, de pessoas queridas, insubstituíveis em sua vida e fundamentais em seu trabalho, mas não estão mais por aqui: o marido Júlio Gouveia, psiquiatra, educador e comandante de uma aventura televisiva chamada Sítio do Picapau Amarelo, no início dos anos 50, o filho André, jovem ator e diretor que não teve tempo de fazer amadurecer sua vocação intelectual, a mãe Rosa, uma dentista rechonchuda, comunista e boa de briga, não necessariamente nesta ordem, e o pai Aron, homem de negócios com alma de poeta e a doçura de um monge.

 

Acomodada nesta espécie de trono high tech, ela deixa fluir a maior das suas habilidades – a da irresistível contadora de histórias que nos últimos 50 anos propagou este dom em forma de livros de crônicas, poesias, memórias, roteiros de programas infantis e seriados adultos, críticas de teatro e traduções. Não teria feito a metade do que fez, acredita ela, se não tivesse como aliada uma prodigiosa memória, capaz de recuperar, com surpreendente exatidão, os versinhos lidos pelo pai quando tinha quatro anos, na gelada Riga, capital da Letônia, onde passou a maior parte da infância antes de se mudar com a família para o Brasil, o longínquo país tropical que primeiro a seduziu com seus inacreditáveis cachos de bananas e depois a assustou com suas gigantescas baratas. A cabeça está ótima, o problema é a carcaça, diz rindo, para justificar as cada vez mais raras saídas de casa. Hoje eu só viajo com os livros e com minha imaginação. É um método muito mais fácil e barato de viajar, e que não causa nenhum problema de coluna.

 

Tatiana Belinky vive rodeada pelas suas memórias, mas não permite que elas lhe desviem o olhar do futuro. Cada recordação serve, acima de tudo, como estímulo para um novo livro, uma nova crônica, uma nova possibilidade de trabalho. Durante as entrevistas, várias foram as ocasiões em que, ao afastar a poeira de algum episódio perdido no tempo, disse para si mesma: engraçado, algum dia, ainda preciso escrever sobre isso. Nos últimos tempos escrever tem sido, para ela, sinônimo de dor – mas não a famosa dor da criação ou os temíveis bloqueios que costumeiramente acometem os escritores. Estamos falando de dor nas juntas mesmo. Uma artrite teimosa tem provocado inchaços nos dedos das suas mãos, afastando-a do computador. Quando acorda, principalmente nas manhãs mais frias, as articulações custam a lhe obedecer. Sem autopiedade, ela dirige alguns palavrões para as mãos e obriga cada um dos dedos a pegar no tranco e sustentar a caneta para mais um dia de labuta. Um artista, costuma dizer, está sempre trabalhando, ainda que refastelado em uma rede. Não tenho culpa se o meu trabalho é diferente, ué! Uma recente cirurgia no pulso afastou a rigidez e o enformigamento na mão esquerda, com a qual ela consegue escrever tão bem como com a direita. Vantagens de uma canhota que soube domesticar as duas mãos. 

 

O telefone ao seu lado toca várias vezes durante o dia. Embora recuse muitos convites, Tatiana Belinky, ou Tati, como os netos a chamam, continua sendo uma mulher muito requisitada. Jovens escritores insistem em mostrar seu trabalho, editoras (e ela trabalha com 14 delas!) cobram prazos e revisões, escolas despejam convites para palestras. Este último tópico, garante, é o mais sedutor. Falar para crianças é encantador, desde que não se refiram a este encontro como palestra. É uma conversa entre uma criança de 87 anos e outras um pouco mais jovens. As exigências que faz para atender a este tipo de convite são tímidas – uma condução que a leve até a escola, água e café no intervalo. Ah, e sem escadas no caminho, por favor. Outro item indispensável em seu bate-papo com a garotada é uma mesa – e isso não tem nada a ver com sua idade. Ela nunca conseguiu falar em pé sem ser vítima de um ataque de tremedeira. E, nestas horas, contar com um apoio para os cotovelos é uma benção. 

 

A escritora parecia torcer, em cada uma das entrevistas, para que o gravador desse logo o sinal de que a fita havia finalmente chegado ao fim – não para interromper a conversa, pois papear hoje é um dos seus passatempos prediletos – mas para dirigir-se com um prazer quase infantil até o armário da sala ao lado, de onde retornava com uma garrafa de vinho do Porto, dois cálices e uma travessa com frutas secas. Abastecida com duas doses do Porto, a velha dama reunia forças e entusiasmo para mais uma batelada de perguntas e recordações. Como boa russa, eu deveria tomar vodca, não é? Mas isso aqui é maravilhoso, diz, apontando para o cálice. Depois de terminar seu trabalho, continue vindo para me acompanhar nestes brindes. Quando está entre amigos, é incapaz de dizer não a um copo de chope, dois no máximo. Mas não costuma apreciar os que se entregam a doses muito maiores que esta.

 

Entre as dezenas de histórias que contou – e que o leitor poderá ver nas páginas seguintes – existe apenas uma que ainda consegue arrepiar-lhes os seus cabelos encaracoladinhos. Talvez ela imaginasse que tal relato não fosse chegar ao conhecimento do público, mas ele é essencial para que as pessoas compreendam a alma espevitada da escritora. E por isso peço licença para narrálo. Há muitos anos surgiu, não se sabe direito de onde, uma espingardinha de pressão na casa que ela dividia com o marido Júlio Gouveia. Certo dia, ele resolveu colocar em xeque a coragem da mulher. Pôs um cigarro na boca, afastou-se por aproximadamente uns oito metros e disse: duvido que você consiga tirar o cigarro da minha boca com um tiro de chumbinho. Tatiana não hesitou: apontou a espingarda e fez um disparo certeiro que partiu o cigarro ao meio, deixando o marido petrificado. O irmão mais novo, Benjamim, que presenciou a cena, quase caiu da cadeira, não sem antes repreendêla. Você escreve para crianças, não pode sair por aí dando tiros de espingarda, onde já se viu?, disse. Ué, ele me provocou, respondeu. Hoje ela fica enrubescida quando recorda da cena. Meu Deus, que vergonha. Mas pelo menos tive certeza de uma coisa: minha pontaria era ótima. 

 

Que o leitor, ao findar este livro, não tenha nenhuma dúvida sobre a importância desta mulher que escancarou as portas da televisão, do teatro e da literatura para a criançada. E que, ao contrário do que fez a própria no primeiro telefonema, carregue a certeza de que sim, a vida de Tatiana Belinky merece ser contada. E muito. 

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