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Vera Holtz por Sara Antunes

Publicado em: 30/03/2012 |

Como começar a falar sobre Vera? Porque início é semente… Guarda toda a potência do que virá!

 

Eu e Vera criamos, juntas, pequenos atalhos para o encontro, percurso de palavras e delicadezas. E, por isso, pensá-la é também um jogo onírico.

 

Me propus uma brincadeira que fazia com o meu pai, ele que foi elo nesta ligação, já que a peça que criamos juntas, “Sonhos para Vestir”, é em sua homenagem.

 

Fecho meus olhos e deixo vir as primeiras imagens:

 

Amarelinha, alquimista de energia = gargalhadas

 

Lágrimas, áries, leão = vulcão

 

Dona de reino generoso: pirulito, chumbinhos de chocolate, cambalhota

 

Preto, branco, cinza = correndo com um vestidinho na mão, mãe

 

Calor, cheiro da casa, do bordado, do quintal, risada entre irmãs, prosódia de Interior

 

Medeia imaterial, aconselhante de orixás = arquiteta das imagens

 

Leitora do mundo, galerista de arte moderna, coral de crianças = música de tatuí

 

Essas foram as primeiras… Adianto que o jogo não pararia, porque ela é uma multidão, linhas distantes e alinhadas, convergência. Não será possível falar da artista sem falar da pessoa, porque é no humano que se encontra o sumo. É da potência humana que atravessa Vera que ela vira arte. A sensação que tenho é que Vera nasceu fogueira e seu caminho árduo e de superação em busca de técnica e conhecimento era o aprendizado para conviver com tanta energia; ter o foco para ser a própria existência do fogo: em constante transformação, acalanto e luz.

 

Falar sobre ela é também receber um convite para pensarmos sobre os próprios caminhos e o que fazemos com as sementes colocadas em nossas mãos! Mas das imagens, acho que é na árvore que vejo a melhor metáfora para descrevê-la. Na época que ela me dirigiu, em “Sonhos para Vestir”, eu criava a dramaturgia enquanto ensaiávamos e ela foi crucial para fazer nascer o texto. Abriu meu peito para puxar as palavras que precisavam sair. Vera queria entender porque eu havia me proposto falar da distância que impomos entre hipóteses tão radiantes de vida e um cotidiano aquém das possibilidades. E, como uma acupunturista das emoções, ia tocando no meu querer artístico profundo, me levando até a raiz de onde surge a necessidade de uma nova criação, o nascimento de uma peça. Mostrou-me que o que eu fazia era uma homenagem a meu pai, um grande sonhador, e que eu precisava trazer aquelas palavras, não só da saudade que sentia dele, mas da necessidade de fazê-lo ainda vivo, conectar suas esperanças num mundo tão seco de utopias, frio de contato. E compartilhar experiências íntimas de um amor fértil; criar com o público o mesmo campo afetivo daquele contato. Vera, assim, trouxe o meu pai, pelas mãos, renascido, no melhor lugar onde se pode saudar o encontro, ou o reencontro, que é o teatro. 

 

Ir à origem do que é parece simples para Vera. Lembro de uma vez que perguntaram a ela porque, até hoje, ela não tinha conseguido esconder o sotaque. E ela respondeu de pronto que estudou muito e poderia tirá-lo quando quisesse, caso uma personagem pedisse para suprimi-lo ou acentuá-lo, como tantas vezes fez, mas da sua vida ela não precisava tirá-lo. A Vera mantém o sotaque porque, quando chega, ela é inteira desde o nascimento, capaz, por isso, de mudar a energia de qualquer lugar. 

 

É tipo de gente que não aniquila partes porque sabe, como diz, que a árvore não cresce só para cima, galho enverga e quebra se não fortalece a raiz. O crescimento, de fato, altera também as bases; ir para a raiz, então, é fortalecer a subida. Árvore cresce para baixo e para cima, simultaneamente: “Quanto mais cresço, mais a raiz precisa aprofundar.” Afirmar sua origem, sua ancestralidade até, é também possibilidade de maiores alcances em qualquer direção. Essa dimensão da amplitude de vida foi a Vera que me fez ver. O pensamento dela é grande mostrando quão apegado nós somos às superfícies.

 

Da ligação das altas paragens com a terra profunda, que pude ter uma visão de sua expansão avessa ao comodismo, porque, firmar raiz, não é ser planta rasteira, não é fincar bandeira no mesmo lugar, mas gerar força para o movimento.

 

Por esse entendimento, acredito que ela pode ser tão inteira na arte, tão clara em cada ação. Foi Vera também que me apresentou ao poeta mineiro Bartolomeu Campos de Queiroz, nosso Barto, que, hoje, é anjo, abençoou nosso encontro, nossa peça, nossa amizade, e é por isso que dele pego palavras emprestadas:

 

“Flora segurava sementes na palma da mão e sua alma se abria em festa diante de tamanho alumbramento. Seus olhos inquietavam o pensamento ao pensar no gosto, no perfume, na cor, na forma existente no interior de cada grão, possibilidade do infinito, ignorava o tempo que morava em cada pérola que ela sustentava na concha da mão… Não decifrava quantas vidas existiam e quantas existiriam ainda!”

 

A Vera árvore ou a menina Flora de Barto é, assim, mãe de muitas vidas e tem a humildade de quem está aqui para aprender, para brincar. Por isso, ela pode semear em qualquer solo – artes plásticas, música, direção, atuação – as suas infinitas possibilidades de ser, prezando, sempre, a coragem das sementes e a fartura dos frutos!

 

Filtro quente da fogueira, poroso da planta, forte da raíz.

 

Pois é, pediram para falar sobre a atriz, mas é o respeito do humano, sobretudo, que dignifica um artista.

 

É por amor a ela, pelo amor singular dela, a gente, dessa nossa espécie humana, que homenageio, aqui, a arte que Vera Holtz nos oferta: sempre em alta voltagem, irradiante como merece ser. 

 

 

Veja o verbete de Sara Antunes e Vera Holtz na Teatropédia.

 

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