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Bravíssimo | Lauro César Muniz por Hersch W. Basbaum

Publicado em: 10/07/2014 |

Introdução do livro “Solta o verbo”, de Hersch W. Basbaum, para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (para ler a obra, na íntegra, clique aqui)

 

Este livro pretende integrar uma coleção de biografias que relaciona os principais nomes de nossas artes cênicas, aqueles que fizeram, e muitos que ainda fazem a grandeza do teatro no Brasil. Entendo como importante, e necessário, perpetuar a passagem e a ação dos principais elementos que trabalharam para dar ao nosso teatro a importância que acabou por assumir a partir da segunda metade do século 20. 

 

Julgo importante, contudo, discorrer antes sobre algumas poucas questões que acho primordiais, e que vêm sendo objeto de algumas reflexões. 

 

Por que o livro? 

 

Na verdade, uma obra como esta, e outras já pensadas, insere-se na tendência mundial da crescente participação de biografias dentro da relação dos livros publicados. 

 

Esta seria uma primeira grande questão. A que se deve este fato? Estaria sinalizando o fim da narrativa ficcional? 

 

Um articulista da Folha de São Paulo escreveu um artigo intitulado O Fim da Ficção, no qual diz o seguinte: quem corta a mão e escreve sua experiência real com os pés tem mais chance de virar best-seller do que aquele que, escrevendo com as mãos, narra a história de um personagem de ficção que cortou as duas mãos e escreve com os pés. Ou seja, estaríamos vivendo na época do romance de não-ficção, novo gênero com que se tenta abolir a ideia do romance tradicional, para atender a maior demanda de mercado. Mas o que se vem fazendo é desafiar toda uma tradição, elaborando uma literatura consciente de sua necessária suposta realidade. 

 

O ser humano real, sem dúvida, está inserido em um permanente drama de intensidade jamais antes imaginada. Mesmo a literatura de science fiction compreensivelmente catastrófica e apocalíptica que marcou as décadas de 1940/50, após Nagasaki e Hiroshima, não conseguiu imaginar esse futuro. O homem real virou personagem de si mesmo, cru, sem disfarces, inserido em um mundo cada vez mais cheio de perigo, insegurança, ameaças de toda espécie, doenças novas, e assiste ao fim das esperanças por uma sociedade de redenção, social e economicamente mais justa. 

 

Já se disse, o homem está condenado a ser livre, solto no mundo, ao Deus-dará. O vitorioso sistema capitalista, aparentemente vencedor de todos os embates ideológicos que tanto marcaram o século passado, goza da vantagem de jamais ter prometido coisa alguma. No mundo está se dando o adeus ao futuro, às experiências do amanhã. Não há hipóteses para o futuro, disse Heinrich Müller, dramaturgo alemão. 

 

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em sua doutrina do perspectivismo, afirmava que o mundo pode, sim, ser interpretado de diversas maneiras, e que podem todas ser verdadeiras: a realidade reduzindo-se, em última análise, à vida do indivíduo. Essa ideia pode ser exemplificada em sua famosa frase: eu sou eu e minha circunstância. 

 

Multidões e multidões, lembrando ainda Ortega y Gasset, quando falava de la rebelión de las masas. Sim, somos bilhões de seres esmagados por uma mesma cultura, quase que sendo obrigados a nos repetirmos, como que clones de nós mesmos. As massas impondo temas e padrões estéticos. Daí o interesse por todo aquele que, emergindo do anonimato, conseguiu seus 15 minutos de fama. Um dia eu chego lá, disse Avenarius de Roquefort. O seu dia chegará, prometia Fasanello. 

 

Promove-se grosseiramente a máxima vulgar do primeiro viver, depois filosofar. Ou seja, parece que se despreza a postura intelectual que privilegia o conhecimento sobre seu objeto, as coisas, o pensamento e o discurso sobre as coisas e os fatos. O importante são as coisas, elas mesmas, e os fatos verdadeiros em seu entorno, sem nenhum manto diáfano. 

 

Poderíamos dizer que o desprezo pelo objeto e pelo fato vinha sendo o vício corrosivo da literatura moderna. Proclama-se, assim, uma literatura que assume a visão comum do mundo e nele se enraíza, não se erigindo em imposição do real criado; não quer editar e selecionar, quer reconhecer e dizer. Afirma que o mundo está aí, que o comum dos homens o conhece e que todos os homens falam em seu discurso todos os dias. 

 

Em outras palavras, questionam-se as relações entre literatura e biografia e instaura-se a verdadeira aporia: nunca esquecer que escrevemos sempre a partir do nosso ponto de vista. Eis por que, apesar de tudo, deve ser entendido que escrever é sempre algo como uma confissão. É contar às pessoas interessadas uma história, costurada com argumentos e ideias que organizamos na visão que fazemos do biografado. Se é necessário ater-se aos fatos, privilegiar a narrativa com fotografia do real circundante, há que considerar a necessidade de estabelecer o conceito de fato literário, cujo traço distintivo é o seu caráter fictício ou imaginário. E, não sendo suficiente, há que recorrer ao caráter estético. Eis instalada a contradição. Sim, já disse Baudrillard, todo fato é mera teoria.

 

De toda maneira será sempre preciso dizer como conseguimos superar os particularismos e limitações de nossa subjetividade, no anseio de apreender as coisas e os fatos sob um prisma universal e objetivo. A literatura poderá representar o esforço máximo de dessubjetivação – expressão de Porchat – de que somos capazes, ela será o lugar privilegiado do encontro crítico de nossa subjetividade com o mundo objetivo.

 

Por que o teatro? 

Sabemos que o teatro é, de todas as artes, a que melhor define a alma de um país. Na verdade, fazemos referência ao animus e ao habitus, conforme concebeu Norbert Elias, ou seja, um conceito não essencialista, que admite a existência de uma segunda natureza ou saber social paulatinamente incorporado. Note-se que ele muda o conceito de caráter nacional, tido como algo fixo e estático. Os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus de seus membros individuais, daí decorre que este muda com o tempo precisamente porque os acontecimentos e experiências de uma nação ou de seus agrupamentos constituintes continuam mudando e se acumulando, impregnando-a. E cabe ao teatro captar e difundir essas informações, esses traços culturais fundamentais para entendimento de um povo, de uma nação. 

 

 

Entretanto, fenômeno de natureza diversa, tem deixado o teatro como uma ação cultural quase que de responsabilidade única de seus próprios agentes, sem interferência – leia-se, apoio – das instituições de caráter público, principalmente o grande responsável pela cultura do País, que é o Ministério da Cultura. Esse apoio, quando ocorre, tem sido bastante tímido. 

 

Conhecendo melhor os personagens dessa eterna batalha, aqueles que fizeram o teatro brasileiro, se poderá firmar uma opinião mais consistente sobre a história e a trajetória de nosso teatro, de nossa dramaturgia. 

 

Como diria McDonald, eu amo muito tudo isso. 

 

Por que LCM? 

Lauro César Muniz é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores dramaturgos brasileiros e surgiu para o mundo no último quartel do século 20. Importante autor teatral que encontrou na televisão o reconhecimento, a fama e o prestígio para inseri-lo, definitivamente, no panteão de nossos autores importantes. Realmente, na televisão, por meio das novelas, minisséries, e casos especiais, ele investiu todo o seu gênio, mas foi no teatro que ele colocou toda a sua vida. Essa dupla experiência, essa vitória em diferentes campos de atuação, foi o atrativo maior que encontramos para escolhê-lo. 

 

Convém informar que pretendemos traçar o perfil de nossos personagens dentro de um padrão que vimos, há tempos, afirmando como único possível, único necessário. Estamos convencidos de que não existe a pessoa em si. Ela surge nas suas relações. Ou seja, interessou-me mais saber da relação de Lauro César Muniz com o teatro, com a televisão, com o país, com as mulheres, com a religião, com a política, etc. Somente dessa forma, podemos efetivamente conhecer os nossos biografados.

 

A história de sua vida não tem grandes lances de repentina ou profunda ruptura,desviando-a para outras trajetórias, transversais ou paralelas, de tal sorte a fazê-lo repensar, a cada momento, os rumos. Na verdade, a linha quase reta de seu destino é composta de acontecimentos, como se fossem degraus, para o alcance de um mesmo objetivo, com felizes e ricos momentos, salvo uma única exceção, que foi a terrível tragédia da perda de um filho muito querido. Mas aquilo que é verdadeiramente importante e esperamos que tenha sido suficientemente exposto é a sua sinceridade e a sua coragem. De um lado, a surpreendente maneira com que fala de seus fracassos com a mesmo franqueza que exibe seus sucessos e, de outro, a forma como encarou e superou os problemas difíceis por que passou, especialmente aqueles enfrentados no meio profissional. Sabidamente, um mar de gigantescos e insaciáveis egos. 

 

A pessoa 

Lauro César Muniz pode passar pela Avenida Atlântica ou pela Avenida Paulista sem chamar a atenção. Não é particularmente bonito, mas também não é um sujeito feio. Nem alto, nem baixo, nem gordo, nem magro. Jamais chamará para si olhares pelo seu aspecto físico, que mais parece a do indivíduo comum, anônimo, um companheiro para os papos ocasionais numa mesa de bar. Conversando com ele percebe-se a voz neutra, mas simpática, sem altas entonações, mas que aos poucos vai deixando escapar aquele Lauro personagem, aquela figura heroica de que aqui vamos nos ocupar. Aquele vulcão adormecido, desperto quando é a hora, expelindo lavas de criatividade, provocando admiração, qual o vulcão verdadeiro, onde as pessoas permanecem à distância, bebendo a estranha beleza das labaredas tingindo a crosta terrestre e cuspindo rocha derretida. 

 

Filho do bravíssimo interior paulista, nascido em uma família organizada dentro dos padrões da época, foi educado respeitando os preceitos de uma moral cristã. Em certo momento de sua vida, levou a sério os dogmas da religião e os seus imperativos morais. Toda essa experiência religiosa haveria de me marcar de forma indelével. 

 

Conheci LCM em 2000, na sede da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em São Paulo. Tinha ele ido lá para tratar de assuntos de direitos sobre alguma de suas peças, quase todas frequentemente montadas e remontadas Brasil afora. Sucesso permanente. Aquilo me intrigava, na medida em que eu, também autor, não conseguia atrair atenção para os meus próprios trabalhos. Fracasso permanente. Trocamos poucas palavras, mas o suficiente para que eu percebesse que havia ali um autor consciente de seu trabalho, uma obra a ser estudada em profundidade. 

 

Voltei a vê-lo no Teatro Sérgio Cardoso, em julho de 2002, quando foi participar do I Congresso Brasileiro de Dramaturgia, atendendo a convite que lhe fizera para falar de seu trabalho. Tratava-se de um evento que eu havia organizado quando diretor da SBAT. 

 

A criação literária 

Os textos de Lauro César Muniz parecem uma forma de resistência aos poderes a que frequentemente somos submetidos e convidados a nos curvarmos. Isto é, o poder, para se sentir mais poderoso, tem sempre por objetivo desunir, separar as pessoas, para melhor submetê-las aos seus desígnios. O poder tem sempre por objetivo impedir as pessoas de realizar aquilo que podem, e a arte consiste, justamente, em liberar a vida daquilo que a aprisionou. 

 

A criação literária é a definição de seu pensamento. A obra literária é uma concepção de vida, através de criaturas e enredos que estão por aí mesmo, ao nosso lado. Ela leva seus leitores a ver o que comumente não é visto. 

 

Não há vilões irremediáveis, irrecuperáveis. O mal não está no homem. O erro geral não é desse ou daquele indivíduo: é de toda a sociedade, de todo um mundo apodrecido. O inimigo não é a classe social em si, a aristocracia rural ou a burguesia militante. O problema é o espírito do burguês, sua inquebrantável filiação e sua eterna dependência ao verdadeiro demônio (ou novo Deus?), que é o capital. 

 

O que significa o desrespeito pelo sagrado, a eterna inconsciência. Poderia ter dito: a vida sem valores e sem princípios, a negação da existência do bem, do justo e do bom. Como disse aquele filósofo, o inconsciente se faz presente e escarro na face ultrajada de Cristo. É o sangue jorrando quando pensa que verte sêmen… 

 

As páginas que se seguem procuram detalhar esses e outros aspectos basilares da vida de Lauro César Muniz, um de nossos mais importantes autores, esteio de nossa melhor dramaturgia. Representam o resultado de muitas horas de entrevistas, gravadas em fitas cassete. O depoimento de Lauro é espontâneo, emocional, direto, extraído como numa confissão. Altera espasmos de emoção a reflexões cuidadosamente pensadas, mas sempre numa clareza que lhe é peculiar.

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