EN | ES

Bravíssimo | Haydée Bittencourt por Gabriel Federicci

Publicado em: 06/02/2014 |

 Introdução do livro “Esplendor do teatro”, de Gabriel Federicci, para a Coleção Aplauso (Leia a obra na íntegra)


 

O Ofício do Teatro

 

“O teatro é uma escola de pranto e riso, uma tribuna livre na qual os homens podem pôr, em evidencia, morais velhas ou equívocas e explicar, com exemplos vivos, normas eternas do coração e do sentimento do homem.” 

Federico García Lorca 

 

Os períodos mais elevados da história do teatro mundial tiveram como protagonistas atores, dramaturgos e encenadores que visavam à mesma finalidade: apontar o caminho para a construção de uma arte que, por sua potência comunicadora e simultaneamente reveladora, transmitisse todo e qualquer traço do homem, desde sua essência à aparência, e a relação que é estabelecida com o mundo que o engendra. Haydée Bittencourt é um exemplo vivo dessa contribuição que até hoje permanece no coração e na retina de todos aqueles que tiveram o privilégio de assistir aos seus espetáculos ou de alguma forma participar de sua carreira.

 

Depois de um intenso trabalho de pesquisa, quando tive a oportunidade de analisar todo o seu acervo particular e de ter contato com as principais obras que ela sabiamente escolheu para levar à cena sob sua direção, posso, agora, reafirmar a real importância da sua presença no cenário teatral brasileiro. Isso sem mencionar os estudos detalhados das épocas que ela procurou retratar em suas encenações. Foram anos de luta a serviço dos valores teatrais, seja como atriz, diretora ou mestra da arte de representar. Se o teatro brasileiro nasce com os Autos de Anchieta, ele certamente adquire a sua maioridade com a chegada de Ziembinski que, com sua multiplicidade cênica e envergadura técnica, bane dos palcos todo e qualquer indício de amadorismo e complexo de inferioridade. Haydée Bittencourt, ao lado de inúmeros diretores posteriores à chegada do diretor de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, ilumina a cena teatral brasileira, como atesta o crítico de teatro Clóvis Garcia: “Haydée nos ensinou o quão importante é pensar e estruturar os espetáculos. Ela é a nossa referência do teatro inglês no Brasil.”

 

Após estudar na célebre Royal Academy of Dramatic Art (RADA), de Londres, ela retorna ao Brasil e traz consigo um aprendizado técnico preenchido com rigor e disciplina. Durante alguns anos lecionou a cadeira de interpretação na Escola de Arte Dramática – EAD –, de Alfredo Mesquita. E, logo em seguida, em 1961, transferiu-se para Belo Horizonte para assumir a direção artística e reestruturar o Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais, T.U/UFMG, fundado em 1952 por Vicenzo Spinelli. Segundo a definição da professora de movimento, Angel Vianna, que lecionava no T.U. à época de sua chegada: Haydée trouxe com ela algo de inovador; nós sentíamos que o Teatro Universitário, que estava passando por muitas dificuldades, não seria mais o mesmo. A nossa crença se confirmou ao verificarmos a alta potência de seu trabalho. Enquanto diretora, ela conseguia ser ao mesmo tempo leve como pluma e firme como rocha. Bastaria esse comentário para defini-la como divisora de águas do teatro mineiro, não fosse a confirmação contínua de tantos outros, discípulos ou não, que nasceram à sua luz. Haydée Bittencourt imprimiu a sua marca no teatro mineiro assim como Maria Lúcia de Godoy o fez na música.

 

As suas experiências, enquanto espectadora de teatro nos países estrangeiros renderam-lhe referenciais indispensáveis para a sua maturidade profissional. Ela adquiriu a consciência de que atores como John Gielgud, Laurence Olivier, Peggy Ashcrofth, Tyrone Guthrie, Joan Plowright não possuíam apenas talento, mas exercitavamse diariamente, trabalhando voz, movimento, estilo e estudo de textos. Esse mesmo processo ela exigiu de seus alunos, submetendo-os ao constante treinamento. A convite do Departamento de Estado norte-americano, Haydée Bittencourt viajou para os Estados Unidos onde permaneceu durante noventa dias para conhecer os principais centros teatrais em atividade naquele país. Nessa época, em 1966, o então presidente marechal Castelo Branco recebeu uma carta enviada pelo representante do Departamento de Teatro Americano, Jerome Margolius, na qual constava o seguinte comentário: Haydée Bittencourt é a melhor embaixatriz do teatro brasileiro em nosso país.

 

Avessa ao tratado de Marinetti, do início do século XX, cuja proposta era alicerçada no movimento Futurista – que tinha por base o rompimento com as artes clássicas, a resistência absoluta a toda e qualquer expressão artística do passado – Haydée Bittencourt representa o próprio renascimento do repertório clássico teatral. Se por um lado ela despertou muitos preconceitos, por outro foi recompensada pelo êxito de sua expressão dramática. Segundo suas palavras: “O teatro de repertório contribui para a formação de um público culto e consciente”. Para ela, o texto é a base da criação e deve ser respeitado, tal como o era para Stanislavski e para o diretor de teatro francês e criador do Vieux Colombier, Jacques Copeau e todos os textocentristas. Deixemos a mestra falar: Nossa finalidade é fazer reviver a obra desde a sua primeira leitura até sua apresentação ao público. É neste instante que ela dá o seu primeiro vagido. É neste instante que se processa o fôlego dramático da sua sobrevivência: nesta transfusão de autor, diretor, atores e público que ela continuará a sua aceitação pelo tempo, resistindo à sua ação corrosiva e comprovando que não é apenas algo fugaz, produto do que ‘está na moda’ e que passado este período nada mais significa. Eis a causa pela qual ela sempre advogou. 

 

Dentre os inúmeros dramaturgos que ela privilegiou ao longo de sua carreira destacam-se Shakespeare, Molière, Gil Vicente, Tchekhov, Pirandello, Camões, Almeida Garret, Arthur Miller, Tennesse Williams, Peter Weiss, Ionesco, Jorge Andrade, Martins Pena, Arthur Azevedo, Lorca, Gonçalves Dias, Dias Gomes, Afonso Arinos, entre outros. O seu trabalho como diretora foi elogiado pelos diretores ingleses George Devine e Norman Marshall. 

 

Extremamente culta, polida, amável, foi um prazer imenso poder ouvi-la contar as suas beaux souvenirs. Como atriz, o seu trabalho foi saudado pela crítica da época. Estamos, pois, diante de uma personalidade teatral, cujo registro de seu trabalho pôde ser devidamente reunido e evidenciado a todos aqueles que fazem e/ou amam o teatro, graças à iniciativa da Imprensa Oficial através da Coleção Aplauso. Desejamos que a memória cultural continue a ser preservada e suas lacunas preenchidas. 

Relacionadas:

Bravíssimo | 18/ 12/ 2014

Bravíssimo | Nívea Maria por Mauro Alencar e Eliana Pace

SAIBA MAIS

Bravíssimo | 11/ 12/ 2014

Bravíssimo | Renato Consorte por Eliana Pace

SAIBA MAIS

Bravíssimo | 04/ 12/ 2014

Bravíssimo | Rosamaria Murtinho por Tania Carvalho

SAIBA MAIS