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‘A cabeça de Yorick’, por Hugo Possolo

Publicado em: 25/09/2014 |

Palhaço do grupo Parlapatões, Hugo Possolo é coordenador do curso de Atuação da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, e também assume a coordenação geral dos cursos de circo oferecidos pela Escola neste ano, que são gratuitos e atendem a cerca de 300 participantes de diferentes níveis – de iniciantes até aqueles que já estão em atividade.

 

Hugo Possolo (Foto: Bob Sousa)

 

Nesta semana, por sua importante trajetória artística, o artista recebeu o Prêmio Fundação Bunge na categoria Vida e Obra na área de Artes Circenses.

 

Leia abaixo, na íntegra, um texto escrito por Possolo para o Festival Internacional Sesc de Circo (2014), em que faz reflexões essenciais sobre o circo, palhaçaria, humor e muito mais.

 

“A cabeça de Yorick”

A imagem de Hamlet ostentando uma caveira talvez seja a mais simbólica da tragédia. O curioso e divertido, especialmente para um palhaço, é que a imagem traz a comédia dentro de si, na cabeça de Yorick, a caveira, em que morte e riso estão associados. E isso não é pouco.


Pobre Yorick, tinha língua e não apenas o sorriso que o morto em cena nos revela. Ainda vivo, carregou o menino Hamlet em suas costas e mal sabia no que aquela brincadeira iria dar. O bobo da corte, o palhaço a serviço do rei, até depois de morto se tornaria poesia nas palavras do príncipe no auge de sua loucura.


Para ser um palhaço hoje os dilemas não chegam a ser hamletianos, com dúvidas insolúveis, porém certas perguntas devem nos invadir com maior frequência: qual a função social do nosso ofício? Como agir diante dos constantes processos de transformação de nossa expressão? Qual a visão estética que o riso oferece na construção de valores simbólicos?


Se Hamlet observa na caveira toda perspectiva do que foi a vida de seu palhaço da infância e assim compreende a dimensão de sua própria existência, o mundo contemporâneo nem sempre oferece condições de refletirmos o sentido de um ofício tão antigo quanto disposto a divertir o público. Por isso, recorrer ao clássico – no sentido mais estrito do termo – permite que coloquemos a origem do arquétipo do palhaço em embate, diante de sua forma mais conhecida e popular, para fazer uma análise que contextualize melhor seu sentido contemporâneo.


O palhaço clássico, forjado entre os saltimbancos da Idade Média e os brincantes da corte do renascimento, até sua forma adotada historicamente a partir de Joseph Grimaldi, conhecido como pai dos palhaços modernos, tem como fator inaugural a paródia da demonstração de habilidades que caracteriza todas as modalidades circenses.


Como um grande contraponto, o palhaço é o único dentro do espetáculo a não desafiar a natureza e, ao contrário, é aquele que a ela sucumbe. Enquanto os acrobatas, equilibristas e trapezistas desafiam a lei da gravidade, enquanto domadores desafiam feras selvagens, o palhaço parodia essas situações, imitando o artista habilidoso, gerando riso ao zombar do medo e das limitações humanas de superação. Sua metáfora é feita ao avesso, levando o espectador a se aceitar como parte da natureza, provocando-o a redescobrir sua própria natureza humana, em geral, escondida sob alguma racionalidade, que o afasta da compreensão do medo, da morte e do prazer.


A poética da palhaçaria e da bufonaria, a primeira partindo da anima alegre do arquétipo e a segunda de sua dor diante do mundo, nasce desses temas muito profundos – medo, morte e prazer – tratando-os pelo ambiente do grotesco. Sua origem expressiva é muito palpável e sua continuidade histórica busca, desde os primórdios, ir além da paródia para alcançar a potência crítica da sátira.


A temática dos números de palhaços, somente mais tarde, após a revolução Industrial, é que se debruçou sobre situações cotidianas, que criam uma identifi cação diferente no espectador. Deixa de lado a imitação do artista circense, do homem que busca superar seus limites, e passa a abordar o homem comum, revelando também suas incapacidades. É na falta de habilidade, no fracasso humano, que o arquétipo tem sua maior força, especialmente quanto trata da vida comezinha.


Recentes tendências circenses, na busca por uma dramaturgia, avaliam se devem ou não destacar a virtuose nas demonstrações de habilidade. Muitas vezes isso se confunde com a não necessidade dessa virtuose ou com um simples pretexto temático para encenação de números. Essas duas formalidades retiram a potência da arte: uma, por tornar desnecessária a busca pelo aprimoramento técnico que sempre encantou o público e assim o decepcionando; e a outra, por supor, subestimando a inteligência do público, que qualquer argumento justifica um número circense.


O palhaço, no que é relativo a essa tendência atual, talvez uma moda, tenta reafirmar sua expressão buscando metáforas que não permeiam a essência do arquétipo, tentando lhe imputar uma poética que não lhe pertence, como se a graça não lhe bastasse. Uma variante deformada surge como um apêndice intelectualizado, formal, que sufoca o humor, favorecendo uma noção nostálgica e pretensamente lírica do palhaço.


Muitas vezes aquilo que se anuncia como inovação, na verdade, é uma visão conservadora e moralista do arquétipo, que não aceita sua origem e esvazia sua temática primordial. Sobretudo, se apoia em formalidades cênicas ao invés de mergulhar nos assuntos mais caros para a humanidade.


É preciso alertar que, quando se busca impor regras à arte, está se traindo a própria arte. Uma forte contradição, já que a arte vive de seu potencial libertador, intrinsicamente contrário a regras.


E é recorrente na História que o moralismo procure se apropriar das formas expressivas para tentar moldá-las. Sem autocrítica, muitos artistas, para serem aceitos socialmente, cedem aos apelos do pensamento hegemônico e submetem sua arte aos ditames do senso comum. Hoje, a subserviência está contida naqueles que querem fazer humor “politicamente correto”, esse eufemismo de conservadorismo burguês, que visa um mundo idealizado e recusa uma visão sobre a vida real.


É preciso reafirmar que a expressão da palhaçaria se dá menos por meio de metáforas e mais pela utilização da hipérbole. A mudança de dimensões é uma figura de linguagem que desconstrói os hábitos mais simples com imensa intensidade. Os objetos perdem sua função utilitária e ganham poesia. Uma cadeira muito pequena, ou muito grande, retira do espectador o conforto de entender que os objetos estejam sempre a serviço do homem. Essa desconstrução, feito lente de aumento, distorce o mundo, abrindo espaço para favorecer o olhar crítico do público.


O riso é, em si, destruidor. Derruba ícones sem a preocupação moral de construí-los novamente. E os palhaços estão sempre imbuídos da tarefa de destruir o que é mais concreto e objetivo. Muitas vezes, o pragmatismo desse humor se confunde com a falta de abstração. Ou seja, ao provocar o riso a partir de situações muito palpáveis sugere, dentro das visões mais superficiais, que não tenha profundidade nem poesia.


Os coveiros, antes da chegada de Hamlet para o enterro de Ofélia, versam comicamente sobre o que significa se matar ou se deixar morrer. Muitos acreditam que essa cena é um enxerto, apenas para dar alívio cômico antes do ápice catártico da tragédia. Defendo que não.


A cena é mais importante, não por ser cômica, mas porque instaura, muito além das dúvidas individuais do príncipe da Dinamarca, um embate sobre o poder. Ao discutir sobre o afogamento ou suicídio da mulher que desposaria o príncipe, Shakespeare abre as portas para discutir como a arte lida com o poder, no sentido amplo de que aquilo que nos determina são as escolhas que fazemos. Um entendimento clássico da humanidade, que fundamenta o que é a estética até hoje. Estética é o resultado de escolhas diante de um determinado momento histórico.


Ser palhaço em um mundo globalizado não é uma tarefa tão simples quanto parece. Fazer rir da ingenuidade do arquétipo pode sugerir que a arte da palhaçaria não se relaciona com a complexidade do mundo atual, tanto quanto buscar um sentido paralelo à essência do palhaço pode afastá-lo de sua poética mais profunda.


Palhaços contemporâneos somos os coveiros que oferecemos a cabeça de Yorick para que o mundo reveja o sentido de suas vidas.

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