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Monólogos da caveira VI

Publicado em: 13/09/2021 |

Chá e Cadernos 100.60
Mauri Paroni

Desafio ao primo (sem trabalho) de Beckett

Artista entra no palco. Uma arvore seca ao fundo. Um crânio apoiado num primeiro monte de terra. Artista senta-se num segundo monte de terra, posto diante do primeiro. Enxuga o suor de seu rosto. Derrama um tanto de cachaça na terra e acende uma vela diante de crânio. Extrai de sua bolsa um velho cd player e coloca “ Canto dos Escravos, de Clementina de Jesus, Doca e outros”. Canta.
Pausa. Baixa o cd player, que vira um fundo não menos importante.

Artista:

Ó autor das palavras deste monólogo – sei que és branco – sei que tens bom coração: trago um desafio para ti.
Tenho um sonho para mim.

Quero representar e dançar a música de meus ancestrais de Benim sob uma luz que ilumine bem a temperatura de cor dos meus pigmentos negros, que respeite o ritmo de minha respiração diante do horror a eles perpetrado, que não romantize a excelência dos passos que honraram a humilhação deste meu corpo sob o sol, que se recusou a se atirar ao mar diante do temor de ser devorado pelo marinheiro traficante ignaro de tudo o que se viu, que usou a minha infância sem inocência, que se respeite o timbre de seus cantos a se fazerem arte para além da morte por tortura e dor; que se afunde quem não conseguiu e nem conseguirá felicidade à custa da minha.

 

 

Pausa. Sobe o volume do cd player. Canta. Baixa. Continua.
[
(…)
É quase impossível frear o apetite pela crueldade na representação. O gosto parece frear a sanha de sangue. Parece, somente. Há progressão geométrica da violência nos esportes, na arte, na comunicação de massa, na vida social, até que tudo pareça ficção.
B
A linguagem da violência tende a tornar a ficção atraente, suportável e “verdadeira”, legitimando sua presença na realidade das pessoas. Reality shows, Ratinho e sucedâneos existem somente por isso. Para refletirmos um pouco além do eventual valor artístico ou formal, convém prestar atenção na função que qualquer papel representado no mundo real assume na nossa sociedade.
(…) (*)
]

O convés de um navio negreiro obrigava àquela dança humilhante nas galeras pelo patrão que batia o ritmo a tambor e chicote.

Brancos romantizam. Tu não o faças. Representa o dilema e a revolta: Matemos todos esses nossos traficantes? Se ganharmos, morreremos; se perdermos, morreremos. Se chegarem ingleses, ao mar nos atirarão. Quem guia esta nau? Para onde vamos? Resta esta dança que não representamos, que não se vive em teu teatro, ó autor, que somente nela se vive e se morre no que chamaste de jazz. Que dança é? É movimento purificado de qualquer emoção. É vida em desafio. Do óvulo fecundo em ventre conquistado virá quem lembre viver.

Pausa. Põe uma worksong no toca cd. Continua.

O chicote calado pela worksong – aumentava a produtividade para o senhor de escravos, mas comunicava em código todas as notícias do quilombo. Ensinava rotas de fuga nas Américas do Sul e do Norte. Trazia esperança e um modo de resistir. A religiosidade literária era só aparente. A alma, o soul, aqui estāo. (**)

Pausa. Aumenta a música. Tenta dançar. Não consegue. Imobiliza-se longamente. Abaixa o som. Retoma o seu discurso.

Não há metáfora, não há fantasia. Não há crise no teatro do mundo. Há futuro. Anda, inventa uma luz para pigmentos como os meus. Inventa uma roupa para um corpo como o meu. Inventa comigo. Inventa uma palavra para isso. Inventa uma atuação para mim. Escreve sobre a minha pele – com a minha pele.

Aumenta o Som. Imobiliza-se longamente. Encara o seu público. Tem revolta e esperança nos olhos. Recoloca Clementina de Jesus. Abaixa o som e recomeça a falar.

Eu sei de ti, o’ autor, de teu avô que chegou criança pobre em Amparo. Assustou-se com um preto que virou seu melhor amigo e sócio vendendo fumo de corda pelos trens, que eram três os caixeiros – o terceiro era teu primo que vinha também da Argentina, mas preferiram Amparo.

Por isso lembras de mim; sei que teu professor diplomata perguntou como querias ser artista no meio do horror de ditadura militar, de quando ele te convenceu a desistir da carreira, da África que, teimosamente, viste pelo menos um pouco, que disse estavas no lugar errado, que, no fim do curso, sem família bacana, iria ser mandado como terceiro secretario em Bujumbura. Que tu desististe; que, quando conheceste um riô, poderias muito bem ter conhecido uma outra arte ancestral – arte que ainda não te pertence como a que conheces, que não podias conhecer.

Conheço o teu exílio – como conheces o meu.

Não seu o que se criará de mim, não sei o futuro, não sabemos o futuro, que queremos diferente daquele horror da ditadura racista – qualquer uma o é – de quando te convenceram a não ir para uma África que, refletida em Europa pelo espelho mediterrâneo agora se debruça na dança da viagem para os meus lados.

Escreve o que sabes de mim na ficção que podes escrever no futuro que vem a nós em passos ligeiramente mais velozes que a morte que, um dia, todos encontraremos. Em vida.
Laroyê.

O artista acende duas velas, apagam-se as luzes e, repõe e sobe a música de clementina de jesus e sai de cena.

Pano.

(*) https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-a-funcao-do-urso

(**)Filme aconselhado:
Ancestrais worksong – https://www.youtube.com/watch?v=8zeshN_ummU

Ilustrações

Beckett – Photo from the Nobel Foundation archive.

Samuel Beckett
via lonelylongdistancerunner-deacti

Clementina de Jesus
Madalena Schwartz, Clementina de Jesus
Matriz-negativo
Acervo do Instituto Moreira Salles
Quelé, A Voz da Cor – Biografia de Clementina de Jesus, COSTA, LUANA
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA