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Sobre Existências

Publicado em: 22/03/2021 |

Sobre existências
 
Chá e Cadernos, 100.34
Mauri Paroni
 
Esta tribuna, hoje, traz excelente oportunidade para uma voz que condiciona atos presentes. Escrevo, in memoriam, este diário fictício – ao mesmo tempo crível e real – de meu amigo Otavio Frias Filho (1957 – 2018). É, emocionalmente, muito, muito difícil.
 
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Colegas na Faculdade de Direito da USP, Otavio instilou-me coragem para não virar “ad[e]vogado” e decidir-me de vez a ser um artista de teatro. Foi numa madrugada semi alcoólica, em que se pensou – e se manuscreveu e atuou – um monologo em que  Robespierre era possuído pelo mito do maldoso senhor Vlad Tepes Dracul [O Conde Drácula] Estávamos em Ubatuba, 1977, longe da Transilvânia romena de Ceausescu – Em pausa noturna de um furtivo congresso, no movimento estudantil, pouco tempo depois do assassinato de  outro Vladimir, o Herzog. Entendi que era  fundamental ter a coragem de ser libertário. Estavam naquele congresso os mais velhos – lembro do sociólogo Andrezinho Singer, do jornalista Marcelo Coelho, do tradutor Marcos Renaux, pessoas da  qual era excitante aprender, eu, um italianinho do Cambuci. Aquilo  modificou o traçado do meu futuro. Otavio era – é, onde quer que esteja – amigo mesmo. É amigo quem muda a vida da gente e vira parte desta.
 
Prossigo, por  parágrafos esparsos, meio pascalianos, ao redor de um tema, como faço com os artigos que escrevo, livre de roupa justa, meio escondido, underground, discreto, outsider zeloso. Não-a[d]evogado”, peço  vênia para continuar o que pode ser visto como egolatria: falar em primeira pessoa. Obrigado. Prefiro defini-la como manifestação de um individuo programado para uma função que a existência destinou diversamente; programa de cis aculturado que evoluiu para um libertarismo meio irreverente e militante. Até 1999, cumpri uma carreira como diretor e dramaturgista na Itália a  e Europa, usa, Japão. No Brasil, houve sempre animosidade. (diz um meu amigo o Candomblé que tenho Exu [Laroyê] na  cabeça e não poderia ser diferente.)
 
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Reencontrei meu primeiro afeto, com quem estou até hoje – e tive muitas, muitas dificuldades de readaptação cultural onde nasci e estudei regularmente em três direções: direito, filosofia e ECA; Achava, nos dois primeiros anos, fossem estas as dificuldades. Entrementes… Mensageira de morte, a parca convidou-me a tomar uns cafezinhos: Diagnósticos de esclerose múltipla; tumor no mediastino –  células  grandes B estágio 3 A; 95 por cento das coronárias avariadas ( a químio) e dos cigarros. Um alfabeto não desejado, que, acreditei, escreveria meu nome num iminente ataúde; Um cafezinho após o outro., continuo a estrada, aprendendo a tolerar o ser diferente que a vida nos torna: cadeira  de rodas, em dois anos depois do primeiro café.
 
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A SP Escola de Teatro  é, também, espaço privilegiado  de produção de cultura porque território intelectual que estimula a habilidade de assumir múltiplas funções; e assim é comigo. Colaboro na pedagogia, na extensão cultural, em projetos especiais e  na biblioteca; Assino artigos e podcast, todos no site da escola, além de outras atividades; curta metragens, escrevo nuvens narrativas  e performáticas  sistemática e diariamente, na consciência de presenciarmos  no seio de uma transição estética e histórica vertiginosa, não importante em qual país estamos; aula inaugural, traduções de textos e ensaios, espetáculos, palestras, mediações, avaliações. 
 
Isso quer dizer ACESSO;  a Escola forneceu-me acesso: com ele, a atividade didática e artística tornou-se quotidiana, consistente, PERMANENTE; basta verificar que a coluna chá  e  cadernos tem 600 páginas publicadas. Jamais imaginei chegar a este ponto. Poderia ser um diretor de teatro a cultivar as decorrentes veleidades; mas, pontuado pela morte – como nós todos – se não houvesse essa diferente escola do diverso, poderia escrever eternamente, sem a preocupação de perder tempo.
 
Ensino. Aprendo. Uma dialética mediterrânea (Com Escola de Arte Dramática de Milão e  SP Escola de Teatro), pesquisei e aprendi que o Mediterrâneo é africano por metade, basta ver no mapa), aquela de Albert Camus, ente o sol e a sociedade dos  homens. Um sentido de existência. Exemplo camusiano: a última vez que me avistei com minha mãe foi, por escolha, no pátio da sede Brás, um canto bachelardiano preferido – como generosamente, em seu funeral, lembrou-me Ivam Cabral. Canto que foi da Escola Normal Padre Anchieta, onde ela, estudante “normalista”  formou-se antes do casamento a que estavam fadadas as mulheres sua geração que podiam estudar. Ali conheceu meu pai, um daqueles jovens pobres do Brás que paqueravam as normalistas. Diplomou-se bibliotecária.
 
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A SP é um lugar de acesso; De quem aqui encontro – estudantes, faxineir()s, haitian()s, tenho acesso -, aprendo, desde um francês maravilhosamente áulico ao exemplo de como colocar-me na pluralidade rara que acontece na instituição. Colocar-se é ato de acesso, de cidadania; é ato cultural relevante que constrói uma cultura de paz.
 
Num momento histórico em predominância de ignorância elaborativa, aquela que usa a informação excessiva para cegar, a SP provê acesso à cultura crítica e pluralista via tempo físico, fomento aos seus estudantes, e formadores coordenados num projeto didático responsável. Enfim, provê acesso a uma dialética cultural de paz para sermos lembrados em futuro.
 
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Por falar em futuro: já que todos morreremos um dia: para quem fomos, somos e seremos artistas, para quem faremos arte? Como há milênios, querendo ou não, faremos arte para pessoas comuns, para quem nos escolhe.  A maioria que, na pandemia, deixa de ser “comum”, aquelas pessoas que constroem casas relações – às vezes, famílias que criam descendentes desejosos de evitar serem quem são, por medo de uma autodestruição via consumo de tudo  e de si. 
 
No presente desta pandemia, delineia-se a diferença. Os “comuns” não mais sabem onde alocar o que sobra de seus – ergo, nossos – desejos originais, aqueles que acabam jogando fogo às paixões. Promove-se uma passageira bruxaria “santa” a incinerar uma inquisição eternamente moribunda.
 
Somente a razão – ratio – de que dispomos não consegue gerir tais sombras. Talvez o possam fazer a linguagem, e o fato de tudo virar conceito na virtualidade de qualquer eventual relacionamento de net, quase como conversar ou fazer-se ouvir por um psicanalista. Há quem afirme que, se sombras não interagem no real, acabam voltando na forma de destino.
 
Está por averiguar-se, com a nossa arte.
 
 
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Mauricio Paroni  é  diretor e dramaturgo, coordenador da Biblioteca da SP Escola de Teatro. Foi professor residente da Royal Scottish Academy of Music and Drama de Glasgow, Reino Unido, e da Volda Hogschule, Noruega. Recebeu o prêmio “il Contemporaneo” de melhor direção, em 1993, pelo seu trabalho em “Oplà siamo vivi”.