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Antiga performance contemporânea

Publicado em: 12/02/2020 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.20

Pulsional e radical, a linguagem performática caminha sobre o que chamo de “tapete contextual”, diga-se, um fundo de cena que utiliza o contexto onde ela ocorre de modo a redefini-lo. Ela desenvolve-se via rupturas de estratificações caducas, econômicas, raciais, sexuais, sociais, políticas, policiais, ritualísticas, religiosas, hospitalares, funerárias. Sua forma de diálogo é equilibrar-se nas fronteiras das contradições. Expressão da crise da identidade cênica do teatro contemporaneo, a performance é uma atitude de representação que serve para interação entre os humanos e o mundo fenomênico.

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Uluru, no Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta, Território do Norte, Patrimônio Mundial pela UNESCO e local sagrado para os aborígenes

Uluru, no Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta, Território do Norte, Patrimônio Mundial pela UNESCO e local sagrado para os aborígenes

Foto de Nambassa Trust e Peter Terry

A performance pode utilizar o contexto da convenção, mas prefere outros lugares e situações para imergir-se no quotidiano do real. Por isso tende a ser mais radical ou formalmente polêmica. Do ponto de vista da eficácia, é notavelmente muito direta.

Cada performance define o que quer seja experimentado no exato período de tempo de sua representação.

Portanto, em nada ajuda o estabelecimento de uma dicotomia rival desta com as formas cênicas próprias da narratividade; essa diversidade dual pode servir somente enquanto didática. Serve mais a procura de uma diversidade plural que incentive a manifestação da sacralidade da existência através da recusa consciente à exibição narcisista do ego a que nossa contemporaneidade parece relegada.

Ao emular o real na redefinição do contexto em que está inserida, muitos artistas ingenuamente manipulam a própria preparação intelectual a ponto de promover fanatismo religioso ou político: o que lhes conferiria a “genuinidade” que a performatividade aparentemente fornece. Tal apropriação indébita do pós-dramático leva a um misticismo estético-empregatício construído em postações de conservadorismo reacionário ou de progressismo vazio, dado a saturação de qualquer legitimidade expressiva ou política de que se serve. Além de afastar-se do público – este jamais se deixa enganar, desde… sempre. Há milênios, este conhece desde arenas da Roma Antiga, autos-de-fé e afins até os rituais aborígenes e religiosos ancestrais.

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Chefe Aborígene de Bathurst Island que morreu de medo em Darwin quando viu o carro a motor pela primeira vez

Fotografias pessoal de C L A Abbott durante seu mandato como Administrador do Território do Norte – Data: 1939

Fonte Wikipedia

[Esse artigo detalha bem a história dessa construção de linguagem:

https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-fluxo-vital-passado-e-futuro/

Quando jogadores comemoram gols com gestos forjados pelo mainstream marketing, objetificam-se como um capacete de motoqueiro vira máscara num latrocínio, ou um moralizador comete crimes de colarinho branco; trilham o percurso obrigatório do preconceito. Agravam o pior da sociedade que presumivelmente fingem transformar. Ou conservar. Trabalham a distopia sexista, racista, genética; uma barbárie performática que inverte o sinal civilizatório.

Ainda que esses casos extrapolem a especificidade do âmbito performático, todo criador de performances faz bem em pensar nas consequências factuais de seu operato; é fundamental que conheça muito bem a estética mais convencional, porque será com esse filtro que ele será lido pelo publico.

Num espetáculo itinerante, por exemplo, o público tenderá a “defender-se” numa postação onde haja clara separação entre plateia e palco. Havendo essa participação física na ação, o receio da própria exposição será o que o moverá; quase nunca o fará a ação “pensada” pelos criadores do espetáculo – tal publico jamais dispõe do mesmo tempo de preparação que os artistas tiveram para construir e metabolizar o trabalho artístico.

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Sugiro uma visita, ainda que teórica, a obras criativas de artistas como Joseph Beuys (1921 – 1986), Laurie Anderson (1947 – ), Marina Abramovič (1946 – ), o Grupo Fluxus, Allan Kaprow (1927-2006), Renato Cohen (1956 – 2003), e muitos outros “mestiços” como o próprio Bill T. Jones (1952 – ), Luis Roberto Galizia (1951 – 1985), Cassio Diniz Santiago e Elisa Band.

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Como um diretor visto como “meio performático”, repensei o que vivia no teatro através de várias experiências diretas com Tadeusz Kantor (Um dos inventores do happening).

https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-meu-encontro-com-tadeusz-kantor/

Outra experiência foi particularmente definitiva em meu começo profissional: a pequena companhia italiana da qual era diretor no CRT (Centro di ricerca per il teatro di Milano) foi convidada a uma residência e apresentação no festival de Pontedera, Itália, na época dirigido por Roberto Baci, que muito atuou no Brasil.

Fomos alocados numa villa (mansão) semiabandonada nos arredores da cidade. Tínhamos o segundo andar do edifício à nossa disposição. Tudo ali era ocidental: brioches, panetones, café com leite matinal; preparávamos almoço e jantar com pasta, arroz, polenta, peixe. Vinho e água.

Faziam um pão diferente e muito bom no primeiro andar. Ali alocava um grupo de homens que vivia no deserto do Saara, creio entre o Chade e a Algéria. Não falavam meia palavra de inglês ou francês. Tinham um intérprete para o trabalho; de noite, para o nosso convívio, nenhum. Não se conseguia falar. Aventuramo-nos com alguns deles a trocarmos alimentos e sons guturais.

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Homem tocando um didjeridu.

Este ficheiro foi inicialmente carregado por Mombas em Wikipédia em inglês – Transferido de en.wikipedia para a wiki Commons.

Na noite seguinte, a apresentação daquele grupo consistia num ritual noturno de cinco horas que lembrava uma mistura de candomblé a jaculatórias muçulmanas; previa o sacrifício de um animal – coisa tida em segredo, pois as associações de defesa animal jamais o teriam permitido. Além disso, os “espectadores” deveriam provar o sangue daquele animal por ingestão mínima ou fazer uma inscrição sanguínea no braço… o sangue do animal como “adorno”, ou benção divina. A plateia diminuiu significativamente. O local era ermo. Muitos de nós vagaram pela madrugada no bosque até o amanhecer. Não era qualquer um que conseguia fazer parte daquela plateia. O ritual, desenvolvido quiçá por milênios nas noites geladas de um deserto escaldante por humanos que mal conheciam a escrita, contaminara-se com descolados do teatro “de pesquisa”, entre enfeitiçados rituais e horrorizados defensores de animais. Estes caminhavam, apavorados, naquele bosque úmido da Itália Central. Acredito que os homens do deserto também estavam apavorados conosco.

Os batimentos cardíacos dispararam. As ideias atingiram uma velocidade vertiginosa. Não se sabia o que acontecia entre emoção e sentimento. Era um vórtice poético que, sim, poderia coligar-se ao ditirambo de uma real festa dionisíaca pré-ateniense; ou a um ritual inaceitável pelo inconsciente. Havia cantos ancestrais transmitidos via exclusivamente oral. Certamente havia muita magia e poesia naquilo.

Intuí que nos fosse recomendado gratidão e empatia por um animal que teve a vida sacrificada por uma manifestação humana. Era uma representação de outra dimensão da longa história que alguém chama de “teatro performático” no Ocidente. Tempo, valores estéticos, éticos e logica mecânica foram virados e revirados naquelas cinco horas.

Parecia, mas não era, um outro planeta: era o nosso, além do tempo. Havia tudo o que está presente no chamado “teatro” (do grego Theatron – “de onde se vê”): gramática, sincronia, ritmo, voz, olhar, corpo, representação. Não recusava a performance, a narração ou a tragédia, embora não possa dizer haver assistido a ama tragédia antiga.

[Aqui, o podcast sobre tragédia em mais de uma língua do mediterrâneo https://spescoladeteatro.org.br/audios/grecia-ii-uma.palavra-mediterranea.mp3 ;

Este, em grego antigo https://spescoladeteatro.org.br/audios/grecia-I-o-som-do-grego-antigo.mp3 ]

Era Ocidente, era África, era pré-trágico, era pré-comico, se utilizado o parâmetro da mimese da realidade, teoricamente estruturado por Aristóteles e estetas posteriores ao século V a. C. Completo esse exemplo destacando um dos tantos artigos que escrevi sobre o tema: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-a-funcao-do-urso/

Até esta publicação, relatavo a poucos essa experiência-modelo de como vejo a performance. São afirmações bastante apropriadas a discussões e a alguma polêmica: convido o leitor, se preferir, pode entrar em contato direto comigo. Basta encaminhar-me um e mail.