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Sobre Maio de 2006 e o que Mais?

Publicado em: 01/09/2012 |

Em busca de uma visão exterior sobre o Experimento do Módulo Amarelo, a SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco convidou o ator e professor de teatro Cadu Witter para acompanhar os trabalhos dos aprendizes e, depois, relatar suas impressões. 

 

Assim, no último sábado (1º), durante o Território Cultural, ele assistiu às aberturas de sala, realizadas pelos oito núcleos deste Módulo, que têm como eixo temático a Narratividade e como material para o desenvolvimento das propostas o tema “SP: Maio de 2006 – A Ação do PCC na Cidade”. Agora, é a vez de Cadu compartilhar sua visão em dois textos, nos quais relaciona a temática às investigações feitas pelos grupos. Leia abaixo:

 

 

O professor Armando Sergio da Silva, em suas aulas no CAC/USP, sempre diz que os momentos mais criativos são aqueles em que temos limitações à criação, pois, num lugar livre podemos tudo, então, acessamos o repertório mais disponível e, portanto, o mais óbvio. Mas quando é colocado ao agente criador algum limite, ele é obrigado a desvendar, dentro do seu repertório, os diálogos possíveis para com o limite dado e isso, por si só, já é um processo criativo novo.

 

A questão prática que surge é como lidar com isso de forma a fomentar a criação e possibilitar a todos o crescimento de suas possibilidades e o encontro com o desconhecido. Esse encontro pode revelar muito sobre nós?

 

Os núcleos receberam provocações, das quais poderiam tirar inúmeras possibilidades para trabalhar, mas alguns deles buscaram caminhos que os conduziram para outras viagens. Qual é o limite que determina uma expansão ou aprofundamento de um tema e a fuga dele?

 

Não tenho as respostas, mas gostaria de levantar alguns elementos que possam auxiliar os núcleos nessa reflexão, sem a pretensão pedagógica, colocando-me apenas na posição mais confortável de público.

 

Núcleo 5

Tapete colorido no chão. Atores de costas em fila. Há um aglomerado de gravatas coloridas penduradas ao fundo. Ouvimos o som de um sino engraçado.

 

Atriz e ator iniciam uma narração ao som de uma máquina de escrever, construindo as imagens da televisão. Joana executa as ações narradas. 

 

A cena que segue cria situações entre uma cidadã, Joana, e o serviço de atendimento telefônico da Secretaria de Segurança Pública.

 

Há certos elementos totalmente desconexos, que só passam a fazer sentido após a conversa com os atores. Mas não deveriam fazer sentido em cena? O que mais me intrigou foi o tapete colorido que demarcava o espaço da encenação, construído, segundo a equipe, para retratar as listas coloridas da televisão, mas que me remeteram imediatamente ao circo, mais precisamente a um picadeiro. Isto poderia ser bom se dialogasse com a proposta deste núcleo, mas não é o caso.

 

Talvez se o roteiro de ações estivesse mais incorporado, as coisas tivessem caminhado mais coesas…

 

Na conversa, os atores revelam que toda cena foi construída a partir de jogos de improvisos. 

 

Luiz Alberto de Abreu, no texto “A Restauração da Narrativa” (site do Sesc-PR), escreve: “Sempre admirei o surpreendente processo que leva um paleontólogo a refazer, a partir de um fragmento de osso, não só toda ossatura de um animal pré-histórico, como seu aspecto, hábitos, costumes, o meio em que viveu e uma multidão de informações sobre aquele espécime.”

 

Assim pode ser a construção de uma narrativa.

 

Há um material de onde partiram as pesquisas, mas creio que toda a equipe deve estar atenta àquilo que a equipe incorpora do material (no sentido de tornar parte do próprio corpo) e aprofundar vivências e pesquisas a partir disso.

 

Nesse experimento, é claro o foco dado à neurose de Joana e sabemos que os acontecimentos de maio de 2006 são eventos coletivos com inúmeros vieses a serem desdobrados por esse aspecto. No entanto, a abordagem dos eventos daquela época pode se dar a partir do cotidiano e do cidadão comum, não somente a partir da mídia. Aliado a isso há o pensamento de que “o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano.” (Mario Quintana, “80 Anos de Poesia”, Ed Globo, 2008).

 

E a esse mesmo propósito, Luiz Fernando de Abreu escreve que não existe experiência coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morte que em determinado momento podem atingir o indivíduo ou a sociedade como um todo. No entanto, a experiência de cada um desses acontecimentos só pode ser absorvida individualmente. O que não quer dizer que uma experiência não possa ser compartilhada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Ao contrário, é de fundamental importância que toda experiência humana significativa possa ser comunicada, pois é a partir dela que se orienta e dá forma ao que chamamos de comunidade (ou nação).

 

O objetivo do grupo era falar sobre a mídia e sua atuação diante dos acontecimentos e do atendimento feito à população, pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Não foi isso a que assistimos. Mas será isso mesmo um problema? Ou tratar da neurose de Joana pode ser a pessoalidade universalizante para que o tema ganhe outra dimensão? 

 

A mim interessaria, resta entender como embrenhar-se por esse lugar pode ampliar o tratamento ao tema proposto.

 

Núcleo 3

Nesse mesmo lugar sobre o modo de pesquisa, aprofundamento, escolha e apresentação do tema, encontra-se o núcleo 3.

 

Aqui, tudo começa do lado de fora. Batidas fortes na porta, vindas de dentro da sala, nos causam estranhamento e despertam inúmeras reações. Será que estão trancados? Será que alguém precisa de ajuda? Será que a cena começou.

 

As batidas são suspensas e não mais retomadas. A pausa também cria um lugar interessante para o público, porque é nelas que podemos criar as nossas conexões com o que está acontecendo. È praticamente um momento instantâneo de reflexão sobre a vivência que estamos experimentando.

 

Foi um momento muito rico, pois as pessoas do lado de fora respondiam batendo, instaurando um jogo direto entre público e cena. A agonia nos primeiros momentos do silêncio prolongado e sem qualquer resposta abre novos espaços para criarmos imagens.

 

Infelizmente, a demora em acontecer qualquer coisa nos faz crer que tais batidas não faziam parte da cena. Bem que poderiam fazer.

 

O atraso e a falta de qualquer comunicação nos levam a conversar, do lado de fora, sobre a passividade do público brasileiro, mais notadamente o paulista, diante de qualquer acontecimento nos espetáculos teatrais. Chega mesmo a ser estranho que em qualquer peça apresentada na capital as pessoas se levantem ao final para aplaudir a despeito de terem gostado ou não daquilo que viram. Assistimos a qualquer coisa, nos submetemos a lugares ruins e a esperas por atraso, como se tudo isso fizesse parte da experiência que fomos buscar naquele espetáculo. É uma incrível capacidade de se adaptar!

 

Entramos.

 

Quatro atores estão sob os refletores. Há um som contínuo de telefone tocando. Uma quinta atriz verifica se a porta está realmente trancada. Cada um dos quatro atores se apresenta e anuncia sua personagem. 

 

A quinta atriz já é a personagem. Um porteiro, seu nome João!

 

Surge uma sexta pessoa, Zezão, um porteiro ou um gari que conversa com João.

 

Hora de sair! Estão trancados.

 

Repórter de televisão anuncia o toque de recolher! Seguem projeções de imagens. O foco agora é realizar um plano de mídia para que Zezão se torne uma celebridade.

Há aqui um material muito interessante que pode ser aprofundado. Como se constrói uma celebridade? Para que ela alimenta a mídia e as pessoas com sua própria vida? Um gostinho da personagem de Roberto Benigni, no filme “Para Roma, com Amor” de Woody Allen, poderia dar outro toque a esta crítica. Nossas vidas pautam-se no efêmero e assim é a maior parte das nossas experiências.

 

Zezão vai ao Tribunal de Pequenas Causas e, em nome dos garis do Brasil, pergunta: “Quem vai limpar nosso lixo?”. A partir daí, trazem questões de saúde pública.

 

João e Zezão estão bloqueando as saídas, para que ninguém possa sair de casa e ir ao trabalho, escola ou qualquer outro lugar.

 

A cena é bem interessante e deixa questões, e não respostas. Por isso fica interessante. Mas na conversa com o núcleo, surge a questão: “Por que não falar direto dos acontecimentos de maio de 2006?”.

 

As associações feitas pelo núcleo não ficam claras na cena, mesmo fazendo muito sentido no plano racional. 

 

A pesquisa desse núcleo parte da percepção de que os acontecimentos de maio de 2006 partiram de um grupo que é marginalizado e, por isso mesmo, não é considerado “importante socialmente”. São as chamadas profissões invisíveis. Daí a escolha pelos garis. Na verdade, parece que houve um sorteio, mas não pude percebê-lo. A ideia é representar minorias. Havia, inclusive, uma projeção com procedimentos, na qual essa minoria pudesse ser caracterizada. Talvez fosse mais interessante explicitar o jogo.

 

O grupo mostra boa consciência do momento em que estão e das questões que não foram exatamente tratadas, mas não há muita correlação direta, pra quem vem com o olhar de fora, conhecendo apenas o tema, com os eventos de maio de 2006.

 

 

Sobre rastros e presentificações

Creio que o fenômeno teatral se dá em diversos lugares do humano. Se somos uma multiplicidade de coisas unidas numa vida, podemos acessá-las por diversas vias. Edgar Morin atenta para o fato de que o homem é, a um só tempo, biológico, cultural, psicológico. Portanto, é capaz de acessar, por diversas vias, os saberes e, por essas mesmas vias, fazer conexões da arte com sua existência.

 

Alguns núcleos conseguiram estabelecer conexões muito interessantes, principalmente pela coesão do coletivo e pela vivacidade dos atores em cena. Com isso, permitem a geração de rastros, que nada mais são do que tudo o que fica após o encontro com os estudos que nos apresentaram, as questões, as sensações, as instigações. Isso permite que presentifiquemos a experiência vivida e possamos renovar nossas opiniões sobre ela a cada vez que a revisitamos. Esse não é um lugar que se contrate com o público, nem que esse, sozinho, possa se forçar a alcançar, mas nasce de uma fricção que só pode ocorrer no momento da apresentação teatral.

 

Núcleo 1

Atores sorrindo e dançando música animada. Gosto da sensação de chegar a um espetáculo e a coisa toda já estar acontecendo.

 

Há uma pausa didática. Um dos membros do grupo explica o que vai acontecer e de onde partiram. Veremos pontos de vista de um jogo para experimentar registros de interpretação. Há um sorteio de personagens e cada ator utiliza um elemento que configura a personagem que irá viver: um colar, um crachá, uma lanterna.

 

É tudo extremamente coerente e, principalmente, por ser um processo dentro de um espaço de estudo das artes, instigador.

 

Entendo que a prontidão do ator, o aqui e o agora, são fundamentais para o diálogo com a plateia. Além disso, já dissemos, em outro artigo, que o teatro acontece num lugar que não é apenas racional, mas a mente pode, durante a experiência teatral, tentar sabotar, questionar, duvidar do que estamos vivendo e impedindo que ela aconteça. 

 

Assim, esse núcleo atende a duas coisas: traz a prontidão do ator a partir do sorteio e da sua relação direta com a plateia que o sorteio possibilita, uma vez que reage ao sorteio e, em triangulação, deve lidar com o que terá de fazer, colocando o humano do ator em conexão com o humano do público, antes de apresentar as personagens. Por isso, quando embarcamos na experiência que segue, já nos ligamos às pessoas que irão nos conduzir, o que facilita a ligação com as personagens.

 

Além disso, a explicação inicial coloca o cérebro e a sede racional por comprovações e fundamentações, num lugar de espera quando desperta-o para atentar-se aos pontos de vista do jogo e aos registros de interpretação.

 

Narradora ao microfone apresenta as personagens. E anuncia as cenas que seguem, lendo todo o roteiro do espetáculo. 

 

Atores trabalham com recurso de câmera lenta em cena no supermercado. Repórter anuncia os fatos mais importantes sobre maio de 2006, por exemplo, o toque de recolher. 

 

Um cidadão dá depoimentos e comenta as cenas, trazendo o olhar sobre si o sobre o outro.

 

Muitos temas são abordados, mas sua pontuação não é superficial, já que há sempre um “comentário” de uma das estruturas de cena: narrador, repórter, mulheres no supermercado e cidadão dão pistas que possibilitam ao público elaborar críticas sobre os fatos trazidos, principalmente porque são ações que não se encerram em si. A repórter manipula números e mostra a cidade vazia, entrevistando as únicas pessoas que não foram para casa se proteger: as mulheres no supermercado, que, alheias a tudo que acontece no mundo, vivem situações cotidianas cheias de humor e crítica.

 

Os atores estão muito presentes e dialogam muito bem com a plateia. A iluminação é bem realizada, criando ambientes e pontuando o tempo/espaço da cena.

 

Os elementos de cena são precários, mas condizem com a proposta geral de uma improvisação.

 

Ao final, é realizado um novo sorteio e fica na minha mente a ideia de que as histórias se repetiriam e que não importa o ator das ações, vamos sempre viver as mesmas coisas.

 

É rica essa ideia de sermos parte de um todo e de que nossa individualidade define apenas um pedaço daquilo que vivemos, pois, em certa medida, estamos limitados a ações e acontecimentos que nos remetem de volta ao lugar coletivo, como foram os ataques de maio de 2006.

 

Para surpresa do público, a equipe revela que, embora tenha havido um sorteio no início, os atores interpretaram personagens pré-definidas e que o que teria sido para nós o segundo sorteio, é na verdade a revelação do que foi sorteado no início, mas não foi cumprido pela pré-definição das personagens.

 

Uma pena… Além do quê, já havia dito sobre os lugares para os quais os sorteios haviam me transportado. Aliemos a isso, o fato de que o sorteio libertaria os atores das personagens, fazendo-os ligarem-se às situações em si, o que para Marici Salomão, coordenadora do curso de Dramaturgia da SP Escola de Teatro, seria um grande exercício de desapego.

O núcleo justifica-se, trazendo a ideia de que quase tudo que vivemos é uma mentira, é fictício. Então, o jogo se revela como falso no final do exercício, para que todos saibam que foram enganados. A intenção é bacana, mas não se realiza na prática.

 

Fico feliz em perceber que esse teatro narrativo apresenta aspectos provenientes do encontro entre referenciais modernos e pós-modernos, enquanto recusa a forma fechada, propõe a intertextualidade e o trânsito entre diferentes gêneros e estéticas, combinando elementos e formando um discurso plural, em vez de propor a seleção excludente e individualizante, aliado ao retorno do foco para o domínio da narrativa e do logos (em detrimento da exaustão e do silêncio) utilizando-se de signos reconhecíveis pelo coletivo. Dialoga, assim, com a ideia de vários estudiosos do tema, como Ligia Borges Matias, que em seu texto “O Quarto Criador” diz que a narrativa no teatro é uma manifestação aberta desde o início para a recepção de influências e que permanece em processo de renovação a cada novo contato com o espectador (ABRACE 2010).

 

O debate que se segue, como a maioria dos debates realizados no dia, é excessivamente teórico e professoral, coloca questões práticas num local de elaboração racional e busca ensinar aos aprendizes, mas nem sempre instigá-los. Isto provoca reações normalmente defensivas, que justificam e reafirmam cada escolha. O mais lindo disso é que tudo é intenso, pois as vontades são reais!

 

Núcleo 7

À entrada, há um calendário com agenda de eventos a serem realizados: levar o fulano à escola, assaltar o banco…

 

Entramos. Atores interagem cotidianamente, auxiliando as acomodações. Há uma atriz sentada em frente a uma máquina de escrever.

 

A cena inicia com amigas conversando no caixa: uma mostra para a outra suas fotos no celular. Na fila, há um homem irritado com a demora.

 

Entra um terrorista, que realiza violentamente um assalto. 

 

Muda a luz, um recorte muito interessante, que emoldura a cena e oscila em cores para ambientar as ações. Os tons são lindos!

 

Publicidade: “Programation Time Crime, PTC organizando o crime pra você!”

A mesma cena se repete, mas agora o ‘bandido’ é membro do PTC, então, todos já saibam exatamente o que iria acontecer e se preparam para o assalto. O assaltante é educado e todos colaboram. O mundo está em harmonia!

 

A luz é rosa. Ao final, o assaltante volta: “Ah… esqueci de pagar uma conta!”

 

A cena vende o PCC como produto. Na Wikipédia, temos o conceito de produto como sendo um bem que se destina a satisfazer as necessidades de consumo de um indivíduo. 

 

Para Karl Marx, em seus muitos escritos, o consumo motiva a produção e cria também o objeto que, ao atuar sobre ela, vai determinar a sua finalidade. O consumo cria os objetos da produção, mas sob uma forma ainda subjetiva. Sem necessidade, não há produção, então, o consumo reproduz as necessidades. Isso me faz refletir sobre a nossa necessidade da violência, dos mecanismos que a estimulam e das forças que a combatem.

 

A música é ao vivo, extremamente bem executada e agradável, dialoga e interfere nas ações.

 

Entra o depoimento de uma mãe de criminoso que cadastrou seu filho no PTC e agora quer notícias do Joãozinho. Sucedem-se acontecimentos rápidos, que culminam na escola de Joãozinho. A professora pede a todos que saiam porque hoje é o dia da foto do Joãozinho! Entram os membros do PTC: “Olha para a foto!” Pum, tiro na cabeça de Joãozinho. O faxineiro ao final comenta: “Esse Joãozinho sempre fazendo sujeira, mesmo depois de morto”.

 

É muito claro o humor cínico e bem executado. Não cria legendas, nem representa situações, mas provoca leituras e o público pode imprimir sua opinião a partir dela.

A discussão que se segue levanta uma questão: “Já que a proposta é a narratividade, seria necessário construir melhor o elo entre a primeira e a segunda parte desta encenação?”

 

Tudo tangencia o “trash” e essa é uma boa qualidade desse humor sobre a desgraça, pois se faz profundo e crítico.

 

Se creio em rastros como a presentificação do passado, capaz de trazer reflexões e conexões sobre as experiências vividas, esse experimento foi capaz de deixá-los e, o mais importante, ainda sem respostas em mim.