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Carta Personalíssima a jovens [poetas] – política I – anos 80

Publicado em: 16/08/2022 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 200.0

Este é o duocentésimo artigo de um projeto de produção de material pedagógico de conhecimento teatral adquirido durante uma inteira existência em palcos, estantes e câmaras – somente possível graças à SP Escola de Teatro e seus colaboradores.

Gostaria, jovens [poetas], de mencionar um pouco das mais de centena de diálogos vividos por anos de palco e espaços cênicos urbanos. Qualquer palavra dita em qualquer lugar destinado à cena é palavra que tem função política; esse sempre foi um princípio que percebi nos anos 80 já narrado na carta precedente (https://www.spescoladeteatro.org.br/coluna/cartas-personalissimas-para-jovens-poetas-preambulo-dos-anos-80 ). Experimentei-os com colegas na escola daqueles anos – experimentos quando estudante são uma outra língua; reafirmo-os hoje, ao saber do bárbaro atentado ao escritor e poeta Salman Rushdie; nos anos 90 meu professor de história da dramaturgia, o crítico e historiador Ettore Capriolo, foi esfaqueado por tê-lo traduzido ao Italiano – felizmente sobreviveu.

Jovens [poetas], lembrem-se: conscientemente vosso ou não, tudo vira política, sobretudo na virtualidade da internet, será sempre um risco; se não o houver, não haverá poesia. E sempre haverá gente perigosa nas encruzilhadas: abram olhos e ouvidos. É estrutura, não contingência. É também um clichê.

Um exemplo atual: Donald Trump. Não é sem projeto de poder que ele sequestra documentos reais sobre armas nucleares ou que o seu suposto rival atômico invada vizinhos e ameace conflitos nucleares; são delinquentes sufragados pelo éter, eventualmente pelas urnas. Ajunte-se líderes criminosos ungidos por decretos em nome da religião em mistura confusional com o Estado. Fundamentalistas, independente do fanatismo privado e íntimo, demonizam a poesia. Afiam as suas lâminas eternizadas na pedra de lima de um Estado autocrático – sem lei, por coletivo anticrítico. Nos anos 80, eram radicais; hoje, desfazem condenações. Mas estas se alojam na mente de muita gente crédula. Os anos passam, a memória se enfraquece, pessoas vão vingar decretos religiosos. Assim, as ditaduras encontram alianças na morte das palavras, da linguagem, na distribuição de armamentos. Cuidado, jovens [poetas]. As palavras, se não se pratica uma cultura crítica, impõem perigos políticos.

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Espetáculo feito misturando artistas e técnicas brasileiras – ameríndias e africanas – e com as eurasianas [como as chamariam o encenador Eugenio Barba e ou o antropólogo e acadêmico do teatro Nicola Savarese], “Aqui Ninguém é Inocente”
(https://issuu.com/spescoladeteatro/docs/named58fc4/124
https://www.alamedaeditorial.com.br/livro/aqui-ninguem-e-inocente-) trazia como subtítulo “um intelectual periférico” – palavra que estava na moda, periférico. Nasce no centro da geleia geral do teatro, a Praça Roosevelt, roda festivais e praças do interior. A sua itinerância era fundamental. Transformava o teatro em rua.
Não há pretensão fílmica, apesar de documental, mas pode servir para se ter uma ideia política. Nasce no Espaço dos Satyros/praça Roosevelt e centro.
https://www.youtube.com/watch?v=SDie-tpiK7w&t=69s
https://www.youtube.com/watch?v=Rg5N8jkVNkQ
https://www.youtube.com/watch?v=_HuSqLeiy_M&t=33s
https://www.youtube.com/watch?v=Sr_ngGY9d48&t=27s
https://www.youtube.com/watch?v=c4ZrDZoq354&t=58s
https://www.youtube.com/watch?v=Xo0TGr7KifI
https://www.youtube.com/watch?v=rnRDmn0DIOM

Em replica numa escola pública matinal da periferia da cidade, a sedizente atriz Gilvanka declarava utilizar seu “método artístico/político” (sic) enquanto baixava a calcinha sem expor suas partes pudendas. Fazia isso em seu círculo, trabalho exaustivo de dramaturgia de cena que pratiquei com o belga Thierry Salmon (ler aqui os artigos na universidade federal de Uberlândia:
(https://seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/45780), e com os atores/ artistas criadores Alexandre Magno, Fabio Marcoff , Fernanda Moura, Giampaolo Köhler, Matheus Parizi, Renato Rosati, Roberto Alencar, Vanderlei Bernardino, Voltaire de Souza (Marcelo Coelho), Ziza Brisola. Tenho a íntima intuição de que fomos escolhidos pelo fomento por excelência da redação da linguagem do projeto. Mas a benção foi o subtítulo periférico. Isso é perceptível via política de uma prática cultural construída na resistência e interrogação às personagens que estavam dentro do círculo. Ou numa ditadura que odiava, como todas as ditaduras, as culturas da e nas periferias. Muita gente lutou e deu a vida – ainda dá – pela linguagem. E muito se tenta destruí-las. Há sim o que se pratica a crítica. A citada redação também nos colocou em alguns eventos nos CEUs, os Centros Educacionais Unificados, que reuniam num mesmo espaço escola, esporte, lazer e cultura na periferia. Continuo a narrar o dia memorável. Havia, naturalmente contradições, jovem [poeta]. Por mais atraente que fosse a linguagem projetual, a mistura dela com a realidade crua realizou o projeto plenamente.

No dia em que chegamos ao CEU, a aula introdutória à “peça” era uma sonora bronca à plateia de estudantes dizendo que “iriam ver teatro de verdade, e que era terminantemente proibido dirigir-se , conversar, fazer barulho”. Ali “era teatro e não futebol.” (sic). Justamente o que fazíamos: instar a plateia a provocar as personagens que se encontrassem dentro do círculo ao soar de um gongo, daqueles iguais a uma luta de boxe. Um embate. O espetáculo terminava com uma revolta dos atores, que revelavam a pouca distância que a figura das personagens vinha com a epifania pessoal do elenco.

No final da “peça”, em meio à agitação divertida da plateia, ecoou um urro no fundão: “ a Gilvanda ‘tá indo embora!!!!! Ela vai embora, vamos atrás dela!”. Ao sair de seu camarim, a sua intérprete, a atriz Ziza Brisola explicava “ olha, é somente teatro, eu sou somente uma atriz que representa…” – diante de adolescentes – “só atriz!!!” (sic), dois PMs e uma professora desesperada pela escolha feita pelo título sofisticado do “intelectual periférico”.

Essa réplica particularmente foi a mais típica daquele espetáculo contado no livro “Aqui Ninguém é Inocente” (disponível fisicamente aqui: https://spescoladeteatro.bnweb.org/scripts/bnportal/bnportal.exe/index em biblioteca) e pelas nossas memórias possíveis. Na época, um crítico qualificou-o como “espetáculo estranho do Paroni” (…) “aquilo não é lá muito teatro” (sic); jovem [poeta], foi o maior elogio recebido de quem quis criticar e renovar. É parte da coisa.

Quem entrasse no círculo que delimitava a área de ação textual virava poeta; fora dele, também o público virava poeta; naquele dialogo, autoria se dissolvia onde quer que o espetáculo se realizasse; a política virava poesia; uma “autoridade” era vaiada; certa vez, em São Carlos, o público viveu uma crise coletiva de identidade: pessoas gritaram conhecer gente dentro voo Tam acidentado em Congonhas durante a réplica; muitos celulares estavam acesos; o espetáculo terminou, mas a desgraça foi gramatizada como drama pela realidade comunicada virtualmente; era um imperioso fluxo vital de desgraça; nosso texto originário foi interrompido por uma tragédia real; o respeito moldou o trabalho de meses no momento em que abreviou-se a réplica e parou-se de fingir. Fragmentação da vida. A fragmentação da pandemia, hoje, manifesta a memória política daqueles anos; é a defesa que poetas daquela noite trágica têm contra as ditaduras disseminadas pela virtualidade .

Tudo junto, sempre, jovens [poetas]. A linguagem fundamental é a poesia criada no fluxo da vida. A palavra é uma semente preciosa que fecunda os ouvidos das pessoas. Ela fecunda um corpo. Jovens [poetas], estejam atentos à vida, à poesia do fluxo vital e à ficção cênica. São a mesma coisa. Em poesia, periferia é centro. É política. Esta passagem de memória vivida pode ser juntada às vossas, para que sirva como estímulo e reflexão.