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Memória, exercício, conhecimento e acesso

Publicado em: 29/08/2023 |

Chá e Cadernos 200.7
Mauri Paroni

A cognição humana, para o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), passa, necessária e universalmente, por dois filtros: a sensação e o intelecto – e ao mesmo tempo, não há uma coisa sem a outra em tempos separados. Para quem faz teatro, o uso é essencial e resolve muita dúvida que é comum ouvir das interrogações de estudantes que entram no jeito simultâneo de aprender praticado na SP. O nome da nossa biblioteca traz uma lembrança irônica e dramática: Emilio Di Biasi, que faleceu em 2020 aos oitenta e um anos em decorrência do mal de Alzheimer, a doença que cancela a memória e o intelecto. Seu corpo faleceu sem a memória que resta dentro de quem teve a sorte de o conhecer pessoalmente, mas também reside no acesso ao seu acervo – que está na sede da Escola – Ivam Cabral, diretor executivo da SP, bastante próximo a Emilio, possibilitou esse enriquecimento e acesso.

Conheci Emilio em 1980 quando trabalhava como orientador artístico no Teatro Sérgio Cardoso. Eu sonhava em dirigir teatro. Ele era um diretor afirmado, alto astral, culto, de espírito crítico incomum: acompanhava todos os dias o espetáculo dos formandos da EAD (Escola de Arte Dramática). Diretores não faziam isso. Ele havia criado o espetáculo com os seus estudantes. Com ele eu aprendia, ouvia, era incentivado. Décadas depois, observando o que foi incorporado na Biblioteca da SP, títulos, videos, CDs… vi que tive uma formação muito parecida na Itália: Piccolo Teatro, opera, musica. Cinema. Diante das mesinhas do Satyros, já diretor, voltamos a conversar sempre profundamente. Sua dialética era rica e prazerosa.

Ensinava, a quem o ouvia, uma nova relação com o mundo. O problema neurológico que o tirou desta existência foi uma das maiores perdas que o nosso teatro teve nos últimos tempos. Lembrar sua trajetória intelectual e artística é manter o teatro em vida.

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Voltando a Kant: podemos conhecer a existência de alguma coisa se elas forem um objeto sentido e pensado. Elas não existem por si, enquanto conhecimento; precisam de intelecto e sensação para existirem enquanto tal. IA não sente, pode simular, mas é quimérica. Falsa. Isso ajuda a compreendermos que, como artistas de palco, podemos criar em um momento preciso e irrepetível, de uma maneira única: na forma de espetáculos. Um tesouro cultural, enquanto central de produção de conhecimento que experimentamos singularmente, mesmo dentro do ajuntamento de público e elenco – dentro do mesmo espaço de tempo. Cada tostão , cada segundo, cada milímetro da escola é um tesouro, do produtor ao artista. Um centro de produção de saber. De cultura. Um tempo que não se repete e que as vidas que nele estão valem de maneira infinita.

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Ingenuamente nerd, acredito que a experiência pessoal e teatral mais desafiadora possível seja frequentar bibliotecas e deixar-se frequentar por elas. Fazer amizades, conhecer quem nelas trabalha ou elas frequenta. Bibliotecas razoáveis possuem clássicos prontos a virarem teatro. Ali vivem autores como Dostoiévski, por exemplo. Cito esse russo genial por ter tido a sorte de ler seus maiores romances numa biblioteca – o que transformou a experiência da biblioteca num ato pessoal de contrabando e de observação das coisas do mundo pelo lado b – aquele lado que não conseguimos entender. Aquele lado que sempre traz angústias por quem nos está próximo; aquele lado que pode, por sua intimidade inconfessável , trazer a felicidade do desafio do entendimento do outro de si. Qualquer biblioteca acolhe a severidade de não se entender o que se lê , o que se intelecta, o que se sente. Como descreve a difícil filosofia de Kant. Acrescente-se, pois, a igualmente difícil compreensão das personagens de Dostoiévski (1821-1881) enquanto almas humanas e alteridades.

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Filosofia através das personagens de Fiódor Dostoiévski. A memória que grita de seus grandes incômodos nasceu numa terrível encenação para a sua execução por alta traição – tentativa de derrubar o Czar. Trata-se do inverso do autor de gabinete. No presumível último minuto de vida, foi retirado da morte pela graça de Nicolau I – Romanov. Teve quatro anos de trabalho forçado na Sibéria, onde não pode escrever. Refez a sua vida pela reconstrução do subsolo.

A execução foi uma encenação política conhecida como a falsa execução do Círculo Petrashevski. A arte de Dostoiévski virou, paradoxalmente, a essência escrita da alma humana real, ainda que imaterial, impossível de ser imaginada, mas possível de ser colhida. Personagens perfeitas enquanto personagens, por quanto imperfeita seja a essência humana. Perdoe-se a frase de efeito. Tento remediá-la lembrando que o Príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, de ”O Idiota”. Sofre da síndrome de personalidade na epilepsia do lobo temporal (de que Fyodor também sofria). Constrói, então, uma figura de compaixão, sacrifício e supressão do eu. Nos últimos romances, há uma fila de personagens, ouso arriscar, reflexo da imagem vista diariamente na infância pelo filho de médico de pobres moscovitas que foi a criança Fyodor Dostoevsky. Protagonista foi a miserável condição social da gente condenada pela iniquidade das sociedades exploradas pelas autocracias e plutocracias.

Sempre lembrando tratar aqui de experiências teatrais, merece menção destacada a figura de Aglaia Lepántchina. De grande beleza, tinha alto dote naquela sociedade de servidão patriarcal como a russa do século XIX. Sentindo-se desprezada, ela humilhava sistematicamente os homens que a cercavam e cortejavam. Por que esse destaque? Porque Aglaia era também o nome de fantasia de uma das praticantes de dominação que ocasionalmente integraram o elenco de Farsas Libertinas (2005), também ocasionalmente apresentado ao publico num clube SM fundamental para a realização artística da do espetáculo. Quando havia Agkaia, um ator se metia a atrevido com ela. Aglaia, numa replica memorável, surrou-o de modo a faze-lo agarrar-se à ficção para implorar perdão verdadeiro num terreno ficcional. A performance perfeita, Dostoiévski presente, arte de consequência e testemunho imediato.

Uma das marcas que ensinou-me a trabalhar com o controle responsável temeridade. Paixão e precisão. Psicologia. Horror à morte. Amor à ficção e à vida. E consciência de quem se degrada. Há muitas personagens monumentais nesse universo. Feixes de ideias – quando não forem encenados. Aqui fala o contrabandista-diretor contumaz: não são o fluxo vital que procuro no palco e performances em locais reais, de cenografia mental. Tento relatar nas digressões a seguir.

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Com o diretor inglês Graham Eatough, com quem trabalhei muito na Companhia Suspect Culture, trabalhava com os atores participantes projetando sobre o pico uma cartografia imaginária de gerações femininas passadas.

– Onde nasceu sua mãe?

O participante ia ao lugar correspondente ao seu mapa imaginário.

– A avó materna?

– A bisavó?

E assim por mais dez gerações maternas.

Não somente:

– O que fazia como trabalho físico todos os dias?

Quem participava respondia repetindo o trabalho em 5 movimentos físicos . Era uma coreografia da memória. Até avós e bisavós, talvez bastante reais. Depois, viravam imaginários. Além do lugar de nascimento, sobrevinha a imaginação, a intuição, a manifestação, o acesso ao tempo. O passado transformava o participante em futuro. Viajava-se física e mentalmente por doze gerações atrás e quatro mil e passa ascendentes.

Teatro da cultura pessoal, da geografia emocional, do acesso ao ancestral. Dos negros, orientais, indígenas, brancos. Procurar conhecer a cultura do outro era obrigatório: sem ela no imaginário, era impossível continuar. Era dança porque o gesto era repetido em movimentos rítmicos. Eu amava guiar tal exercício, sentia viva a função de diretor e fornecedor da ancestralidade, real e imaginária. Esse exercício suplantava a diferença entre África, Europa, Oriente, Américas… Era um exercício dramatúrgico que revelava o fundo da mente de cada participante, sua presumível origem, de sua angústia latente, criava linguagem e equilíbrio grupal, acesso e memória ao mesmo tempo, podia ser feito com qualquer pessoa em qualquer lugar. Era a fuga da “ameba” da “expressão corporal” da “oficina teatral”. Era memória de acesso. Numa visão mais em sentido lato, era como a mímica facilitadora das compras e vendas na Babel que foi a Via da Seda (OrienteOcidente). Era, em sentido estrito, como um exercício de coro existencial no espaço dos povos.

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Últimas digressões: Num exercício teatral, uma antepassada materna pode ter sido uma escravizada que escrevia. Diz-se que, no século IV a.C., uma carta de uma jovem escravizada viu incisa numa lâmina de chumbo enterrada. A jovem sabia escrever. Ou a artista a testemunhou. “Lesis escreve estas palavras para (…) sua mãe para que não se esqueçam de forma alguma que está morrendo (…) Estou à mercê de um homem maligno; sou chicoteado até a morte, sou amarrado e abusado cada vez mais, cada vez mais”. A lâmina foi encontrada em 1972.

Além do exercício teatral, uma terrível realidade histórica mais recente calou as vozes pretas no oceano e no cais do Valongo – vozes que hoje sobrevivem na oralidade ancestral da arte dos morros, no lundu e no samba, na dança, na poesia, nas petições de Luís Gama, nos Orixás, nas lendas e nomes indígenas. Porque não, também na luta infinita do Sublime e precisa do Belo. Pronto. Fui de Dostoiévski a Kant, ao improvável escravizado grego que escreve, à terrível verdade dos ossos esquecidos no sinistro Cais do Valongo lembrados pelo título de patrimônio da humanidade. Todo esse passeio – que se quer didático – para lembrar porque espetáculo mesmo é arte, é coisa, tem causa e consequência, testemunho e memória; que vai além do prazer/desprazer – não os desprezando. Arte, trabalho é espetáculo; não são a estupidez “influencer”, caras e bocas, séries televisivas, espetáculos inacessíveis e esvaziadas palavras de ordem.