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A soma alegre dos diferentes

Publicado em: 23/10/2013 |

* Por Cremilda Medina, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

“Somar”, a palavra culminante do espetáculo “Na mesma cena”, do projeto Dança Sem Fronteiras. O saguão e o palco do Teatro Sérgio Cardoso, no dia 16 de outubro de 2013, às 19h15, foram gradualmente povoados por gestos, corpos em movimento e sons de música ao vivo. A performance não seria especial se os bailarinos se apresentassem na composição cênica em iguais condições. Mas não. Cegos e cadeirantes compunham a beleza plástica, que já se esboçara na entrada, e iria para dentro do teatro.

 

Na bilheteria, o espectador era consultado se precisava de atendimento específico, porque não apenas os artistas somavam diferenças. O público da Mostra Internacional + Sentidos, iniciativa do Governo do Estado de São Paulo, também convida para os espetáculos sensibilidades variadas – ou na plenitude ou nas limitações do corpo vivo. Por isso mesmo, uma atenção especial para portadores de deficiência auditiva que, porventura, comparecessem à plateia. Sem palavras, sob o império do corpo em ação e da música, alguns textos enunciados no palco se traduzem em sinais. A música, em excelente e original interpretação, guia cegos na expressão plástica com outros bailarinos; a alucinação de um personagem minúsculo ultrapassa o imaginável na cadeira de rodas; na modulação cênica, assiste-se a quadros da dança sem fronteiras que se espalham com autonomia pelo palco. 

 

O cortejo que entra nessa cena, a partir do saguão, já mobiliza como participantes os espectadores, que são convidados, no silêncio verbal, na inspiração musical e na linguagem do gesto a se intitularem como sujeitos somantes em um pequeno cartaz pendurado no pescoço. O compromisso se cumpre em um pacto de sentidos que irá culminar nas cenas finais em que se misturarão ao conjunto do projeto de Fernanda Amaral, coreógrafa do grupo.

 

Apresentação de conclusão do curso “Dança sem fronteiras”, na SP Escola de Teatro (Foto: André Stéfano)

 

Brasileira, premiada na Grã-Bretanha, trabalhou 20 anos na Europa e, como expressou no fim do espetáculo, está muito feliz de voltar ao Brasil. Sua companhia Patuá Dance, sediada em Cardiff, no País de Gales, apresentou inúmeros espetáculos na rua, em teatros, clínicas e escolas, incluindo passagens pelo Brasil. Na itinerância de oficinas, Fernanda circulou a convite de países centrais da Europa, Grã-Bretanha ou Turquia. Recentemente acaba de ser contemplada com o prêmio da fundação holandesa Prince Claus Fund for Culture and Development. Desde que voltou à terra natal, vem atuando na vertente mais forte de sua carreira – a inclusão em cena de artistas de sensibilidades diferenciadas –, em projetos no Sesc e na SP Escola de Teatro, seu mais recente trabalho. Alunos do curso de Extensão Cultural que aí desenvolveu participaram da apresentação de “Na mesma cena”. 

 

Vem de longe, na experiência internacional, a proposta de Fernanda Amaral de somar e não separar os atores no processo de inclusão de deficientes. Ela se recusa a tratar esses parceiros de arte com atos misericordiosos. Não reconhece limites na epifania que conjuga, com alegria, os corpos cênicos e no entrelaçamento ousado reconhece a superação dos limites. A paisagem estética move todos os sentidos, mesmo os que faltaram na biografia de alguns participantes do espetáculo dos seres vivos.

 

Lembro dos anos 1960, quando completava os cursos de Didática na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e me propus fazer um trabalho com alunos excepcionais – essa, na época, a nomeação. (Entre parênteses, Fernanda não havia nascido.) Pois bem: o que se discutia, na onda pedagógica da Escola Nova, era a política de escolas especiais ou a inclusão dos especiais na escola comum. Vista na perspectiva de meio século, a educação ainda não encontrou o modelo ideal. A arte, porém, sempre oferece um gesto inspirador. Hoje, meus alunos de graduação e pós-graduação sabem o quanto valorizo o contato da ciência com a arte, um projeto de fruição perante o que nomeio “O gesto da arte”.

 

Escrevi no cartazete que pendurei no pescoço à entrada no Teatro Sérgio Cardoso, o verbo conjugado na primeira pessoa – “participo”. Terminei no palco no momento culminante de participação. Me movi, junto com cegos e cadeirantes, bailarinos profissionais e a inquieta coreógrafa na regência da ação improvisada por anônimos e tímidos. Mas a energia contaminante não dá margem à exclusão: somos todos sujeitos da mesma História.

 

 

*Cremilda Medina, jornalista, pesquisadora e professora titular da Universidade de São Paulo, é autora de 15 livros e organizou 52 coletâneas interdisciplinares em várias universidades. Uma de suas mais recentes obras, publicada pela Summus Editorial de São Paulo em 2008, “Ciência e jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos”, propõe o desafio do signo da relação nas sociedades democráticas.

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