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Papo com Paroni | Fluxo vital, passado e futuro

Publicado em: 03/03/2017 |

Mauricio Paroni, especial para a SP Escola de Teatro
 
O binômio fluxo da vida/arte performática sempre correu paralelo à obsessão aristotélica plurimilenar arte/mimese (imitação) da realidade. Por volta do final do século XIX, esse edifício conceitual teve a sua construção finalmente completa. Tinha mais muletas que membros do próprio corpo – a fotografia pareceu o fim da evolução do retrato; atores do kabuki suicidaram-se diante da “concorrência” com o cinema; o cromatismo de Wagner estancou a evolução inventiva da harmonia tonal; o surgimento da luz elétrica possibilitou ilusões cenográficas e luminosas surpreendentes e a percepção do público mudou. Tudo aquilo havia livrado a humanidade do terror da noite: acabou com o fundamento do medo infantil do escuro – com pesados danos à “inocência”. Aos poucos, a obra de arte perdeu a sua aura salvadora e o seu papel catártico no Ocidente.
 
Nesse mesmo percurso evolutivo, o estoico grego Posidônio (135-50 a.C.) conceituou uma força motriz emanada do Sol para todas as criaturas vivas. Em muitas filosofias orientais, os Ki são as energias fundamentais do universo, o que inclui a natureza e a mente humana. Entre os séculos XIX e XX, o filósofo francês Henry Bergson (1859 -1941) elaborou a ideia do impulso vital: o homem evoluiu numa espiral ascendente irresistível, o que faz de sua existência uma criação também estética (*). No Brasil, desabrocha-se a anarquia do gaúcho Qorpo Santo (1829 – 1883) (**), antes mesmo da Europa de Alfred Jarry (1873-1907) (***) e demais correntes antinaturalistas embarcadas para o Oriente “ocidental”. Leia-se: Beckett, Brecht, surrealistas, formalistas e afins. Os dadaístas seguiram a ideia de um fluxo da existência inseparável da obra de arte. Praticaram a fusão desta com o seu criador. 
 
Foi a desconstrução entrópica do teatro burguês.
 
***
 
Há muitas encruzilhadas entre o Oriente e Aristóteles, que reencontrou-se com a Europa também via Averróis (1126-1198). Mas desencontrou-se também: os contadores de estórias árabes não citam os seus autores por considera-las serem a vida em si. (ver https://www.spescoladeteatro.org.br/secoes-sp/ver-papo-com-paroni.php?id=3219). Além disso, não as concebem por meio de uma “edição” espaço-temporal como aquela sistematizada pelos gregos. Na verdade, a formalização das três unidades remonta ao século XVI, quando da tradução da Arte Poética aristotélica para o latim, em 1536. A “invenção” das três unidades está nas teorias de Lodovico Castelvetro (1505-1571) ou nas de seu contemporâneo Giambattista Giraldi Cinzio (1504-1576) – este, nada menos que o criador, em Ferrara, da trama de Otello. Aquele mesmo, o de Shakespeare (1564-1616).
 
Aristóteles pensou muitas regras estéticas do teatro de seu tempo para depois ser interpretado como autor de metodologias normativas entre elas – as famosas três unidades. Quais seriam elas?
 
1. Unidade de lugar – as personagens agiriam ou narrariam eventos que acontecidos em um único local;
 
2. Unidade de tempo – a interpretação mais comum desta disposição foi a de que a ação deve ocorrer em um único dia, do amanhecer ao anoitecer;
 
3. Unidade de ação – incluir tudo numa única ação e excluir as subtramas ou desenvolvimentos posteriores da mesma história.
 
Mesmo todos os que quebraram essa sistematização moldaram o fluir do tempo segundo certas conveniências da funcionalidade teatral. Somente a técnica do hiper-realismo dos anos 1960/80, chamada slice of life (fatia de vida), estabeleceu a representação por sequências aparentemente arbitrárias de eventos na vida de uma personagem sem obedecer à tríade convencional “desenvolvimento, conflito e exposição” da trama. 
 
***
 
Em sua formula particular, o inglês Harold Pinter (1930-2008) (https://www.spescoladeteatro.org.br/secoes-sp/ver-papo-com-paroni.php?id=3254) “tranca” as personagens dentro do espaço fechado da quarta parede (****), como uma sala ou um quarto – em suma, o espaço privado burguês – e espera que eles reajam entre si. A essa espera nós assistimos. É como o tempo “natural” e sem edições aparentes. O que nos leva a ter a impressão de assistirmos à própria vida, mas é altíssima ficção. Aquelas personagens necessariamente não falam. Simplesmente ali estão. Pausam. Leem tabloides. Balbuciam. Entregam-se a longos monólogos – nem todos ligados à trama. Mais se esquecem que se recordam. Criam máfias familiares. Acender um cigarro significa uma ameaça letal. A incomunicabilidade os massacra. Silenciam.
 
Algumas montagens “conferem sentido” externo àquelas falas e atitudes. Uma delas chegou a aplicar bigodes e narizes de palhaçaria a personagens (pobres palhaços…!). São operações estéticas pseudointelectuais onde a direção nivela as particularidades de cada tipo de teatro, empobrecendo-as. Mas isso não é privilégio de artistas pretensiosos. Até Luchino Visconti (1906-1976), em sua encenação de O Monta Cargas, cometeu um erro similar ao transferir o encontro letal de Ben e Gus de um claustrofóbico porão para um arejado ringue de box. Foi o maior fiasco da sua carreira teatral como diretor. 
 
***
 
Fatos prosaicos como esses são pesadelos do espetáculo do nosso tempo. Cada época tem os seus. Antes, foi a padraria que proibia o teatro durante a quaresma – período de fome para os atores giróvagos, que trabalhavam ao preço de refeição por dia. Algo como a permuta de hoje.
 
Muito menos prosaico é o íncubo de assistir ao Big Brother e “presenciar” um jantar-para-tentar-seduzir-uma-pessoa.  O jantar será fake-news, assim como tudo o que acontecer em consequência àquilo.  O programa propina aquela presepada como fato real e ao vivo, enquanto requer a atenção ficcional do publico. Não suspende a sua desconfiança (*****); do contrário, oferece entretenimento corrompido pela presunção de realidade. E não vai faltar paladino da “verdade” para denunciar as fake-news ou a mídia.
 
Essa incongruência não é nova, como o surgimento do Big Brother faz crer… até pelo clima criado com a associação do programa ao nome da personagem – fictícia – do romance 1984, do britânico George Orwell (1903-1950). Nele, cada indivíduo é continuamente monitorado pelas autoridades. Será o autocrata Big Brother uma pessoa real ou apenas um símbolo criado pelo poder usurpado e constituído numa ditadura? A questão jamais é respondida claramente.
 
Desde sempre, condicionamentos para a aceitação de jogos de poder são inoculados nas massas populares por gestores da res publica. É da natureza do poder. Mas muitos, dentre aqueles, são populistas que traficam apoio político via metáforas do mesmo poder e do dinheiro por eles manipulados. São eles que corrompem o poder político – e não o contrário. Data de mais de dois milênios a definição desse fenômeno por Marcus Tullius Cicero (106-43 a.C.), em sua De re publica: “A res publica é coisa do povo; e o povo não é um agregado qualquer de pessoas, mas um conjunto de pessoas associadas em torno da partilha dos direitos e da defesa dos seus úteis comuns”.
 
***
 
Por outro lado, os seres humanos podem escolher agir profundamente dentro de si – como projetado pelos dadaístas. Uma revolução na existência pode ser inflamada mediante a faísca da persistência estoica em sonhar a liberdade.
 
Para terminar com Cicero: “Omnes nationes servitutem ferre possunt, nostra civitas non potest”.  Traduzo assim: “Todas as nações podem suportar a escravidão, nosso estado não pode”.
 
 
(*) Sua obra passou pelas tradições do espiritismo e positivismo do século XIX. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1927.
 
(**) “Suas personagens são sempre projeção dele próprio, e com ele muitas vezes se confundem, como observamos pelo conhecimento de sua biografia. Inclusive, deixam a categoria de personagens e assumem um tom discursivo, lamentando as infelicidades e as injustiças sofridas pelo criador. Por outro lado, não tem preocupações estéticas. Suas lamúrias estão sempre a um nível existencial, ou melhor, individual. Sua obra visa satisfazer uma necessidade interior que a expressão determina”. (Eudinyr Fraga).
 
(***)  Seus textos vão do grotesco ao mal-entendido. Ubu Rei (1896) é uma pedra angular do teatro do absurdo.
 
(****) Convencionalíssima do teatro oitocentesco, trata-se uma parede imaginária colocada no proscênio, através da qual o público assiste à ação que acontece no mundo representado no palco. A ideia de que o ator imagine um muro que a separa dos espectadores foi formulada pelo filosofo francês Denis Diderot no ensaio De la Poésie dramatique  em 1758. O conceito ganhou fama na virada do século XIX para o XX, com o advento do realismo teatral.
 
(*****) A suspensão voluntária da descrença é a escolha de aceitar como verdadeira uma ficção. Suspende-se o julgamento para ter entretenimento. A idéia original, do poeta greco-sírio Luciano de Samóstata (125-181 d.C.), foi registrada pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834).
 
 
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Bibliografia
 
Luigi Riccoboni, Dell’arte rappresentativa, 1728.
Francesco Riccoboni, L’art du théâtre, 1750.
Henri Bergson, L’Évolution créatrice (1907), tradução Marinella Acerra, Bur, Milano, 2012.
Giambattista Giraldi Cinzio, Discorsi intorno al comporre /rivisti dall’autore nell’esemplare ferrarese, a cura di S. Villari, Messina, Centro interdipartimentale di studi umanistici, 2002
LEÃO, José Joaquim de Campos (Qorpo Santo). Teatro Completo, Guilhermino César (org). Rio de Janeiro : Serviço Nacional de Teatro/ Fundação Nacional de Arte, 1980. 
Lodovico Castelvetro, Poetica d’Aristotele vulgarizzata e sposta, a cura di Werther Romani, vol. 2, Roma-Bari, Laterza, 1978.
Burdese, A.: Le istituzioni romane, in L. Firpo (a cura di) “Storia delle idee politiche, economiche e sociali”, Torino, 1982.
Citroni, M.: Cicerone e il significato della formula res publica restituta, in Letteratura e Civitas, Transizioni dalla Repubblica all’Impero. In ricordo di Emanuele Narducci, Pisa 2012.
Cicero, La repubblica (introduzione, traduzione e note di Francesca Nenci), Milano, BUR, 2008,
De Martino, F., La costituzione romana, vol. I, Napoli, 1951.
Carlo Goldoni, Il teatro comico, 1750. 
Silvio D’Amico. Storia del Teatro drammatico. Garzanti, Milano, 1958.
 

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