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Publicado em: 28/06/2021 |

   

                                                                                                                                                       Chá e Cadernos 100.49
                                                                                                                                                                        Mauri Paroni

O percurso traçado a seguir pode ser lido como ilação, como elucubração, como hipótese. Não importa. Parte de intuições, aprendizados e vivências profundas que gostaria de tornar publicas com o fim de facilitar reflexões e trabalhos nesta encruzilhada teatral contemporânea. Teatro e arte são feitos de encontros e desfechos. Ofereço estes:

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Uma associação criada em 1927 por quatro diretores parisienses, Louis Jouvet, Charles Dullin, Gaston Baty e Georges Pitoëff, aspirava à renovação do teatro, inspirados nas encenações de André Antoine e Constantin Stanislavski. Criticavam o dinheirismo do boulevard e a atuação afetada, com a encenação de autores mais contemporâneos e a preeminência do texto escrito precedentemente à sua apresentação. Eles organizavam programas por temas, críticas, metáforas e política de preços comuns a seus teatros. Como toda colaboração artística verdadeira, seus personagens e idéias eram muito diferentes. O ar fresco trazido por esse novo teatro terminou com a ocupação nazista, mas aquelas ideias de direção por fim transformaram o teatro do pós-guerra. Isso chegou também Brasil. Muitos alunos deles na renovação brasileira vieram dali.

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Um deles, particularmente Baty, escreveu muito sobre a passagem do funeral ao espetáculo, e suas semelhanças com a Grécia ateniense do século V a.C., de pericles.eu tenho uma opinião particular, que desenvolvi em aulas de minha formação . Vejo o teatro grego como uma passagem, que veio do antigo Egito; quer dizer: África. Quer dizer Nilo. Quênia. Também, não me canso de ressaltá-lo: Houve a passagem da fé na ressurreição da vida a partir da conservação da aparência de um corpo (e da alma, no caso platônico), da pele, no ritual da mumificação, coisa repetida na passagem do ritual do ditirambo para a tragédia, operada por um lendário Téspis e por Ésquilo na Atenas clássica. Para mim, essa passagem obedece a uma fórmula jaculatória, quase um mantra mudo: “Também veio do Lago Vitoria ao Egito antigo”. Sempre frequentadíssimo por gregos, romanos, franceses e árabes. Por milênios. Nascente do Nilo.

Também.

O Rio Nilo e a sua origem na África Subsaariana.
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Essa é a minha intuição, fortíssima desde que um dia assisti a um ritual durado uma madrugada e um amanhecer no festival Volterra Teatro [CSRT Pontedera].

Aqui, a narração:
[Outra experiência foi particularmente definitiva em meu começo profissional: a companhia italiana da qual era diretor no CRT (Centro di ricerca per il teatro di Milano) foi convidada a uma residência e apresentação no festival de Pontedera, Itália, na época dirigido por Roberto Baci, que muito atuou no Brasil.
Fomos alocados numa villa (mansão) semi abandonada nos arredores da cidade. Tínhamos o segundo andar do edifício à nossa disposição. Tudo ali era ocidental: brioches, panetones, café com leite matinal; preparávamos almoço e jantar com pasta, arroz, polenta, peixe. Vinho e água.

Faziam um pão diferente e muito bom no primeiro andar. Ali alocava um grupo de homens que vivia no deserto do Saara, creio entre o Chade e a Algéria. Não falavam meia palavra de inglês ou francês. Tinham um intérprete para o trabalho; de noite, para o nosso convívio, nenhum. Não se conseguia falar. Aventuramo-nos com alguns deles a trocarmos alimentos e sons guturais.

Homem tocando um didjeridu –  Crédito: wiki Commons.

 

Na noite seguinte, a apresentação daquele grupo consistia num ritual noturno de cinco horas que lembrava uma mistura de candomblé a jaculatórias muçulmanas; previa o sacrifício de um animal – coisa tida em segredo, pois as associações de defesa animal jamais o teriam permitido. Além disso, os “espectadores” deveriam provar o sangue daquele animal por ingestão mínima ou fazer uma inscrição sanguínea no braço… o sangue como “adorno”, ou benção divina. A plateia diminuiu significativamente. O local era ermo. Muitos de nós vagaram pela madrugada no bosque até o amanhecer. Não era qualquer um que conseguia fazer parte daquela plateia. O ritual, desenvolvido quiçá por milênios nas noites geladas de um deserto escaldante por humanos que mal conheciam a escrita, contaminara-se com descolados do teatro “de pesquisa”, entre enfeitiçados rituais e horrorizados defensores de animais. Estes caminhavam, apavorados, naquele bosque úmido da Itália Central. Acredito que os homens do deserto também estavam apavorados conosco.

Os batimentos cardíacos dispararam. As ideias atingiram uma velocidade vertiginosa. Não se sabia o que acontecia entre emoção e sentimento. Era um vórtice poético que, sim, poderia coligar-se ao ditirambo de uma real festa dionisíaca pré-ateniense; ou a um ritual inaceitável pelo inconsciente. Havia cantos ancestrais transmitidos via exclusivamente oral. Certamente havia muita magia e poesia naquilo.

Intuí que nos fosse recomendado gratidão e empatia por um animal que teve a vida sacrificada por uma manifestação humana. Era uma representação de outra dimensão da longa história que alguém chama de “teatro performático” no Ocidente. Tempo, valores estéticos, éticos e lógica mecânica foram virados e revirados naquelas cinco horas.

Parecia, mas não era, um outro planeta: era o nosso, além do tempo. Havia tudo o que está presente no chamado “teatro” (do grego Theatron – “de onde se vê”): gramática, sincronia, ritmo, voz, olhar, corpo, representação. Não recusava a performance, a narração ou a tragédia, embora não possa dizer haver assistido a ama tragédia antiga.]

Prossigamos.

Aqui, o podcast sobre tragédia em mais de uma língua do mediterrâneo:

https://spescoladeteatro.org.br/audios/grecia-ii-uma.palavra-mediterranea.mp3 ;

Este, em grego antigo:

https://spescoladeteatro.org.br/audios/grecia-I-o-som-do-grego-antigo.mp3 ]

Era Ocidente, era África, era pré-trágico, era pré-comico, se utilizado o parâmetro da mimese da realidade, teoricamente estruturado por Aristóteles e estetas posteriores ao século V a. C. Completo esse exemplo destacando outro sobre o tema:

https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-a-funcao-do-urso/ ]

[Continuo a impressionar me com essa lembrança. As Bacantes, de Eurípedes, é exatamente  isso quando as mulheres são instadas à uma suposta “loucura” demonstrativa da origem  divina de Baco/Dionísio. E… olha o Zé Celso  aí…]

Zé Celso em Bacantes. Crédito: Renato Mangolin

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https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-pilulas-de-ano-novo-parte-1

De outro artigo, a passagem em mais detalhes:

[Nas datas críticas da lenda de Osíris – a morte, sepultamento e ressurreição –, grandes festas incluíam muitos figurantes e uma encenação importante, às vezes ao ar livre, às vezes dentro de um templo. Eram os adereços: Uma estátua de Osíris envolto em bandagens, uma cama para a múmia divina, coroas, cetros, armas, vasos cheios de água benta para libações, incensários, incenso e mirra. Intérpretes, os sacerdotes eram personagens da família de Osíris: Shou, Geb, pai e avô de Osíris, Hórus, seu filho, Anúbis, Thoth, seus irmãos e pais e filhos de Hórus. Pelas  mulheres: Isis, Nephthys e outras deusas que de vez por vez faziam o papel de carpideiras. Os sacerdotes também recitavam textos.

O drama, dividido em vinte e quatro cenas – uma por hora – acabava com a  ressurreição de Osíris. Vários elementos teatrais estavam juntos: a mímica, realizada por parte dos deuses presentes na ação; a recitação de poema; o coro de carpideiras, cujos lamentos eram apoiados por instrumentos musicais. Foram ainda mais longe. Em um texto recentemente decifrado, encontramos o livro completo de espetáculo sobre a morte de Hórus. Há mais do que recitação para os atores; agora, apresentam os seus papéis com a atuação. Eles vêm e vão, e um deles aparece num carro. Ação e emoção são seguidas pelo comentário de um coro de camponeses. É dividido em três episódios, separados por declamações e danças líricas. Tudo isso um milênio antes da tragédia Ésquilo.] [(524 – 455 a.C.)]

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A Grécia foi passagem linguística geográfica do saber trágico ao Ocidente, foi um interstício do que chamaremos de drama. E a tragédia, hoje, voltou com tudo. Pena eu não tenha disponibilidade para teses mais extensas; deixo, entretanto, os artigos anteriormente copiados.

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Intuição,  sim, mas também fatos que a alimentam:

As Bacantes foi encenada no Royal Court Theatre de Londres em 1973, reescrita por Wole Soyinka – poeta nigeriano de família iorubá, ganhador do Prêmio Nobel de literatura em 1986 por “Cartas da Prisão”). O coro de Baco é ladeado pelo dos escravizados de pele negra, e Baco/ Dionísio lembra um orixá.

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Ainda que longo, copio aqui o trecho final de AFRICANOS NO BRASIL, de “A África e os africanos na história e nos mitos”, do Embaixador Alberto Costa e Silva, que dedicou a sua vida ao estudo  daquele continente.

Para termos uma mínima ideia do que foi base da cultura brasileira em formação, de uma amalgama histórico fundamental para quem quer pelo menos imaginar o que concorre no caminho do teatro brasileiro. Em minha opinião, de seu sempre recusado internacionalismo, de sua globalidade não eletrônica, e vítima, como qualquer cultura quando importa na liberdade, de  tanta violência e cancelamento.

Basta um mínimo de atenção ao número de diversidade idiomática que aportou com os escravizados, no maior tráfico humano jamais ocorrido na humanidade. Isso tem tudo, mas tudo mesmo, a ver com a tragédia.

[   (…) Nesses desfiles reais ouviam-se tambores, agogôs, aguês, pífanos e numerosos outros instrumentos que eram deles e são nossos. Esses instrumentos animavam as festas nos dois lados do Atlântico, com ritmos e melodias que, ao entrelaçar-se com as  europeias, foram se transformando na nossa música.

Agogôs

Nesses desfiles reais ouviam-se tambores, agogôs, aguês, pífanos e numerosos outros instrumentos que eram deles e são nossos. Esses instrumentos animavam as festas nos dois lados do Atlântico, com ritmos e melodias que, ao entrelaçar-se com as europeias, foram se transformando na nossa música.

Não se dançava na África apenas pela alegria do convívio. Dançava-se também para reverenciar os deuses e recebê-los na alma. Foram muitas as religiões que atravessaram o oceano, pois cada povo tinha a sua. Algumas absorveram outras crenças ou foram por elas absorvidas, gerando novos sistemas religiosos, como a umbanda. Outras não deixaram vestígios. Mas a uma das religiões trazidas da África, a dos orixás, converteram-se em grande número, principalmente no Brasil e em Cuba, pessoas de outras origens, e o que era a religião dos iorubas tornou-se uma religião universal.

Orixá Ossain Orossi Agué. No candomblé do Ile Ase Ijino Ilu Orossi; foto Toluaye

Povo iorubá, Nigéria: Exu (Madeira, metal, couro e cascas), Museu de Arte de São Paulo doação  Cecil Chow Robilotta e Manuel Roberto Robilotta, 2012.

Por iorubás passaram a ser designados, desde a metade do século XIX, diferentes grupos que, na atual Nigéria, República do Benim e Togo, falam a mesma língua, embora com variações dialetais, possuem culturas mais do que semelhantes e se aglutinavam em tomo de cidades-estado, compartilhando muitas tradições, ainda que em alguns casos pudessem ser diferentes e até mesmo conflitantes. Tidos como iorubas (e, no Brasil, também nagôs), sabiam-se oiós, ifés, egbas, auoris, quetos, ijexás ijebus, equitis, ondos, igbominas ou de outras nações. Assim também os falantes de quimbundo, os ambundos de Angola, compreendiam vários grupos com dialetos e culturas diferenciadas, entre os quais andongos, dembos, hungos, quissamas, songos, libolos e bangalas. Os vários grupos iorubas e, ainda mais, os ambundos tiveram grande importância na formação do Brasil. Mas foram apenas parte de um grande coro, composto por gente de quase toda a África subsaariana. De certas regiões, vieram números enormes; de  outras, pouquíssimos. Houve  quem fosse obrigado a longuíssimas viagens, do  centro do continente até os portos que se aproximavam do litoral para comerciar, pois era comum que um africano falasse mais de um idioma: o seu e outro ou outros que aprendera no convívio do mercado ou com as esposas de seu pai, algumas  delas estrangeiras.  E as  diferenças eram compensadas pelas  semelhanças, em processos  contínuos de mesçagem física e cultural. Algumas vezes, dois ou mais povos se entrelaçavam e criavam um novo. Como fizeram os africanos que foram coformadores do Brasil.]

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A África ensina: a narração histórica exclusivamente oral tende, pela própria condição cognitiva, a priorizar fatos pela dimensão contextual – mais que pelo tempo – para o narrador; sabia-o Apuleio, que era africano e narrador oral. A sua grande obra, O Asno de Ouro, versa em prosa agilíssima. Sempre pela noção contextual de quando ouviu ou aprendeu, que é circular. Como a memória senil ou infantil, ambas oníricas.

No mesmo exercício de tempo circular, lembro que Heiner Müller me pedia para narrar a morte de Shakespeare e seu mundo como um radialista num jogo de futebol. Sem a menor cerimonia naturalista. Minha personagem era um a de mordomo-proprietário de latifúndio latino-americano, alcoólatra, dinheirista, drogado. Urrava, diante de  uma televisão, “Goooooooool! Chega de personagens! Chega de autores!” Era 1988: Indignada, uma platéia descolada do festival de Sant’Arcangelo atirou-me tudo o que dispunha em mãos, de flautes de espumante a latinhas de cerveja. Mais tarde, referi isso a  Müller por telefone. Ele estava em sua casa na ainda existente Berlim Oriental. Sorriu, feliz: “ Faz tempo que não  me vaiam. Só se vaia no palco quem tem o que dizer”.

Heiner,  esse intelectual visionário, depositário infiel do cânon brechtiano. Amigo pessoal, ensina, em memória, a dimensão de tempo do que for importante. Coisa que só se aprende na Gerúsia. Aos 60 anos.

Também.

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Pesquisa:

https://prceu.usp.br/noticia/africa-e-alberto-da-costa-e-silva/

Alberto da Costa e Silva: A África e os Africanos na História e nos Mitos

Wikipédia

Euripides:  As Bacantes