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A Constituição, essa desconhecida, e a Cultura

Publicado em: 27/05/2013 |

 

 por Evaristo Martins de Azevedo*, especial para o Portal da SP Escola de Teatro



“Ninguém respeita a Constituição

Mas todos acreditam no futuro da nação”

(Renato Russo)


Freqüentemente os jornais divulgam pesquisas que revelam que se a Constituição Brasileira fosse obedecida, o valor correto do salário mínimo, suficiente para pagar todos os direitos básicos nela previstos, seria de cerca de R$ 4.000,00 ou de R$ 6.000,00… Sempre que leio tais notícias me surpreendo com o fato de que os jornais que as publicam não se dão conta de que estão dizendo, antes de tudo,  que a Constituição Brasileira, por aqui, não é respeitada.

 

E, como esse, inúmeros seriam os exemplos de desdém e de violações permanentes à nossa Constituição, mas, por ora, vamos  dar uma olhada apenas em como nossa ‘Carta Magna’ lida com a cultura brasileira, e, em especial, como as autoridades, as da vez, têm tratado os dispositivos constitucionais que versam sobre nossa cultura…

 

Vamos ver que, assim como os direitos essenciais  previstos na Constituição não conseguem ser supridos com o valor do ‘salário mínimo’, os direitos constitucionais relacionados à Cultura, igualmente, não conseguem ser plenamente desfrutados, não só por razões econômicas, mas, também, por razões políticas, administrativas, judiciárias e, muitas vezes, simplesmente por mero descaso. O fato é que os direitos à cultura e às artes estão claramente dispostos na nossa Lei Maior, muito embora, poucas vezes eles sejam integralmente obedecidos ou respeitados. Mas eles existem, nessa Constituição, e estão aí, desde 1988!  Alguns desses direitos, aliás, previstos desde a primeira Constituição, a Imperial, de 1824. E outros, mais jovens, desde 2012, quando, através da Emenda Constitucional 71, passaram a integrar a atual Constituição Republicana. E é desta última que vamos falar agora.

 

Logo de cara, em seu Título I, a Constituição Federal Brasileira determina que: o Brasil deve buscar, dentre  otras cositas más, a integração cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (Art. 4º, parágrafo único)

 

E, a seguir, já no Título II, em seu art. 5º (que, dizem, deveria ser considerado seu mais importante artigo, eis que é nele que estão estabelecidos os direitos e garantias fundamentais do tal do cidadão, assim como a essência dos direitos e deveres individuais e coletivos), a Constituição Federal determina, depois de dizer que todos são iguais perante a Lei, que “qualquer cidadão” (ele aí de novo!), pode ser parte legítima para propor ação popular, sem custos e sem ônus, que vise anular ato lesivo ao patrimônio histórico e cultural, conforme se vê lá em seu inciso LXXIII.  Ou seja: se, em um exemplo fictício, alguma autoridade de plantão resolver, de forma lesiva, baixar decreto alterando ou regulamentando Lei, objeto de conquista de determinada classe artística, consolidada como patrimônio cultural, pode, qualquer cidadão, propor ação popular para anular a barbaridade jurídica. Difícil, apenas, é convencer juiz de direito de que a burocracia e as políticas de governo não podem prevalecer sobre este ente abstrato que é a arte, por mais que ela integre o patrimônio cultural brasileiro, arrolada expressamente no artigo 216 da Constituição Federal.

 

Contudo, em seu artigo 23, a Carta Constitucional deixa claro que é competência comum de todas as esferas da Federação a proteção de documentos, de obras e de outros bens de valor histórico, artístico e cultural (inciso III);  e, que todos,  União, Estados e Municípios (e Distrito Federal), devem impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de  obras de arte e dos demais bens já mencionados (inciso IV). Mas, em especial, devem proporcionar os meios de acesso à cultura (inciso V).

 

Da mesma forma, diz o artigo 24, compete à União e aos Estados (e ao Distrito Federal) legislar “concorrentemente” sobre a proteção ao patrimônio cultural; sobre a responsabilidade pelo dano aos bens e direitos de valor artístico e estético; e, sobre a cultura (incisos VII, VIII e IX, respectivamente). E compete aos Municípios, diz o artigo 30, promover a proteção do patrimônio cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual (inciso IX).

 

Mas é na Seção II, do Capítulo III, do Título VIII, que, finalmente, estão os artigos 215 e 216, os quais, de fato, disciplinam as garantias, a todos, do “pleno exercício dos direitos culturais” e do “acesso às fontes da cultura nacional” e, ainda, do apoio e do incentivo à valorização e à difusão das manifestações culturais. E que, expressamente, arrolam algumas das mais relevantes manifestações que constituem o patrimônio cultural brasileiro, a identidade cultural brasileira. As cláusulas pétreas de sua cultura.

 

Além disso, vale ressalvar, a Emenda Constitucional 71, de 2012, acrescentou o art. 216-A da Constituição Federal, que criou o Sistema Nacional de Cultura, instituto jurídico de âmbito constitucional, “organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.”

 

Entretanto, ironicamente, estão nos artigos 215 e 216 (e no art. 216-A) as maiores fontes de desrespeito a Constituição, no que se refere à arte e à cultura. E é justamente aqui que encontramos, em âmbito cultural, aquelas situações que, tal qual ocorre com a questão do ‘salário mínimo’, revelam-se verdadeiros paradoxos jurídicos. São nestes artigos que os direitos mais relevantes ligados às artes estão consagrados, e, ao mesmo tempo, os mais frequentemente desprezados…

 

É no artigo 215 que está presente a garantia de que caberá ao Estado o apoio e o incentivo às manifestações culturais; e que ele, Estado, protegerá as manifestações populares, indígenas, afro-brasileiras e dos diferentes segmentos étnicos nacionais… Além de exigir um plano nacional de cultura que vise o desenvolvimento cultural do Brasil e que determine ao poder público ações que conduzam, necessariamente, à defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; à produção, promoção e difusão de bens culturais; à qualificação para a gestão da cultura em suas “múltiplas dimensões”; à democratização do acesso aos bens de cultura; e, à valorização da diversidade étnica e regional. A Lei Rouanet e outros programas públicos de incentivo e de fomento à cultura suprem apenas parcialmente as exigências constitucionais.

 

E é no artigo 216 que, efetivamente, estão arrolados aqueles bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro, que sejam “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, dentre os quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações artísticas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; e, os conjuntos urbanos de valor artístico. Ademais, é neste mesmo artigo constitucional, em seu parágrafo terceiro, que se ordena que devam ser estabelecidos incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. E, mais do que isso, em seu parágrafo quarto, que os danos e meras ameaças ao patrimônio cultural devam ser punidos.
 

Já o artigo 216-A, acrescentado recentemente, como já dissemos, por Emenda Constitucional, e que instituiu o Sistema Nacional de Cultura, dispõe, por sua vez, em seu parágrafo primeiro, que o mesmo “fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes”, estas estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e que se rege pelos seguintes princípios:

 

I – diversidade das expressões culturais;

II – universalização do acesso aos bens e serviços culturais;

III – fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais;

IV – cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;

V – integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas;

VI – complementaridade nos papéis dos agentes culturais;

VII – transversalidade das políticas culturais;

VIII – autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil;

IX – transparência e compartilhamento das informações;

X – democratização dos processos decisórios com participação e controle social;

XI – descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações;

XII – ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.

 

 

Ora, ainda que aparentemente abstratos tais princípios, são, ao contrário, bastante concretos, simples e suficientes para que nos sintamos lançados a país de primeiro mundo. Mas não somos porque as políticas públicas nacionais de cultura e suas diretrizes são apenas e tão somente ‘regidos’ conceitualmente pelos citados princípios, porém, na prática, são, de fato, distantes abstrações…

 

O que não é abstração, contudo, é o “mercado” (do qual, aliás, a cultura, muitas vezes, é antagonista!). E o “mercado interno” integra o patrimônio nacional, segundo a própria Constituição Federal, em seu artigo 219 (no Capítulo destinado para a Ciência e Tecnologia), que diz, entretanto, que o mesmo deverá ser incentivado de modo a viabilizar, dentre outras coisas, o desenvolvimento cultural do País.

 

Entretanto, de acordo com o art. 220, fica assegurado que a manifestação do pensamento, a criação e a expressão não sofrerão qualquer restrição. E, no parágrafo segundo do referido artigo, está garantido expressamente que é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística!

 

Portanto, todos os princípios expostos no artigo 216-A deveriam ser observados permanentemente, viabilizados pelo “mercado interno” e sem qualquer censura. Mas não é isso que acontece com o atual sistema nacional de cultura! Assim como nosso ‘salário mínimo’ também não consegue pagar por tudo aquilo que a Constituição Federal diz que ele deveria conseguir… E assim como as emissoras de televisão não dão preferência pela produção e pela programação cultural e artística, tal qual exige o princípio Constitucional exposto no seu inciso I do Art. 221. E, ainda, assim como as mesmas emissoras de televisão, por praxe, não costumam promover a cultura regional e nem estimular a produção independente que objetive a divulgação da mesma, como pressupõe o inciso II do referido artigo.

 

Incrível, assim, que nossa Carta Magna preveja tantos direitos e princípios para a cultura e para as artes, todos eles realmente a favor do povo (cujo poder dele emana, diz o parágrafo único do artigo primeiro da Constituição!), mas, muitos deles, sejam somente palavras… Impressionante como direitos claros a favor da expressão artística ainda sejam violados; que ainda impere a censura em espetáculos de teatro, muito embora a Constituição a proíba expressamente; que a preferência por conteúdos artísticos e culturais seja um sonho distante na programação das emissoras de televisão; e, ainda mais distante, o sonho da produção e da divulgação da cultura regional ou da integração cultural dos povos da América Latina, eis que não há qualquer interesse comercial nisso. E esses são apenas exemplos pequenos, dentre tantos outros, da enorme distância havida entre a realidade do dia-a-dia de artistas e o que a eles impõem as autoridades de plantão. Isso quando elas não preferem o descaso (que é mais simples), já que a cultura (ou a ausência dela!) não parece ser prioridade, embora sempre aleguem que, “ao menos, os direitos estão lá, consagrados na Constituição”…  As autoridades vão se sucedendo umas às outras, em todas as esferas de poder, mas, em geral, a maioria delas tem tratado mal tanto a arte quanto os dispositivos constitucionais que versam sobre nossa cultura. Mas deveriam, os artistas, despertar e passar a conhecer mais e melhor os direitos petrificados na nossa Carta Magna para exigi-los com mais propriedade e veemência dos Entes públicos e privados com quem se relacionam no ambiente cultural. E para exigir respeito a ela, eis que quanto mais desconhecida for a Constituição, mais violada ela será.

 

 

Por isso, já estava certo o poeta quando, lá em 1978, disse que “ninguém respeita a constituição” (embora a música tenha sido lançada somente em 1987!). Talvez nem ele imaginasse que, mesmo depois de 25 anos da Constituição de 1988, sua música continuaria sendo tão cantada… E, muito menos, que seus versos seriam tão ironicamente verdadeiros em seu próprio meio, o das artes.

* Evaristo Martins de Azevedo, advogado especialista em Leis de Incentivo à Cultura e crítico de arte, escreve mensalmente. Clique aqui para ler outras colunas
 


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