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Alunos de Extensão da SP Escola de Teatro escrevem críticas sobre a peça "Pessoas Sublimes"

Publicado em: 15/03/2016 |

Como atividade do Curso de Extensão “Fundamentos da Teoria e da Crítica”, ministrado pelo crítico teatral Márcio Aquiles, os alunos tiveram de assistir e criticar a peça “Pessoas Sublimes”, em cartaz no Espaço dos Satyros 1. Três dos textos foram selecionados para ser publicados aqui no portal da SP Escola de Teatro.
 
Confira as críticas feitas por Flávia Russo, Aline Olegário e Marcus Mazieri.
 
 
A vida é um sopro
Por Flávia Angelica A. Russo
 
“Pessoas Sublimes”, a segunda incursão d’Os Satyros no universo teatral da trilogia das personas criada por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, é um convite a experimentar o tempo, a reconhecer seus ciclos, a escutar a humildade perene na interdependência de vida e morte e a creditar o esforço necessário à expressão consciente dos sonhos e desejos humanos, tecendo sua dramaturgia no mimético baixo* e por meio da contação de histórias, guiada pela voz de Delírio, interpretada por Helena Ignez.
 
No distrito de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, às margens de uma represa, há o encontro entre um solo tido como sagrado em mundo espiritual – uma terra que escolhe seus habitantes – e um espaço, em matéria, com um dos maiores índices paulistanos de homicídios. É na periferia da cidade que às pessoas sublimes é possível resgatar memórias e despertar para sonhos de vida interior, ou, ainda, transitar no tempo entre mortos e vivos. “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos e nossas pequenas vidas se encerram em um sono.”
 
A encenação de García Vázquez é rica em concretizar imagens, transformando o Espaço dos Satyros 1 numa reserva onírica, protegida do centro urbano, porosa à vida em todas as dimensões e retratada na natureza por meio de cortinas brancas translúcidas, dispostas ao longo do palco da direita para esquerda em seus três planos, e ambientação com canto de pássaros, zunidos de abelhas e sons de animais diurnos ou noturnos; o desenho de luz é definido cena a cena, ora para compor um ambiente físico com o som, ora para revelar projeções, em transições de cenas, com remissão ao cinema pioneiro. O milenar teatro de sombras, marcado pela sátira disfarçada de inocência, é o recurso com que as personas falam de realidades externas, ilusórias, enfatizando visualmente a fabulação. Imagens em chiaroscuro traduzem a morte contida em vida e seu reverso.
 
As pessoas sublimes exteriorizam seu universo fantástico por meio do figurino com inspiração burtonesca. Vários trajam redes, como vidas entrelaçadas a todos os seres. Suas feições do rosto, compostas pela máscara, são marcadas pelo surrealismo, clown e expressionismo alemão. As personas do menino Desatino e do jardineiro Uilso, nas interpretações sublimes de Ivam Cabral e Eduardo Chagas, são conduzidas de tal forma que seus movimentos, gestos e vozes são fluidos, precisas expressões de suas máscaras. A dinâmica do par Desatino e Tresvario (Gustavo Ferreira) é regida pela dupla clownesca clássica: o ingênuo augusto e o metódico branco.
 
Do encontro entre Oriente e Ocidente, traduzido na estética e na dramaturgia em cena, há espaço para que camadas se expandam e se retraiam plasticamente. Memória e esquecimento são forças numa gangorra, com ciclos efêmeros de repetição. A imagem em sépia é um passado, em seu duo com a presença. É a ágil Delírio que traz à tona da água, para o ar, a essência renascida dos desejos conscientes para que não morram na pessoa de uma cantora sem voz. “Em Shiragi, o sol é brilhante à meia-noite.”
 
*O modo narrativo mimético baixo une uma imagem universal, atemporal e interna (arquetípica) à experiência humana cotidiana. O arquétipo em “Pessoas Sublimes” é morte e renascimento. O estudo de narrativas sob a convergência de modos e mitos é proposto por Herman Northrop Frye, crítico literário do século XX, em seu ensaio “Anatomia da Crítica” (1957). Um exemplo de fábula cinematográfica sobre vida e morte, narrada em mimético baixo, é o filme japonês “A Partida” (2008), de Yogiro Takita.
 
 
E se você existisse?
por Aline Olegário
 
Parelheiros, São Paulo, Brasil, Terra. Mas que tempo e espaços são esses dessas “Pessoas Sublimes”, dentro dos 4,5 bilhões de anos de planeta? Passado, presente e futuro parecem misturar-se na peça escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, dando vazão para o surgimento de um momento único e suspenso – como o deserto de Exupéry, o sótão de Maria Clara Machado ou Oz de Frank Baum – em que o público é convidado a amalgamar-se: o que você tem feito com seu tempo?
 
Esse convite à fusão é insinuado desde a entrada, quando o público, atravessando os corredores do teatro, vislumbra os atores/personagens nos momentos de preparação para a entrada em cena, recobertos apenas por uma cortina translúcida que dimensiona, de certo modo, o universo suspenso, misto de reminiscência e imaginação dos quais o espetáculo é imbuído.
 
Tresvario, dotado de papel, caneta e grande percepção matemática, faz um agudo diagnóstico logo no início: somos apenas um emaranhado de números. A premissa para os treze personagens que habitam a represa Guarapiranga é a mesma, e, embora exista um portal que separa os vivos dos mortos, todos possuem histórias lastimáveis, quase um retrato de uma sociedade que, ao esmagar a esperança de existir com o peso viver, parece predestinada a “prosperar” natimorta. Mas há Delírio, responsável pela passagem dos mortos e que, apesar do nome altamente dionisíaco, é pura razão em suas reflexões sobre o tempo, possuindo beleza tão suntuosa que chega a ser praticamente o sopro fulgente da Natureza e uma fagulha sedutora de esperança. 
 
A carga lírica e onírica que a obra possui é transposta de forma contundente para os cenários, cujas cortinas servem de apoio não só para as entradas de projeções, mas também para reforçar a falta de nitidez gerada pela neblina, instaurando um clima misterioso e noctívago de Parelheiros; objetos de cena parecem reforçar a inércia que o ambiente e os seres que o habitam possuem: galhos secos, máscaras fúnebres, relógios estáticos; brincam com o atemporal, misturando objetos antigos, como um máquina fotográfica com ares de daguerreótipo a outros mais contemporâneos, como um joystick e um smartphone. Figurinos, visage e iluminação trabalham em confluência com cenário e, apesar de instaurarem o ambiente da represa em seus pormenores, criam paralelamente um espaço suspenso no tempo. As cores da iluminação parecem flertar, em alguma instância, com os trabalhos de Jan Saudek e Le Turk.
 
Dois portais foram propostos: o que o público atravessa metaforicamente, para ver o espetáculo, ao caminhar pelo corredor do teatro, e o que as personagens vivas transpõem quando morrem; os dois caminhos não têm volta: sair de uma existência morta, para vislumbrar a mortidão real, quando não mais há esperança. Ou há? Quem são os vivos? Quem são os mortos? Parece delírio, desatino, tresvario ou insanidade, mas “Pessoas Sublimes” provoca: e se você existisse?
 
 
A estrondosa sutileza do sublime
por Marcus Mazieri
 
Entrar no teatro do Satyros é, por si só, uma experiência incomum. Para chegar no nosso lugar de público (lugar privilegiado neste caso!), passamos pelo palco e camarins. É lá que, através de um leve tecido translúcido, podemos ver os atores e atrizes fazendo os últimos preparativos antes da peça. É o primeiro detalhe que nos coloca diante da sutileza estrondosa de “Pessoas Sublimes”, nova peça d’Os Satyros, que vem como sequência da premiada “Pessoas Perfeitas”.
 
O que vemos de relance nessa passagem inicial se agiganta em cena. As personagens se revelam ao mundo por máscaras humanas muito bem esculpidas com detalhes realçados de seus traços faciais fundamentais: um queixo que se alonga, um lábio superior avolumado, uma ponta de orelha espichada, um nariz pomposamente afinado. Sutilezas que, somado a incríveis maquiagens e figurinos, delineiam uma estética bastante agradável aos olhos, que coloca o espectador em um outro mundo, mescla de magia e paixão, mundo e mistério, vida e morte.
 
É no condomínio Terceiro Lago, em Parelheiros, extremo sul de São Paulo, que toda a história se passa, ou melhor, todas as histórias se cruzam e passam por nossos olhos com a mesma naturalidade que vemos a nossa própria vida. Lá existe um portal entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. De que lado estão as personagens que vemos? O limite entre morte e vida é colocado de muitas maneiras nas histórias, partindo da morte da menina Doris Day, anunciada logo no início da peça. Vemos então os acontecimentos que antecederam o crime e que revelam as tantas maneiras sutis com que a vida se manifesta nos diferentes tipos de pessoas. As personagens se colocam em distintas batalhas para se manter do lado cá, seja o lado da vida, da razão, da ética, da sanidade, da compaixão, do amor. Apenas um descuido e nos vemos nos lugares que jamais gostaríamos de estar. 
 
O texto de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez é um grito pela diferença que convive. Que pode conviver com porosidade, alteridade e delicadeza. O assassinato de Doris Day, seja ela virgem ou não, nos faz adentrar na complexidade humana de todas as personagens envolvidas, direta ou indiretamente, revelando o processo sempre dialético que é a construção constante do indivíduo. Não estamos prontos, não somos perfeitos nem sublimes, mas paradoxalmente é exatamente nas falhas e desvios que reside nossa potência de perfeição. Erramos tentando acertar, sofremos buscando o prazer, morremos por amor à vida.
 
Para além das histórias muito bem construídas, da encenação precisa e delicada de Rodolfo García Vázquez, da atuação detalhista, fluida e pulsante dos atores e atrizes, do cenário e iluminação belos e impactantes, “Pessoas Sublimes” é um espetáculo para ser sentido. Ele escava nosso corpo para liberar a humanidade trancafiada pelos excessos da razão e da verdade. Faz o humano se revisitar e soprar o pó de uma mobília exausta. E, por fim, acabamos por nos defrontar com a pergunta que seca nossa boca: de que lado deste portal estamos agora?



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