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Bravíssimo | José Dumont por Klecius Henrique

Publicado em: 12/09/2013 |

Apresentação do livro “Do cordel às telas”, de Klecius Henrique para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, de 2005 (para ler a obra, na íntegra, clique aqui)

 

A vida de José Dumont pode ser confundida com uma obra de ficção, dada a riqueza dos acontecimentos que o tornaram um dos principais atores do cinema brasileiro nos últimos 30 anos. Por mais que a afirmação pareça exagero, não é. Ao longo desse livro, o leitor perceberá elementos que o ajudarão a chegar próximo dessa conclusão.

 

Filho de Severino e Maria Porpino, agricultores do sertão da Paraíba nos anos 1950, José Dumont perdeu a mãe cedo, vítima de parto de uma de suas irmãs. Viu o pai migrar para João Pessoa e foi criado pelo avô, Joaquim, de quem não herdou o sobrenome Batista. 

 

Aos seis anos, ele descobriu a leitura sozinho, um dos primeiros momentos de “encantamento” da trajetória do ator. O menino José aprendeu a ler na feira, enquanto acompanhava o avô. Seus professores não usavam quadro nem passavam dever de casa. 

 

Tinham como instrumentos a voz, a viola e os livretos de cordel.

 

“Eu ficava observando, ouvindo o cordel e comparava. Se o cara falava ‘batata’ associava a imagem ao que estava sendo dito. Fui soletrando e descobrindo que o que ele dizia correspondia ao que estava escrito aqui. Na verdade, qualquer pessoa aprende assim. Se souber o alfabeto, é só ir colocando as letras”, ensina o ator. 

 

Seis meses depois desse convívio com os repentistas e com a literatura de cordel, José Dumont lia fluentemente. Tornou-se leitor de trechos de novenas e do Novo Testamento para o avô e amigos. Foi o meu primeiro palco, recorda. O pessoal descia até o pé da serra, onde morava Seu Joaquim Batista, conhecido como Joaquim do Monte. 

 

Foi essa localização no mapa de Belém do Caiçara que deu a José, ao seu pai, Severino, e aos irmãos o sobrenome francês. Ao se apresentar no Exército, Seu Severino disse que se chamava Severino do Monte, do mesmo jeito que um personagem da literatura de Guimarães Rosa era apresentado ao leitor.

 

O tenente, achando que Severino estava falando errado, sapecou um Dumont nos documentos. E assim ficou até hoje. Severino Dumont. José Dumont. Neusa Dumont. E todos os Dumont, herdeiros de Seu Joaquim Batista. “O Brasil não era subamericano ainda. Então, o tenente escreveu o nome de papai com a grafia francesa. E ficamos com esse nome chique que, na verdade, é roseano”, conta José Dumont.

 

Ele teve infância pobre, dividida entre uma passagem rápida por João Pessoa, onde não se adaptou à vida com a madrasta, e os dias no interior, ao lado do avô, com quem conheceu a enxada, os bichos da caatinga e, sobretudo, a rígida educação sertaneja, calcada nos mais profundos dogmas da Igreja Católica e da vida no interior. 

 

Adolescente, José Dumont foi tentar vida nova em João Pessoa. Estudou até a sétima série, serviu o Exército, tentou engajar e, por fim, matriculou-se no curso de embarcadiço da Marinha Mercante. Sonhava conhecer o mundo nos navios. Desejo que o levou a São Paulo de olho no Porto de Santos. Nunca embarcou. Virou operário e, na maior cidade do País, fez de tudo um pouco para se virar, como já fazia em João Pessoa. 

 

São poucos os atores que tiveram o privilégio de trabalhar com tantos diretores de renome. De 1977 para cá, Dumont filmou com Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Zelito Vianna, Sérgio Rezende, Bruno Barreto, Roberto Farias, Daniel Filho, Eliane Caffé, Walter Salles, entre outros. “Só não trabalhei ainda com Cacá Diegues”, diz. Apaixonado pela obra do diretor de Bye Bye, Brasil, Dumont aguarda a hora em que Diegues o escalará. 

 

Escrever sobre José Dumont é relembrar, em seus 54 anos, um pouco do dia-a-dia de muitos brasileiros que batalham para sobreviver numa nação em que a desigualdade social não é assunto apenas dos livros, é parte da vida do País. Falar de José Dumont é falar de um intérprete que fez de tudo para mergulhar na alma do homem do Brasil, é perpassar a História (com H maiúsculo) do cinema brasileiro e descobrir um ator com conhecimento que vai muito além de sua arte. 

 

Em 30 horas de entrevistas em seu apartamento no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, perto do Museu da República (antigo Palácio do Catete, onde Getúlio Vargas se matou), Dumont relembrou passagens da carreira e demonstrou domínio de áreas tão diversas quanto Física, Direito e História, que o ajudam no modo particular com que se prepara para representar. 

 

“O cinema me dava espaço para experimentar de forma direta, mas não me deu escola, uma escola específica. Os diretores trabalhavam de forma muito diferente. Isso foi bom para mim, porque eu comecei a criar a minha própria escola, vindo desse lastro emocional extenso da própria vida e coisas que eu sentia necessidade de pegar do exterior”, explica o ator. 

 

Meu primeiro contato com Dumont foi nos anos 90. À época, escrevia matéria para o Correio Braziliense sobre o filme Milagre em Juazeiro, de Wolney Oliveira. Tímido, liguei para Dumont com um certo receio. Não sabia como ele reagiria a um pedido de entrevista de um repórter que atuava em um jornal regional, fora do eixo Rio-São Paulo. Ele, logo nas primeiras palavras, quebrou o gelo. Falou por mais de uma hora e me deu uma aula sobre Padre Cícero, a beata Maria de Araújo e até sobre o Ceará. Na minissérie Padre Cícero (TV Globo), cujo papel-título foi entregue a Stênio Garcia, Dumont viveu o governador cearense.

 

Depois daquele dia, passei a conversar com Dumont sempre que ele fazia um novo filme. Fui a Manaus cobrir o Festival Internacional de Ópera, no Teatro Amazonas. Ao desembarcar na capital amazonense, encontro Dumont no aeroporto. “Está passeando ou trabalhando?”, perguntei. “Passeando nada, rapaz. Trabalhando como sempre”, devolveu Dumont. Ele chegava para as filmagens de A Selva, do cineasta Leonel Vieira. Decidi que, além das matérias sobre as óperas, enviaria para Brasília um texto sobre o longa.

 

Iniciei, então, os contatos para acompanhar as filmagens. Conversei várias vezes com o produtor Óscar Cruz, que não me deixava falar com o diretor Leonel Vieira. Não tive dúvida e recorri a Dumont. Contei meu drama. O ator pediu que eu fosse ao hotel imediatamente. Na mesma hora, peguei um táxi e corri para lá. Dumont já estava na recepção me aguardando. Até o cineasta aparecer, conversamos sobre o seringueiro que ele viveria em A Selva e sobre outros papéis que faria depois. No intervalo, dezenas de turistas pararam a conversa para cumprimentá-lo. Quando Leonel passou pelo saguão do hotel, Dumont o parou e me apresentou a ele. “Leonel, ele quer fazer uma matéria com a gente. E você não vai fazer uma desfeita de não atender o rapaz”, disse. 

 

Leonel Vieira disse que me atenderia e sumiu por uma hora. Voltou. Tentou engatar uma desculpa para não me conceder entrevista. “Fechamos com um jornal de São Paulo e não podemos falar com o senhor. Lamento”, explicou, seco. Insisti, dizendo que trabalhava em Brasília e, portanto, não era concorrente do colega paulista. “É Leonel, Brasília não é São Paulo. Pode falar”, reforçou Dumont. O cineasta cedeu e, no dia seguinte, eu acompanhava o primeiro dia de A Selva. Naquela noite, perdi um dia do Festival de Ópera. E vi que Dumont não era apenas uma fonte. Era um amigo. Nas filmagens, agradeci a ajuda e Dumont me disse que faria tudo de novo “em nome do cinema brasileiro”. 

 

Retomei o contato com José Dumont em 2003, quando comecei mestrado na Universidade de Brasília (UnB). Meu objeto de estudo: o nordestino no cinema brasileiro a partir dos filmes e personagens de José Dumont. Sob orientação da professora e cineasta Dácia Ibiapina, a dissertação foi batizada Uma Luz Sobre o Homem do Sertão: o Ator José Dumont e a Representação do Nordestino no Cinema Brasileiro. Em linhas gerais, descrevo e analiso o nordestino vivido por Dumont em Tudo Bem (Arnaldo Jabor), O Homem Que Virou Suco (João Batista de Andrade), A Hora da Estrela (Suzana Amaral), Abril Despedaçado (Walter Salles), Narradores de Javé (Eliane Caffé) e Onde Anda Você (Sérgio Rezende). 

 

Sem saber, entrava em um universo que incomodava Dumont. Com talento incrível, tanto para papéis dramáticos quanto cômicos, o ator rejeita o rótulo de “o nordestino do cinema brasileiro”. Entende que o seu físico – e a dezena de tipos do Nordeste que fez no cinema e televisão (como esquecer Severino de Morte e Vida Severina) colaborou para essa marca, mas se irrita quando alguém diz que ele só fez – e faz – isso.

 

“Quem fala que sou um paraíba que só faz pa-pel de paraíba, não sabe o que eu sei. Não sabe por onde passei, o que vivi. Ninguém sabe tudo na vida (…) Quando acabou Morte e Vida Severina, por mais que eu fizesse diferente, começaram a me rotular. Ah, ele só faz isso, diziam. Não podia parecer o cara do Sul, esteticamente. Meu biotipo não era aquele. Nos dois papéis de O Homem Que Virou Suco já estava claro que podia fazer muito mais que nordestinos”, rebate Dumont. 

 

Os filmes que escolhi na pesquisa deixam claro que o nordestino de Dumont tem múltiplas faces. Vai além de “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, cravado na obra-prima Os Sertões, de Euclides da Cunha, e repetido à exaustão em qualquer citação ao povo do sertão. Os nordestinos de Dumont carregam a poesia do cordelista Deraldo, de O Homem Que Virou Suco, o anacronismo do patriarca de Abril Despedaçado, a leveza de Antônio Biá em Narradores de Javé, o machismo de Olímpico Moreira Chaves, de A Hora da Estrela, e os estereótipos do radialista Jajá, de Onde Anda Você. Em suas particularidades, poderiam estar em qualquer lugar. Dumont procurou criar tipos universais. Para ele, mais que nordestinos, mineiros, policiais, pais, bandidos, malandros, seus personagens são cidadãos do Brasil e do mundo. 

 

Nas filmagens do curta O Último Raio de Sol (de Bruno Torres) em Brasília, acompanhei novamente Dumont no set. Percebi que ele tratava os atores mais jovens da mesma forma que os veteranos com quem cruzou no caminho – Paulo Gracindo, Jofre Soares, Fernanda Montenegro – o tratavam. Dumont é grato a esses mestres do nosso cinema. Nunca esqueceu, por exemplo, que Paulo Gracindo dizia a todos, nos bastidores de Tudo Bem, que ele, Dumont, no início da carreira, “era um grande ator”. 

 

“Paulo chegou para mim e disse que Seu Piauí foi muito bom para mim. Significava que eu representava de fato. Ele dava dicas. Seu Piauí, se o senhor falar essa palavra nesse tom aqui, fica melhor. Quando ele foi assistir ao copião e viu uma cena minha, ele disse: Esse menino vai ser um dos maiores atores do Brasil. Ele falou para todo mundo. Isso me deu um estímulo danado. Era o elogio de um ídolo”, recorda. O mestreídolo, portanto, fez escola. 

 

Para finalizar, não posso deixar de agradecer aos jornalistas Maria do Rosário Caetano, Rogério Menezes, Amanda Wanderley e Tino Freitas pelo apoio na realização desta biografia-depoimento. Eterna gratidão também a José Dumont pela paciência nas entrevistas no Rio de Janeiro e nas dezenas de telefonemas do início do mestrado até a conclusão deste volume da Coleção Aplauso. 

 

Com vocês, José Dumont, o ator que saiu dos cordéis para as telas de cinema.

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