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Projetos culturalmente responsáveis

Publicado em: 01/09/2014 |

* Por Evaristo Martins de Azevedo, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

“E há que se cuidar do broto

Pra que a vida nos dê

Flor, flor e fruto”

(Milton Nascimento)

 

Com uma quantidade grande de leis de incentivo, de editais, de concursos e de programas públicos de fomento à cultura, todos com limitações orçamentárias, torna-se cada vez mais difícil a livre criação de projetos culturais genuínos que não atendam a regulamentos, normas, exigências, diligências e regras…

 

Se, de um lado, é muito positiva a existência de leis de Incentivo à cultura como ferramenta de fomento às artes, de outro, a imposição de condições, limitações e de critérios para que projetos sejam aprovados é muito ruim para que obras de arte sejam criadas de forma realmente livre e ilimitada.

 

O cenário ideal seria que os referidos programas de incentivo à cultura continuassem sendo disseminados pelo país, mas de tal modo que não restringissem a liberdade de criação artística. Na realidade, já é esse o modelo que vigora nas Leis mais importantes de fomento e incentivo, mas, o que ocorre, é que os meios através dos quais essas obras de arte devem ser submetidas, em formatos de “projetos culturais”, acabam distorcendo ou restringindo a tal liberdade de criação.

 

Nesse momento em que todos (ou quase todos!) já conhecem minimamente o funcionamento, seus objetivos e meandros de cada uma dessas Leis mais importantes (como a Rouanet, a Lei do Audiovisual, o ProAC e o Fomento), o que observamos é que artistas acabam adaptando suas obras de arte para que “caibam” dentro dessas Leis… Ou para que tenham mais chances de ganhar um Edital… Quando esse fenômeno ocorre, constatamos que o conceito de “livre criação artística” já está prejudicado.

 

Por outro lado, também verificamos que uma quantidade enorme de projetos é proposta sem cuidados orçamentários, de tal modo que o uso das Leis de Incentivo só interessa como negócio, como forma de ganhar dinheiro e como meio de lucros fáceis. E há quem faça desse “mercado de projetos culturais” um comércio sem qualquer responsabilidade com a arte, embora absolutamente dentro da Lei. E, frequentemente, esse “mercado” produz projetos também sem nenhuma qualidade artística ou cultural.

 

Em tempos de comportamentos “politicamente corretos”, de condutas ambientalmente sustentáveis e de posturas cheias de responsabilidades sociais, o mundo cultural acaba sofrendo e perdendo por todos os lados. Eis que, se, de um lado, o artista se vê compelido a fazer projetos bonitinhos e simpáticos aos olhos “politicamente corretos” de comissões julgadoras, para que tenha mais chance de ganhar um Edital, maculando seu trabalho artístico em sua verdadeira essência, de outro lado, quando inscreve o mesmo projeto na Lei Rouanet, não tem qualquer escrúpulo em criar rubricas (a maioria das quais, desnecessárias, ou superestimadas, ou que sequer existiriam se o projeto fosse feito sem essa Lei de Incentivo); em prever custos exorbitantes de divulgação e de publicidade em jornais e revistas (que ele próprio, enquanto artista, critica diariamente!); e, em burocracias administrativas, que ele, artista, também repele recorrentemente em seus discursos.

 

Esse irônico conflito pessoal, havido no artista-ativista que se divide com seu outro lado, o do artista-proponente, produz projetos frágeis e  contraditórios, que invariavelmente acabam fracassando  e alimentando, assim, esse paradoxo de projetos, ditos irresponsáveis.

 

Outro aspecto relevante desse contexto é a existência de projetos realmente ruins e que consomem parte bastante razoável das verbas destinadas para programas de fomento às artes tanto no Ministério da Cultura quanto nas Secretarias de Cultura, de Estados e Municípios espalhados pelo Brasil.

 

Não que um cantor de música “descartável” não possa também propor projetos e se beneficiar da Lei Rouanet. Não que seus “ritmos” com músicas de duplo-sentido (ou de sentido nenhum!) não possam ser aprovados pela Lei. Não que determinada empresa não possa destinar seus impostos para patrocinar aquela banda e suas coreografias boçais para uma apresentação numa praia qualquer. Podem. Mas, cá entre nós, não convém que o faça…

 

Em sendo limitados os orçamentos públicos desses programas de incentivo, torna-se irresponsável a aprovação de um projeto que não fomentará nada de artístico ou de cultural. E ainda mais irresponsável que uma empresa aporte dinheiro público naquele “produto cultural”…  Ainda que aquele “sucesso musical” confira certa visibilidade e propaganda gratuita para a empresa patrocinadora. Deve ter e exercer responsabilidade cultural o empresário que resolve participar de leis de incentivo à cultura.

 

Da mesma forma, em tese, também pode propor projetos culturais aquele jovem cantor que frequenta, todos os domingos, os programas vespertinos de televisão (os quais, sozinhos, são capazes de alavancar o sucesso instantâneo de qualquer um!). Mas não parece correto que esse mesmo “cantor” proponha um projeto na Lei Rouanet que custe mais caro do que todo o orçamento de uma Secretaria de Cultura inteira da maioria das cidades brasileiras. Aqui se tem um exemplo que prova que nem tudo que é juridicamente legal é também eticamente legítimo.

 

Quando um projeto culturalmente irresponsável é aprovado e, depois, efetivamente pago com dinheiro público, está, não só prestigiando um trabalho ruim, como, pior, impedindo que outro, de boa qualidade artística, seja realizado.

 

Ora, projetos que não têm quaisquer responsabilidades culturais não deveriam ser financiados com dinheiro público. Se tais “artistas”, “produtores” ou “proponentes” querem fazer algo de qualidade discutível, que o façam com seus próprios recursos, com dinheiro privado.

 

O problema é que, em regra, não podem os julgadores desses programas públicos de incentivo a cultura, avaliar um projeto simplesmente por seu caráter artístico, pela suposta qualidade da obra e nem por seus gostos ou preferências pessoais. Há diversos outros critérios, em cada um desses programas públicos, que são previamente estabelecidos para a aprovação dos projetos.

 

No ProAC-ICMS, contudo, ao menos há critérios subjetivos para a avaliação de um projeto, como o “interesse público” e o “interesse artístico”, que, muitas vezes, conseguem impedir o uso do dinheiro público em projetos visivelmente ruins e culturalmente irresponsáveis. Essa é uma grande vantagem desse programa em relação a outros nos quais a subjetividade da avaliação fica escondida por trás dos critérios objetivos e que podem causar injustiças.

 

Obviamente, projetos conceituais, obras experimentais artísticas mais instigantes e trabalhos orgânicos vanguardistas podem (e devem!) ser aprovados, e, torcemos, sejam sempre realizados, ainda que sejam “politicamente incorretos” ou transgressores (aliás, é sempre melhor que sejam transgressores!).  Esses, em regra, são culturalmente muito mais responsáveis do que outros, supostamente “corretos” ou meramente “comerciais”, que paralisam o pensamento crítico provocado pela arte.

 

Também por óbvio, não estamos afirmando que projetos de culturas tradicionais brasileiras, sertanejas, de festas populares e de tradições típicas regionais não devam ser fomentados! Pelo contrário, devem ser permanentemente incentivados também, sempre!  Mas mesmo esses importantes projetos também devem ser responsáveis. Porque é de grande responsabilidade do artista e do produtor regional a manutenção de suas tradições culturais, a formação de novos públicos e a conscientização acerca da importância de projetos e patrocínios nessas nossas manifestações artísticas, pouco divulgadas pelos veículos de massa.

 

Um “projeto culturalmente responsável” é como uma “prática ambientalmente responsável” que não pode mais permitir desperdícios… A responsabilidade ambiental, aos poucos, foi sendo difundida na sociedade brasileira e, hoje, já é reconhecida como realmente necessária. O que esperamos é que, nos meios culturais, esse conceito de “projeto culturalmente responsável” também seja bem compreendido e praticado por todos os envolvidos com as Leis de Incentivo à Cultura. Certamente, assim, os artistas, que têm muita responsabilidade na formação (e na transformação!) política da sociedade, poderão voltar a criar suas obras de forma mais livre e independente das leis. E sem concessões, apesar das leis.