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Polêmica versus existência – um passeio na net com Bill T. Jones

Publicado em: 02/03/2020 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.23

A amplitude multimidial do coreógrafo/diretor/autor/ator/bailarino Bill T. Jones pavimenta a narratividade corporal com a produção de imagens abstratas que furam preconceitos, tempo ou fronteiras culturais. Derrubam certeza para construírem poesia. Evocam respostas que não existem enquanto sentenças, mas no gozo da fruição. Propõem questões filosóficas e sociais como limites das artes do palco, racismo, identidade e doenças terminais.

https://www.ted.com/talks/bill_t_jones_the_dancer_the_singer_the_cellist_and_a_moment_of_creative_magic].

Duas criações aqui:
[https://www.youtube.com/watch?v=o4DD3dgfvS0]
[ https://www.youtube.com/watch?v=FZg_q3CDNOM]

Ao longo de sua carreira, Jones coreografou mais de cem trabalhos, colaborando com muitos artistas afro americanos, ativistas e instituições modernistas como o Alvin Ailey American Dance Theater.
[https://www.youtube.com/watch?v=IcF9Dgke7uk ] Na década de 2000, trabalhou também no teatro musical com a coreografia do Spring Awakening (inspirado no texto homônimo do expressionista alemão Frank Wedekind), pelo qual ganhou os prêmios Obie e Tony.
[ https://www.youtube.com/watch?v=unEzofNFtp8
https://www.youtube.com/watch?v=L_Bl9NIBvY8&list=PL0e2Q7qRsIfw2_RrxVkqg4kPEn8m4AnrQ ]
Em 2008 ele dirigiu e coreografou Fela!, que estreou na off Broadway (o circuito semi-alternativo de New York) e, posteriormente, na Broadway, ganhando um segundo prêmio Tony. [Trecho: aqui: https://www.youtube.com/watch?v=lF3l5lEkmjs ]

 

Bill T. Jones na Biblioteca Presidencial Abraham Lincoln em Springfield, Illinois. Foto de Russell Jenkins

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Uma polêmica elucidou como ele operava entre os limites das arte do palco. Tema importante em sua obra foi a aids, doença que em 1987 matou o seu companheiro e vários bailarinos da Bill T. Jones/Arnie Zane Dance Company. Lembro-me do terror que, àquela época, juntava-se a qualquer relação afetiva. A ameaça letal ecoava dentro da gente – tramava desde o justificado uso de profiláticos até a injustificada abstenção de qualquer contato. Hoje pode-se negar a absurda rabugice de quem pretende impor convicções religiosas ou morais através do poder ocupado no estado; naquelas décadas, tal discussão era quase impossível diante dos massivos óbitos e terríveis diagnósticos médicos. Quem quer que houvesse vivido diagnoses do gênero, da loucura ao câncer – entre os quais o filosofo francês Michel Foucault (1926 – 1984) – mandava goela abaixo essa angústia coletiva. O entendimento do limite entre vida e arte como simulacro tornou-se central na obra de Jones. [https://www.youtube.com/watch?v=Onh3udBsDrU ]

Em 1994, Jones estreou Still/ Here (Ainda / Aqui)e levou ao palco a sua vida após ser diagnosticado como HIV positivo. Foi bem acolhido pela grande maioria dos críticos. Mas uma crítica o acusou de ter criado uma obra oportunista que serviria para represar qualquer opinião negativa: Arlene Croce tachou a coreografia de “arte vitimista”, o que provocou indignação por parte das principais figuras na cena cultural norte-americana, entre as quais a intelectual Camille Paglia [https://www.youtube.com/watch?v=A3Y0KXFAJV8 ]
e o dramaturgo/roteirista Tony Kushner (1956 -). Joyce Carol Oates comparou a situação ao julgamento por obscenidade contra o fotógrafo Robert Mapplethorpe (1946 -1989). A polemica extrapolou a dimensão regional. Se pensarmos na ótica da performance, extrapolar, aqui, quis dizer fagocitar a essência da filosofia e da política: a vida.
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Tadeusz Kantor experimentava sobre tais limites desde os anos 60. Lapidar foi uma de suas citações sobre a questão: “O espaço da vida é o espaço da arte; ambos confundem-se, compenetram-se e dividem um destino comum; A ‘quarta parede’ não tem sentido porque a necessidade da obra teatral reside nela própria; o espetáculo acontece não para alguém, mas na presença de alguém; atores não podem fingir uma personagem ou representar um texto; o drama e a vida coincidem na criação de um espetáculo-obra de arte.”
[ De Meu encontro om Tadeusz Kantor: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-meu-encontro-com-tadeusz-kantor/ ]
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Limites entre arte e realidade não se sustentam; tudo depende do contexto e do signo – quer dizer, da gramática – com que ambos são enunciados. Cito dois artigos:

1. “Sempre houve uma competição feroz entre arte e a realidade para atrair o interesse do público: a suspensão da desconfiança é fundamental para que se “entre” no enredo. Enquanto a elitista democracia grega gramatizava a realidade através de sua imitação tragicômica, o pragmatismo romano a expunha da maneira mais crua possível. Isso era ditado pela manipulação da imensa massa populacional da Urbe – e por seus patrícios como fonte de legitimidade.”
[ De A função do urso: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-a-funcao-do-urso/ ]

2. “Para poder dirigir no meio dessa desordem de signos sem necessariamente destruir tradições, elaborei uma escala de evidência social das intensidades interpretativas, com gradações: A primeira parte da escala vai da teórica e impossível ausência total da figura do ator (grau zero de representação), evoluindo para confissão pessoal pública, representação hiper-realista, realista, até o grammelot e a máscara pura, de teatralidade declarada ao máximo (o grau dez).
A segunda parte da escala do vai do grau zero de não representação à esquizofrenia (grau dez “negativo”). Esta inversão de sinal está fora de nossa alçada, por situar-se no terreno da psicopatologia.

Não recuso, nem renuncio, como métodos legítimos de trabalhar um espetáculo, as inflexões propostas pela direção convencional em relação ao texto (coro, jogral, solo, recitação, declamação) e em relação à dicção (ritmo, volume, cor, respiração, sentido, emoção, ideia, diálogo), que têm a ver com a encenação do drama a partir da palavra literária. Nem recuso o respeito estrito a uma dramaturgia preexistente, se assim for mais conveniente. Apenas utilizo também um método pessoal de composição de textos na escrivaninha. Prefiro, enfim, que os textos estejam diretamente ligados à experimentação dramatúrgica feita através da mente e do corpo do ator.”
[De Um modo de ser dramaturg: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-um-modo-de-ser-dramaturg/ ]
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Alena Croce não escreveu uma crítica, mas uma provocação sobre a legitimidade daquela expressão enquanto arte: exatamente a reação que uma performance bem estruturada costuma ocasionar. Exacerbou sua oposição por via de um positivismo bem pensante, em meio ao contexto dramático do que se viveu naquela década. Há trechos emblemáticos do seu artigo, Discussing the indiscutible, aqui:
[https://web.archive.org/web/20171004173234/http://www.commentarymagazine.com/articles/victim-art/]

Suscitará ao leitor boas reflexões, polemicas e construções.

Três fotografias de Robert Mapplethorpe
https://papodehomem.com.br/bom-dia-robert-mapplethorpe/