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Papo com Paroni | Pessimismo otimista

Publicado em: 12/11/2014 |

* por Mauricio Paroni de castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Quando se trata de história, parece mais próximo a nós ler sobre Antiguidade Clássica. Freud usou a síntese edipiana para fazer compreender a sua ideia revolucionaria sobre a psique humana; Machiavelli utilizou a antiguidade em quase todos os parágrafos de sua obra, que separou definitivamente a ética da política enquanto práxis de Estado. O que foi consumado há milênios na História não se afoga mais nos interesses narrativos do poder.

 

Estudar a guerra do Oriente Médio pela falta de água ou pelo credo religioso nos situa diante dos fatos, mas não denuncia o poder tanto quanto a compreensão das guerras Púnicas e seus interesses comerciais no Mediterrâneo do primeiro milênio a.C. Pelo menos para criadores da linguagem. Enumero alguns exemplos ilustrativos:

 

1. O alfabeto fenício era uma notação silábica muito mais ágil comercialmente que os hieráticos dos hieróglifos egípcios, cuneiformes e orientais. Por mais culturalmente revolucionária que uma montagem cinematográfica de um filme de Eisenstein, feita na base de ideogramas japoneses, influência de Fenollosa (*) e Ezra Pound (**)possa ser, ela sempre estará longe dos mercados, que vivem da circulação de mercadorias e da miscigenação entre sociedades e culturas. A estética é a cereja do bolo, mas não a farinha e a liga de base, mesmo se uma não vive sem a outra.

 

2. O alfabeto fenício – depois grego, cartaginês e romano – permitiu uma retórica comercial independente da literatura. Esta última espalhou-se oralmente pela bacia mediterrânea via estradas romanas e aproximou fisicamente as pessoas dos lugares mais distantes; mas espalhou-se pela escrita através do direito romano – um código simples, eminentemente comercial e pragmático.

 

3. A guerra sempre foi característica do domínio comercial antigo.  Todo o resto, a cultura, a arte, a religião, foi consequência. A direção sempre foi oriente-ocidente, mais pela expansão do mercado que pelo domínio da terra para a agricultura.

 

***

 

Desconheço terreno mais livre para especular sobre a nossa arte que o estudo de tudo quanto possa se relacionar àquela época. Por inciso: este registro é oposto ao que se cultuava no século dezenove, em que alguém era obrigado a ser versado em cultura clássica para poder pensar intelectualmente num idealismo separado do mundo real. A imagem que proponho é muito diferente: o saber ensejado pela Antiguidade opõe o consumismo cego pela idolatria tecnológica a um desgustar, digerir e encorpar a experiência da História ao nosso dia-a-dia. Com o cuidado de ser o menos ideológico possível, segue um exemplo concreto desse raciocínio.

 

***

 

Guerras Púnicas é o nome das três guerras vencidas por Roma sobre Cartago, entreo segundo e o terceiro séculos a.C., que conferiram a total supremacia de Roma sobre o Mar Mediterrâneo; supremacia direta no lado ocidental e supremacia indireta no lado oriental por meio de reinos com soberania limitada (Mares Egeu e Negro). Os romanos chamavam os cartagineses de púnicos. O termo é uma corruptela de phoenici-punici. Cartago também é uma corruptela do fenício Qart Hadash (cidade nova – nova Tiro). O alfabeto púnico foi desenvolvido a partir do fenício (ver figura).

 

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Durante a segunda guerra púnica, houve uma batalha emblemática de o quanto a parresia (lembram-se dela?) pode exacerbar-se a ponto de derrubar um Estado. Os senadores romanos discutiam, demagógica e demoradamente, sobre os prós e contras de defender a aliada Sagunto do inimigo Cartaginês, que já havia rompido o acordo firmado na primeira guerra. A cidade era o primeiro e mais estratégico bastião de defesa da República de Roma. Os embaixadores daquela cidade ao sul de Espanha, sitiada perigosamente, declararam; Dum Romae consulitur, Saguntum expugnatur! (Enquanto Roma discute, Sagunto cai).

 

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O que essa ilação de velharias tem a ver conosco? Basta estar vivo no século XXI e ter sede. Enquanto todos se acusam, exaure-se a água do planeta. Sejamos mais prosaicos: Pouco tempo atrás, fui a uma festa de “gente descolada”, de aparência progressista, de artistas, desfilando muitos e muitos diplomas de mestrado. Não há a menor diferença entre eles – os fantasmas que descrevi no artigo anterior – e o lumpesinato que querem “incluir”. Estão incluídos, sim, mas no sinal que não desejam. Subrogados uns dos outros, os bacanas são miseráveis, os miseráveis são bacanas; um lounge vertiginoso do tunch-tunch-tunch. Afeto? Diversão? Competição: aluguel de iPhones de um lado e pletora de iPhones de outro. Nada acontece ali, nem fora dali, o estranhamento humano é a direção coletiva da mente.

 

Cada vez mais misantropo, lembrei-me do eixo do Pantagruel bakhtiniano que fiz na Itália em 1997. Contava a decadência desesperada da seita dos adoradores de linguiça, liderada pelo deus Gaster (estômago). A seita lutava pela distinção entre a verdadeira degustação e o consumismo degenerado do nobre ensacado. Consumismo é uma nefasta consequência da linha de montagem, da ilusão de inferioridade do homem diante de suas máquinas, da sua inadequação, da sua “substituibilidade”. Da perversa lógica do tudo o que temos pode ser substituído – como se trocar uma lâmpada queimada conferisse a imortalidade da luz à “nova” lâmpada. Do tudo o que somos também pode ser substituído. Do consumir tudo o que se fabrica, jamais refletir o porquê se faz. Artesanato, jamais… o que não calça, o que não se adequa, o diferente, nunca, jamais! Recomendo a leitura do filósofo alemão Günther Anders (***), que inspira este artigo.

 

O talento incomoda mais que a mediocridade, apologia do modismo servil contemporâneo. Aliás, talento virou publicitarismo. A pirâmide do divino foi demolida, numa terraplanagem falsamente democrática, para assentar a base de uma outra pirâmide muito mais perversa e letal: a depressão, base da bipolaridade, base da esquizofrenia, base do assassinato coletivo e em série, base da não fé do fundamentalismo religioso.

 

***

 

O artista pessimista dirá que o inimigo da utopia humanista ficou invisível. Ergo, invencível. Concordo em parte com “invisível” – tal palavra não quer dizer que ele inexista. Discordo totalmente do “invencível”. Otimista e desagradável, forjo substantivos assustadores para traçar os muitos inimigos que assediam uma vida minimamente aceitável, se prezarmos a sacralidade do nome “vida”: Antiteatro; antigosto; publicidade; marquetagem; reificado versus não feito; reprodutibilidade dos objetos; perda da aura dos mesmos; religião de resultados; projeto de poder em lugar de projeto de governo; desconfiança de tudo; perda da imaginação; fim da brincadeira; remoção da morte; morte reproduzível; morte de massa; morte fabricada.

 

***

 

Por isso gosto de propor o terror naïf do Grand Guignol, que hoje é como uma comédia infantil. Depois dos holocaustos da Shoah, dos comunistas, dos homossexuais, dos roms, da Armênia, de Nankin, de Hiroshima e Nagasaki, dos expurgos de Stalin, Pol Pot, Biafra e longa lista – hoje: o EI, a Guerra Civil na Síria, no Afeganistão, o massacre em Ruanda e outra longa lista, nada mais nos assusta. O Dum Romae consulitur, Saguntum expugnatur! de ontem quer dizer hoje: desprezamos e ignoramos perigosamente o que realmente está em curso.

 

(*) Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908) – Historiador de arte e orientalista espanhol nascido americano. Ensinou filosofia e economia política na Universidade Imperial de Tóquio. É consideradoo fundador da história da arte moderna japonesa de acordo com os padrões ocidentais.

 

(**) Ezra Pound (1885-1972) – Poeta, ensaísta e tradutor para os EUA, que passou a maior parte de sua vida na Itália. Foi um dos protagonistas do modernismo e da poesia do início do século XX. Junto com T. S. Eliot, foi a força motriz de diversos movimentos modernistas, notadamente do imagismo e do vorticismo, que favoreceu uma linguagem de imaginário nu e clara correspondência entre a musicalidade do verso e da expressão dossentimentos. Durante os anos trinta e quarenta admirou Mussolini e Hitler, mudou-se para a Itália e apoiou o regime fascista até a queda da República de Salò. Capturado pelos resistentes, foi entregue aos Estados Unidos e, julgado por traição, passou treze anos num manicômio penal. Voltou para a Itália, onde passou seus últimos anos. Distante da Alemanha nazista mas não do fascismo italiano, a associação de seu nome a essas ideologias custou-lhe o Prêmio Nobel da Literatura, que a Academia Sueca recusou-se aconferir-lhe em 1959.

 

(***) Günther Anders (1902-1992) – Filho do psicólogo Wilhelm Stern, judeu alemão, estudou com Martin Heidegger e Edmund Husserl, com este completou sua tese em filosofia. O pseudónimo “Anders” nasceu de um convite do seu editor em Berlim para mudar o nome “Stern”, muito comum entre os escritores da Alemanha, e sugeriu “algo diferente” (Anders, em alemão). Anders aceitou a sugestão literalmente. Casou-se com a filósofa Hannah Arendt, da qual se divorciou em 1937, porque o pessimismo de Anders era “difícil de suportar”, como ela confessou mais tarde. O advento do nazismo na Alemanha, em 1933, logo forçou-o ao exílio, primeiro em Paris e depois em Nova York e Los Angeles, onde ele dedicou-se ao trabalho manual para se manter; testemunhou a crise na Europa e a catástrofe da Segunda Guerra Mundial,mas também a militarização progressiva que originou a Guerra Fria.

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